[FINAL FANTASY XV] Analise do jogo - Parte I (ou vai piorar muito antes de melhorar)

| quarta-feira, 14 de agosto de 2019


Tem alguma coisa profundamente especial a respeito de Final Fantasy, uma série que nasceu diferente de qualquer outra: quando a Squaresoft estava quase falindo nos anos 80, Hironobu Sakaguchi assumiu para si a tarefa de que, se essa merda ia falir mesmo, então ao menos ele faria o jogo que ele sempre quis fazer mesmo. Ele e sua equipe de menos de dez pessoas colocaram seu coração nisso, e muitas noites em claro comendo miojo de 50 centavos e tomando água que usaram para lavar a latinha de energético.

Trinta anos depois, as coisas não foram tão diferentes assim. Tanta coisa deu errada na produção de Final Fantasy XV que a Square-Enix teve que dar um ultimato a equipe de produção do jogo: nós vamos lançar essa merda em 2016 do jeito que ela estiver, então façam o seu melhor. A Square não fez isso, saiba você, de um ato de pura malignidade de seus executivos, é que a produção do jogo estava tão complicada que apenas para NÃO TER PREJUÍZO, se eles lançassem o jogo em 2016 Final Fantasy XV teria que vender 10 MILHÕES DE CÓPIAS.

10 MILHÕES. Apenas para não dar prejuízo.



Para ter uma idéia do que é isso, The Last of Us - que é um jogo sem NENHUMA review negativa no metacritic e é o exclusivo mais vendido sem ser da Nintendo, venceu 17 milhões de cópias. O que a Square precisava, mais uma vez, não para ter lucro mas simplesmente fechar as contas, era 2/3 do sucesso de um dos maiores videogames de todos os tempos.

Então, com o tempo de produção pra lá de estourado, Hajime Tabata e sua equipe fizeram a única coisa que podia ser feita em uma situação assim: viraram muitas, muitas e muitas noites em claro a base de miojo e energético, e derramaram seu coração sobre o jogo. Há alguma coisa em Final Fantasy que precisa de suor e sangue para dar certo.

E deu certo, mas não sem um preço.




Final Fantasy foi, durante muitos anos, mais do que uma marca: aos olhos dos games foi um porto seguro de qualidade. Se tudo mais falhasse, se tudo mais desse errado, ainda haveria Final Fantasy lá com personagens memoráveis, histórias  desnecessariamente complicadas ainda que simples em essencia (basicamente, derrotar o mal e salvar o cristal ou a lua)

Em algum ponto, Final Fantasy foi a mais completa expressão de o que os videogames eram capazes de fazer, as  mais elaboradas e convincente narrativas, os mais inesquecíveis momentos verdadeiramente emocionais de personagens com os quais você verdadeiramente se importava escalonados por um nível de beleza visual que nenhum outro estúdio poderia igualar. Isso tudo amplificado por arranjos musicais de uma qualidade crescente. Em algum ponto da história dos videogames, nós acreditavamos na Square da mesma forma que nós confiamos hoje na CD Project RED ou na Naughty Dog.

Em algum ponto da história dos videogames, esses caras foram os melhores no que eles faziam. Mesmo quando o que eles faziam era falho, quebrado ou incompleto, eram coisas as quais lembraremos até o final de nossas vidas.

Mas, como todas as coisas, essa magia não duraria para a sempre. Após aquele que até hoje eu considero a sua obra prima - Final Fantasy X - a Square perdeu no meio do caminho. A realidade de fazer um jogo na era do PS3/XBOX 360 não era mais a realidade de fazer um jogo nos anos 80. Não era mais sobre se trancar em uma sala com seus amigos e escrever uma programação, hoje jogos são feitos por centenas - as vezes milhares - de pessoas. Grande títulos AAA não são mais projetos pessoais, são empreendimentos multimilionários tocados por equipes, não por individuos.



Esse novo modelo de negócios se provou bastante dificil para a Square compreender, sobretudo quando Final Fantasy floresce em seu melhor do sonho de um homem colocando sua alma em linhas de programação - ao ponto de ocasionalmente abandonar os banhos. Não é mais assim que se faz jogos hoje em dia.

Isso resultou em uma espiral descendente ao ponto que Final Fantasy XIII se tornou o primeiro flop comercial de um Final Fantasy no Japão (ou seja, ele arrecadou menos do que custou para produzir). Isso nunca havia acontecido antes. Em 2014 Final Fantasy 14 foi lançado como um MMORPG e foi um jogo tão ruim, mas tão ruim, mas tão ruim que a Square literalmente devolveu o dinheiro das assinaturas, desligou os servidores e teve que refazer o jogo inteiro (o que levou alguns anos depois a Final Fantasy XIV: Realm Reborn, que é um MMORPG bastante bom).

Então, neste ponto da história, você pode imaginar a pressão que havia sobre Tabata e seu recem convertido Final Fantasy XV. Não bastava ele fazer um bom Final Fantasy. Ele tinha que fazer Final Fantasy grande novamente. E vender 10 milhões de cópias no processo.

Se fosse qualquer outro título, de qualquer outro estúdio, teria simplesmente sido cancelado. Teria sido mais fácil dessa forma. Mas como era Final Fantasy... bem, tem alguma coisa profundamente especial a respeito de Final Fantasy.



Mas fazer um videogame não é uma tarefa simples, e nenhuma quantidade no mundo de paixão ou dedicação vai te levar a algum lugar se você não tiver um material sólido para apresentar tudo isso. Acredite, a Naughty Dog não gastou milhões e milhões de dolares aprimorando o sistema de combate do seu The Last of Us mesmo tendo uma narrativa e personagens tão estelares apenas porque eles estavam entediados ou com dinheiro sobrando. Eles fizeram isso porque nenhuma quantidade de boa intenção e bons dialogos podem mudar o fato de que um videogame ainda é um videogame, e ele precisa ser um bom videogame antes de qualquer coisa.

E Final Fantasy XV é um bom videogame? Não, não é. É um jogo quebrado, lançado incompleto, com porções inteiras do seu desenvolvimento varridas para debaixo do tapete porque não ia dar tempo para fazer.

Até o capitulo 8 tudo que você faz são quests que não sentem como se tivesse relações umas com as outras. Você ainda é livre para rodar com seus bros pelos três estados que compõe o reino de Luci, e enquanto o mapa é visualmente impressionante, não há construção de mundo nenhuma ali. Quer dizer, tem pessoas habitando aquele mundo, e eventualmente tem algumas cidades.

Inclusive, as três principais cidades do jogo são inspiradas visualmente em cidades do mundo real:


Lestallum é uma versão fantástica da Lapa, no Rio de Janeiro



Altissia é inspirada em Veneza 


E Insomnia em Tóquio

Porém enquanto esse mundo possui pessoas, e esse mundo possui cidades, ele não soa exatamente como um mundo. A construção de mundo é algo terrivelmente deixado de lado aqui, porém é necessário explicar um pouco sobre esse conceito para chegar onde eu quero:

Construção de Mundo é algo distinto da construção de personagem ou narrativa, ou mesmo cenário. É algo mais ambiocioso e ao mesmo tempo mais sutil, é o esforço que visa reunir todos essas coisas sob uma única bandeira, é o processo de imaginar um mundo crível mundo composto por personagens críveis e eventos críveis (e por crível eu digo coerente com as regras de mundo propostas pela narrativa, nada haver com ser "realista" como se fosse no nosso mundo). Se alguma dessas coisas são incongruentes umas com as outras, toda a experiência se rompe e o a construção do mundo está enfraquecida.

Em Final Fantasy XV, a construção do mundo é uma desgraça. Em primeiro lugar, supostamente o Rei Regis ergueu uma barreira que isolou a capital do resto do mundo por causa da guerra. Nenhuma das outras pessoas que compõe o reino jamais menciona o fato, quanto mais parece minimente afetada por isso. Kingsglaive tentou estabelecer um cenário onde há um preconceito das pessoas "de dentro" para com os "de fora", e não é estranho supor que hava um ranço no sentido inverso, mas o jogo em si sequer tenta alguma coisa.

Veja, não é que eles não conseguiram: eles sequer tentam. Aquele é um mundo genérico onde nada particularmente digno de nota está acontecendo. Quer dizer, demonios aparecem a noite e esse é um tema recorrente, mas fora isso nada realmente acontece. Os NPCs te passam quests para cuidar da vida deles, totalmente alheios ao fato que a alguns quilometros dali a CAPITAL foi  estraçalhada por monstros e uma invasão militar. É um mundo onde a maior figura representante da única religião do mundo está desaparecida ou morta, e ninguém parece particularmente preocupado com isso.



Quando é necessário para avançar a "história" (por falta de palavra melhor), surge um NPC que menciona esses eventos, ou você ouve uma notícia no rádio, ou algo assim. Mas isso é tão fora de contexto, tão fora de como todo o resto do mundo parece funcionar que passa uma sensação alienígina, de que aqueles NPCs caíram de paraquedas do céu apenas para te dar aquela cutscene.

Compare isso com The Last of Us, por exemplo. Você não precisa de nenhuma cutscene para sentir como o mundo está, qual é a tonica daqueles cenários. É só ver como as pessoas se vestem, como as coisas estão largadas por aí, a atmosfera fala por si só. Final Fantasy XV não tem nada disso, coisas supostamente grandes estão acontecendo e salvo por meia duzia de NPCs chave, ninguém parece ter relação nenhuma com isso.

Isso é particularmente ruim porque a construção de mundo, no sentido geográfico e não social, é excelente! Existem lugares interessantíssimos, fantásticos e únicos para se visitar como só poderia existir em um jogo como Final Fantasy. É um mundo que parecer tão alieniga com meteoros vazando mana como parte do cenário, e você pode ir até lá! É um mundo onde existem monstros gigantes, e eles não são cenário, são criaturas colossais que passam uma sensação de Jurassic Park!



Tem campos enormes para correr, estradas que sobem montanhas, pantanos e vulcões. É um mundo fantástico em vários sentidos da palavra e um mundo que implora para ser explorado e maravilhar o seu jogador com grandes experiencias. É, em certo sentido da coisa, quase um Ocarina of Time versão 2018.

Ou seria, se tivesse sido feito com o cuidado certo. Porque do jeito que foi lançado, esses lugares fantásticos lindamente iluminados são completamente vazios de vida ou de mistérios. O que o jogo te dá são apenas quests de ir até tal lugar e matar coisas, ou buscar coisas - que é a forma mais primitiva de quest que pode haver, e meio que o que você consegue bolar quando seu tempo de produção está estouradaço.

Agora imagine, apenas imagine, um mundo com essa criatividade visual mas que contivesse a sensação de lore que Dark Souls passa (aquele feeling de "dá pra notar que muita coisa aconteceu aqui, eu é que cheguei tarde demais para pegar essa história"). Seria o maior cenário de todos os tempos.

Seria. Mas não é.



O que separa um bom cenário de um cenário ruim é o quanto você se importa em saber mais sobre ele. Essa é a verdadeira recompensa de Dark Souls, tentar entender o que aconteceu naquele mundo e onde jogos como Witcher ou Breath of the Wild funcionam tão bem: eles dão ao jogador motivos para se importar, para querer saber mais, para explorar. Motivos além de ter uma Espada +1. Final Fantasy XV não faz nada disso porque aquele mundo, por mais lindo que seja, grita por todos seus poros que não tem nada por detrás dele. Até onde me consta, não faria muita diferença se ele fosse gerado proceduralmente.

Diabos, até minecraft passa a sensação de ter mais por detrás do seu mundo gerado por algorítimos do que Final Fantasy XV! Final Fantasy realmente passa a sensação que eles sequer tentaram! 

Esse é um mundo onde, no papel, deuses batalharam sobre a terra, onde um império de maquinas tecno-organicas está tentando matar os deuses que restam e dominar o mundo, onde os reis de Luci supostamente tem uma relação simbiótica com o Cristal que protege o mundo das trevas... e o melhor que o jogo faz é me mandar em uma quest aleatória para coletar uma lata de cera de carro, ou uma joia que esta largada no chão em algum lugar aleatório ou alguma merda assim que levou 15 segundos para escrever e apenas é um item spawneado aleatoriamente no mapa? Sério, jogo?

E essa é a metade boa do jogo!



Porque quando você embarca para além do reino de Luci (a partir do capítulo 9) as coisas pioram muito mais do que isso. Ao menos o mapa de Luci esta terminado e é povoado por NPCs (que não parecem ter um tema, mas ao menos ocupam espaço). O mapa do continente de Niffelheim nem isso tem. São corredores vazios jogados aleatoriamente de uma forma tão primitiva que eu tive a sensação de estar jogando uma versão earley beta de Final Fantasy XIII!

Olha, eu jogo videogames a 30 anos e uma coisa que eu sei fazer é diferenciar um jogo que foi terminado de um prototipo tanto quanto um cozinheiro saber diferenciar um prato pronto de um prato que está cru apenas de olhar. E toda parte relacionada ao império está além de crua, alguns de seus ingredientes sequer estão lá! É terrível!

O jogo é tão mal estruturado que depois do capitulo 9 o jogo te informa que você não vai mais poder voltar para o mundo aberto para fazer as side quests, MAAAS como é um videogame você pode time-wimey voltar no tempo sem consequencia narrativa nenhuma para continuar jogando no mundo aberto ... e voltar a campanha principal quando quiser. É complicado, é tão disruptivo quanto soa, e tudo na estrutura desse jogo urra a todo seu pulmão que ele foi montado as pressas do jeito que dava porque... bem, era o jeito que dava para fazer.

Existe uma explicação muito tosca de porque não tem ninguém no continente do império, e novamente é algo que fede a "desculpa, mas é a desculpa que deu para inventar porque faltava 15 minutos para entregar o jogo" . 



Se eu tivesse que adivinhar, eu diria que a estrutura de "sequencia de corredores pouco povoada" é a herança que sobrou de Final Fantasy Versus XIII, e que um open world com sidequests foi entranhado no meio dessa história por causa da chinelada colossal que Final Fantasy XIII tomou com sua estrutura de corredores sem dar opção de exploração ao jogador.

Isso explica porque a segunda metade do jogo avança a história mas se passa em cenários não maiores que um apartamento JK, enquanto a primeira metade do jogo não faz sentido narrativo nenhum mas é um open world com um basilhão de side-quests.

Então, em todos os sentidos enquanto jogo, Final Fantasy XV é um desastre. O desenvolvimento de personagens é todo troncho (eu ainda estou tentando entender o que eles pretendiam fazer com o irmão da Lunafreya nesse jogo, por exemplo). A narrativa é um desastre (nenhum elemento relevante da história é apresentado previamente, as coisas parecem inventadas conforme vão acontecendo), a construção de mundo é um desastre, o sistema de combate não é tão ruim mas parece muito com o prototipo do que um sistema totalmente desenvolvido deveria ser. O sistema de teleporte com armas é um grande conceito, mas há ZERO evolução ou profundidade. O que você faz no primeiro combate do jogo (teleporte, combo automatico, teleporte out para recarregar mana e usar magia quando estiver fora do cooldown, enxague e repita). A arvore de evolução de talentos não faz muito além de aumentar os numeros de dano. Não é ruim, mas a absoluta falta de profundidade além disso mostra o quão pouco desenvolvido a coisa toda estava.

Honestamente, o sistema de combate de Final fantasy XIII consegue ser melhor! Eu genuinamente gosto do sistema de "paradigm shift" e se tem uma coisa que me fez suportar FF XIII foi o seu sistema de combate.

Deus, o quão perdido você precisa estar para ser pior do que Final Fantasy XIII, huh?

Então, por todos os critérios tecnicos esse jogo deveria ser hediondo por qualquer angulo que olhe para ele. Esse deveria ser o pior Final Fantasy de todos os tempos, corrijo, ele deveria ser um dos piores jogos AAA de todos os tempos.

Esse jogo é um acidente nuclear de desgraça e dor.



E ainda sim, de alguma forma, eu gosto dele. Em algum nível estranho, em toda sua bizarrice de mediocridade, eu consigo amar ele como um verdadeiro Final Fantasy. Existe um tipo de amor no meu coração muito único a cada uma das diferentes encarnações do Doutor, e existe um tipo de amor que eu reservo aos jogos que genuinamente merecem ser chamados de Final Fantasy. De uma forma estranha e distorcida, Final Fantasy XV merece fazer parte desse clube e de deste mes em diante, até o último dia da minha vida vida, eu sempre sentirei alguma coisa especial quando eu ouvir os primeiros acordes de Stand By Me tocarem.

Como um jogo tão ruim, um jogo tão quebrado e incompleto que falha em tantas coisas fundamentais para um videogame ou para qualquer narrativa consegue ainda funcionar como experiencia emocional?

Bem, a resposta longa, e que eu abordarei no meu próximo post da série sobre Final Fantasy XV, ´é porque o que FF XV falta em qualificação técnica, ele tem de sobra em algo que tanto falta a tantos videogames, filmes e até mesmo livros: coração. FF XV. FF XV é pouca qualidade, mas todo coração.

 A resposta curta é que, bem, tem alguma coisa profundamente especial a respeito de Final Fantasy...
Next Prev
▲Top▲