Existe uma coisa, e é uma coisa muito específica que toda boa história baseada na jornada do herói precisa responder. E é vital a qualquer obra que essa coisa seja bem respondida, senão a obra morre ali, pum, cai dura na hora. Sem exceções. E a pergunta coisa que qualquer obra tem que responder é a seguinte: um protagonista sai e muda o mundo, resolve um problema, derrota uma força do mal, o que quer que seja. Ok, certo.
A pergunta de um bazilhão de dolares é: porque ele fez isso e não qualquer outro? Não, sério, porque literalmente qualquer pessoa DO MUNDO não foi lá e resolveu aquele problema?
Porque foi o Naruto que quebrou o ciclo de guerra e vingança do mundo ninja e não qualquer um dos outros milhares de ninjas que existiram antes dele? Porque Harry Potter tinha que derrotar o Lorde Valdemar e não qualquer outro bruxo? Como Luquinhas Andacéu derrotou o Imperador e não qualquer um dos jedi muito mais treinados que tentaram e falharam antes dele?
Porque o herói faz algo que ninguém mais faz? Essa é a pergunta que realmente importa ser respondida. E quanto maior o desafio, quanto mais perigosa e épica for a jornada, mais complexa precisa ser essa resposta.
Naruto é um jinchiryuki e foi treinado pelos melhores ninjas do mundo ao longo de anos. Harry teve seu destino ligado ao de Valdemar por uma magia tão antiga e tão ancestral que os bruxos não podem intencionalmente reproduzir (o que é uma das poucas coisas em Harry Potter que parece com magia de verdade pra mim). Luke nunca derrotou o Imperador, ele foi treinado por Yoda e Obi Wan Kenobi (dois dos melhores jedi ever) o suficiente apenas para chegar vivo até o Imperador, e então foi o pai dele, ninguém menos que Darth Fucking Vader, que derrotou o Imperador por causa dele.
Faz sentido dentro do mundo proposto porque levou 6 mil anos até surgir Estevão Universo e poder peitar as Diamonds, e porque TINHA que ser o Estevão Universo e não qualquer cascalhozinho que sofreu por milênios no sistema fodido de Homeworld. Feitos extraordinários exigem explicações extraordinárias, afinal.
Isso é algo tão importante, algo tão vital, que mesmo obras RUINS se importam com isso e tentam responder essa pergunta. A nova trilogia da Disney, por exemplo, tentou responder porque a Rey é tão incrível, espetacular, maravilhosa e o xixi dela cura enfisema pulmonar: porque a Força escolheu ela. A Força foi full "whatever, i do what i want", que é o que você deveria esperar de um entidade transcendetal misteriosa. Ok, essa é uma explicação que funciona dentro do universo proposto... que depois foi alterada para uma tão retardada que eu não citarei aqui, mas ainda sim tenta ser uma explicação.
E quando uma obra falha em fazer isso, a suspensão da descrença vai ladeira abaixo junto. Por exemplo, em D&D você precisa matar 30 ratos (300 XP) para subir do nível 1 para o nível 2. Não ao mesmo tempo, você ganha 10 XP por rato. Pergunta: em D&D, porque TODO E QUALQUER campones já não matou os seus 30 ratos ao longo da vida e tem um nível de classe? Não, sério, se as regras do mundo são essas, então porque qualquer um não faz isso?
Saber responder isso é o que diferencia um mestre bom de um ruim. Ou então, porque qualquer um dos 88 cavaleiros de Athena não consegue matar deuses como Seiya e seus amigos fazem? Porque a unica explicação que o Kurumada dá é que eles conseguem porque eles querem muito, muito, muito isso. Uau, que pedaço de bosta flamejante, não? Quer dizer que ninguém mais NO MUNDO INTEIRO quer muito muito muito muito mesmo? Ah vapaputaqueopariu, seu Kurumada, na moral. Vai ser ruim assim lá no colo do JJ Abrams, que desgraça...
E porque eu estou falando tudo isso? Bem, porque eu não teria outra chance de falar em primeiro lugar, mas principalmente porque Made Into Abyss coloca diante de si uma tarefa muito dificil que é justamente não foder todo o worldbuilding tendo como protagonistas crianças.
Mas suponho que para entender minha afirmação, é necessário um pouco de contexto aqui.
Existe no mundo (não é dito qual, provavelmente não é o nosso mas isso não é importante para a história) um abismo. E por abismo eu quero dizer um PUTA DUM BURACÃO DA PORRA que ninguém sabe até onde vai, mas se disser que vai até o inferno e dá duas voltas eu não duvido. Mas é buraco pra nego nenhum botar defeito mesmo. Meu deus que buraco.
Só que o Abismo não é apenas um mero buraco no chão, não. Ele é praticamente seu próprio mundo, porque cada uma das camadas do abismo possui seu próprio ecossistema e até mesmo suas próprias leis da física. E, mais importante que isso, cada uma das camadas possui sua própria versão da Maldição do Abismo.
O que é a Maldição do Abismo? Bem, sabe quando uma pessoa está mergulhando no oceano e ela pode descer o quanto seu corpo aguentar a pressão, mas na hora de subir de volta ela tem que tomar muito, muito cuidado para não ter embolia no sangue e até morrer? Então, tipo isso. Você pode descer o quanto quiser no Abismo, mas se subir mais do que dez metros de uma vez a coisa pega. Na primeira camada do abismo você só tem tontura e nausea, talvez vomite um pouco. Mas conforme vai descendo, cada camada os efeitos vão ficando cada vez mais e mais perigosos e... pouco naturais. Basta dizer que a partir da quarta camada, morrer não é a pior coisa que pode te acontecer. Mas nem de perto.
Tentando pegar o busão das 18h be like |
Então, é, explorar o Abismo não é algo que possa ser feito levianamente. Em adição a isso, como eu já disse cada camada tem seu próprio ecossistema, com criaturas perigosas de habilidades progressivamente estranhas capazes de esfacelar um homem adulto como se manteiga no pão. Novamente, a coisa vai ficando progressivamente mais perigosa conforme se desce, e se disserem que no fundo do buraco (supondo que exista um) dorme o próprio fucking Cthullu, eu não vou duvidar disso. Para piorar, a ambientação é um cenário mais ou menos steampunk, então não espere grandes armas a disposição dos personagens. Ninguém vai puxar uma metralhadora, um rifle de sniper, um escudo tático e chamar o dia. É dificil mesmo.
Aqui tem que ser notado o trabalho enorme e dedicado que o autor do manga colocou em criar ecossistemas verossimeis e interessantes. Sério, em alguns momentos Made Into Abyss parece estar assistindo um episódio de "A Prova de Tudo", só falta os protagonistas dizerem que se beberem o sangue do Sapo Roncador do Inferno poderão viver por mais duas horas. E eu estou dizendo isso da forma mais elogiosa possível, como camada do Abismo funciona é um dos pontos mais interessantes do show.
Ok, então já estabelecemos que o Abismo é um lugar fantástico tanto quanto muito, muito, MUITO perigoso. Porque as pessoas apenas não colocam uma rolha nessa joça e vão para o mais longe possível dele? Bem, porque não é só desgraça que tem no abismo: os exploradores encontram relíquias de uma civilização perdida, itens que ninguém no mundo entende como funcionam ou podem reproduzir, mas tem utilidade inegável. Sabe nos filmes da Marvel quando pilhar os restos de tecnologia alien se tornaram a base de toda tecnologia moderna? Então, aqui as relíquias do Abismo são mais ou menos isso.
Tanto que uma cidade se formou ao redor do Abismo para fomentar essa exploração, por mais perigosa que seja é algo economicamente viavel. E, claro, quanto mais fundo no Abismo, mais poderosas as reliquias são. Essa é a cidade de Orth.
Orth cresceu ao redor do Abismo, e seu maior (e único) produto de exportação são as relíquias recuperadas do Abismo. Em um lugar assim não é de espantar que toda sociedade, cultura e até mesmo religão gire em torno do buracão da porra. Como por exemplo, não é tão estranho que os orfanatos na verdade sejam escolas para ensinar as crianças a serem exploradores do abismo.
E aqui você já começa a imaginar o problema que eu tenho senti com esse anime, né?
Os protagonistas do anime são essas crianças de 12 anos. Que são desenhadas como se tivessem 8, basicamente porque o autor do manga gosta de desenhar crianças peladas. Eu não estou brincando, e embora não sejam sexualizadas de forma nenhuma, é mais de uma forma inocente como crianças, mas ainda sim se ver crianças peladas é um problema pra você pare agora. Isso é muito sério.
Isso é o básico, é daí pra baixo |
Enfim, a heroína da história é Riko, uma órfã treinando para ser saqueadora do Abismo que não é apenas uma reles órfã aleatória, mas sim filha da exploradora mais lendária e pica das galaxias de toda Orth: Lyza, a Aniquiladora. Não, sério, esse é o nome dela.
E sendo Riko uma órfã, você pode imaginar que fim Lyza levou. Um dia foi pro Abismo e não voltou mais, babaus. Certo. As coisas começam a mudar quando Riko, em uma missão de treinamento (apenas passear alguns poucos metros pra dentro da primeira camada do Abismo) encontra um menino-robo. Não é claro se ele é uma pessoa com tecnologia da civilização perdida do Abismo, ou se ele é um robo inteiramente artificial. Mas enfim, Riko o chama de Reg e trás ele de volta para o orfanato como uma criança porque se ela dissesse que ele é uma reliquia do Abismo ele seria desmantelado e estudado.
Tudo bem até aí. O problema começa quando chega uma mensagem vinda do abismo (exploradores mandam balões para a superficie como forma de comunicação, é assim que se sabe alguma coisa a respeito das camadas que não tem mais como voltar), com uma mensagem supostamente de ninguém menos que a própria Lyza, a Aniquiladora, dizendo que está está esperando no fundo do abismo. Riko fica com a bacurinha em chamas e decide que vai porque vai até o fundo do abismo encontrar a mãe dela, e Reg decide que vai junto porque ele supostamente veio de lá e talvez assim ele recupere suas memórias ou algo do tipo.
Então, a este ponto, definitivamente temos um problema narrativo aqui. O Abismo foi muito bem estabelecido que é um lugar perigoso, mortal, animal, e que mesmo os exploradores veteranos levam ele muito a sério. Então o anime é sobre duas crianças fazendo essa jornada que já seria impossível na mão de profissionais?
Entenderam agora meu ponto do começo do texto?
Do jeito que é colocado, é muito dificil acreditar que duas crianças vão sequer chegar a segunda camada do Abismo, quanto mais ao fundo - mesmo que uma delas seja um robo. Entretanto, felizmente o criador de MIA não é um idiota e teve as mesmíssimas preocupações que eu tive assistindo esse anime.
Uma grande quantidade de força e tempo é colocada em construir uma forma que essa jornada improvavel não seja apenas possível, como plausível. Reg, por exemplo, não é apenas um garoto-robo que precisa se preocupar com o Dr Pedo, mas ele é efetivamente melhor do que qualquer adulto. Ele tem braços que disparam como os grappling hooks de Attack on Titan, um canhão de plasma que pode ser disparado uma vez por dia e pele indestrutível. Ok, é plausível que ELE sobreviva no Abismo, e o trabalho dele é muito mais manter a Riko viva do que deixar uma criança solta por aí.
Apenas para provar o ponto de que não é um completo abilolado da cabeça, o anime tem um episódio inteiro em que Riko tem que se virar sem o Reg e ela por muito pouco não roda por causa de um desafio que seria trivial para um explorador adulto ou para o menino-robo.
Então, sim, o anime tem completa noção do que está propondo, e se esforça bastante para fazer isso ser possível. Riko não é nenhuma criança daquelas crianças prodígio insuportáveis de anime, mas ela também não é um peso morto. Ela ajuda tanto quanto uma boa aluna pode ajudar (o que complementa o fato que Reg não tem memória, então ela sabe coisas sobre o Abismo que ele não sabe e que fazem diferença), mas o anime tem sua cota de ideias sobre como ela pode ser util nessa missão.
Made into Abyss não é um anime que insulta sua inteligencia, e isso é mais do que eu poderia esperar.
Mas isso levanta outra pergunta: se MIA não é um anime que ofende sua inteligencia, era realmente necessário que os protagonistas fossem crianças? Quer dizer, eu entendi que o pessoal realmente gosta desenhar crianças peladas, mas não podia ser feito o mesmo com adultos?
Não, é realmente importante que sejam crianças porque isso amplifica o impacto emocional das consequencias desse mundo tão perigoso e cruel, ainda que belo, que é o Abismo. Made Into Abyss tem cenas bastante fortes, mas ao contrário de shows como Goblin Slayer, elas são fortes porque elas precisam ser fortes para serem coerentes com o mundo. E quer saber o que mais? Se o anime conquistou esse direito sendo bem escrito o suficiente para que faça sentido crianças soltas em um mundo ultra perigoso, então seria um desserviço não utiliza-lo.
Mas antes que você pense que esse programa se afirma em shock value pelo prazer do shock value, saiba que Made in Abyss é impactante não apenas visualmente, mas emocionalmente também. MIA tem uma narrativa emocionante com tons de horror que sabe como jogar com as expectativas e emoções do espectador. E é realmente mais do que isso; é uma história sobre amizade através de todas as dificuldades e nunca (e quero dizer nunca) passa pano pra o quão insanamente perigosa e destrutiva emocionalmente essa jornada é - o que faz os triunfos serem mais recompensadores ainda.
Isso tudo é amplificado pelo estilo de animação que lembra muito o estúdio Ghibli, e se você sempre quis saber como seria um anime de horror lovecraftiano da Ghibli, bem, isso é o mais perto que você vai encontrar. De certa forma lembra um pouco Madoka Magica, onde um traço adoravel é utilizado para mostrar crianças fofinhas enfrentando abominações saídas de pesadelos.
O que Madoka Magica não tem, entretanto, é a trilha sonora fantástica de MIA. O interessante da trilha sonora de Made in Abyss é que ela não foi composta por um compositor japonês, mas por um compositor australiano chamado Kevin Penkin, e eu serei amaldiçoado se ele não provou alcançar a qualidade de alguém como Yuki Kajiura.
Para descrevê-la em uma palavra: sentimento. A trilha de Penkin consegue se equilibrar entre o maravilhamento de descobrir um novo mundo fantasticamente belo, em uma jornada esperançosa de conseguir o impossível, e ao mesmo tempo de partir o coração. A trilha sonora soa muito mística e alinhada com a atmosfera única do Abismo. Em particular, tem uma faixa chamada "Hanezeve Caradiha", que é linda além das palavras, com sua melodia suave e vocais suaves, mas com uma sensação estranha, é a definição perfeita do que esse anime transmite.
Essa cena vai te fazer chorar. Pelo monstro. Acredite. |
Poucos animes conseguem transitar com tanta graça entre ser como um sonho e um pesadelo, entre a esperança de atingir o impossível e o desespero de ser esmagado pela realidade, entre ver o que as pessoas tem de pior dentro dos seus corações, mas também o que elas tem de melhor.
Made in Abyss é um anime lindamente animado e inteligentemente escrito que merece muito o hype que recebeu durante a sua exibição. Não é perfeito, em grande parte por causa do início lento - leva pelo menos 4-5 episódios até o anime realmente mostrar ao que veio, o que é bastante coisa em um anime de apenas 13 episódios. O tema de abertura também é estranhamente genérico, o que é uma pena em um anime tão bom como esse.
Mas eu diria que, mesmo com seu curto tempo de execução, Made in Abyss atinge níveis que o anime completo de 25 episódios mal consegue arranhar. Seu mundo cuidadosamente bem pensado absorve desde o início, sua história revela alguns temas surpreendentemente pesados, e seu estilo visual simples é usado de maneira eficaz para evocar emoções. Isso para entrar no mérito de que o mistério do que tem no fundo do Abismo (se é que existe um) é muito interessante... alias o que sequer é aquele Abismo já é o suficiente para você querer assistir mais.
Emocionalmente, em tonalidade, MIA lembra bastante Nier Automata. E isso é um dos maiores elogios que se pode fazer.