[LIVROS] Agência de investigações holísticas Dirk Gently (ou Cidade de Shada)

| sexta-feira, 30 de agosto de 2019


"Genialidade" é um termo que usamos de forma curiosa hoje em dia. Basicamente, é a ideia de que alguns individuos são magicamente (ou divinamente, se preferir) inspirados e que do nada, sem esforço algum eles são capazes de puxar obras-primas em seus respectivos campos de interesse.

Não é assim que funciona. Ser realmente bom, faz algo realmente notavel requer anos de dedicação, tentativas e erros. É um caminho dificil que a maioria das pessoas não se sente inclinada a trilha-lo porque DÁ TRABALHO PRA CARALHO! Mais fácil mesmo dizer que não dá pra fazer porque você nasceu sem a pecinha mágica secreta.

Isso sendo posto, tem apenas duas exceções que eu consigo pensar a essa regra e que parecem funcionar nesse místico conceito de genialidade que a preguiça popular criou. Eles são Hirohiko Araki e Douglas Adams.

O primeiro é o mangaka resposavel pelas bizarras aventuras da família Joestar e associados, e é uma das pessoas mais criativas que eu já vi pegarem em um lápis. Ele pode escrever histórias bizarramente deliciosas sobre absolutamente qualquer coisa que lhe vier a mente, desde nazistas cyborgues a ratos snipers. Considerando que ele trabalha a mais de trinta anos em uma das industrias com os prazos mais filhosdaputa que existe, a de mangas, é absolutamente incrível como ele consegue simplesmente sentar e desenhar (e na industria de mangas TEM que ser assim) sobre QUALQUER COISA e ficar foda. Esse homem opera em uma frequencia a ser estudada pela NASA.

O segundo exemplo que me ocorre é o não menos genial (no sentido popular da palavra mesmo) Douglas Adams. Ele tinha um dom inacreditavel de fazer paragrafos interessantes sobre absolutamente qualquer coisa que lhe viesse a mente. Normalmente, é recomendado que o autor pule partes desinteressantes ou cotidianas da história, como digamos o personagem ir a padaria comprar pão. No caso de Douglas Adams nós ansiamos por momentos assim porque muito provavelmente disso sairão paragrafos hilários e/ou inteligentíssimos.~


Considerando o histórico de péssima administração de prazos que Adams tinha, muitas vezes ele realmente redigiu capitulos nesse estilo mesmo de sentar e escrever o que vier na cabeça e vai ter que ser isso. E foi isso. E foi espetacular.

Então eu suponho que, embora menos popular do que se credita, "genialidade" exista e alguns homens, mulheres e doguinhos operam em outra frequencia mesmo.

Isso sendo dito, a pergunta que me cabe fazer é... apenas isso é suficiente? As desventuras do detetive Pinto Gentil me fazem acreditar que não.





Então, vamos começar do começo: a Agência de Investigações Holísticas Dirk Gently é um livro sobre... bem, sobre nada, na verdade. Sério. A primeira metade do livro é sobre "Douglas Adams" enchendo linguiça enquanto quase nada realmente relevante para a história acontece.

Claro, ele sendo Douglas Adams estamos falando de uma linguiça importada feita de porcos criados a leite de rococó. Coisa fina. Mas não menos linguiça por conta disso. Isso é bom? É ruim? Dificil dizer. Ele passa, por exemplo, quase dez paginas narrando sobre um jantar de onde se aproveitam apenas duas linhas de texto para o resto do livro. Fosse qualquer outro autor no mundo, eu arremessaria pela janela o editor que deixou uma aberração narrativa dessas passar. Mas Douglas Adams escrevendo como Douglas Adams escreve, é uma aberração que nós queremos ver.

Então o Douglão da massa nos serve um prato de linguiças enchidas deliciosamente, porém não tem como não notar que isso é tudo e não tem um prato principal por detrás disso. Novamente, isso é bom? É ruim? Hm, é dificil dizer.

Toda passagem sobre o Monge Eletronico, por exemplo, é magnificamente escrita e interessantíssima de ser ler. O melhor dispositivo absurdo introduzido no livro é o Monge Eletrônico. O Monge Eletrônico existe em uma época em que ninguém tem tempo para acreditar nas coisas, então pode-se comprar ou alugar um robô para acreditar nas coisas por você- especialmente aquelas noções estranhas que não são sustentadas por evidências e, portanto, são menos dignas do esforço da crença. Por uma série de decisões de design individuais baseadas totalmente em lógica, em uma coincidencia incrível o Monge Eletrônico acabou sendo projetado que todas as suas peças juntas dão a exata semelhança de um ser humano. Enfim, Douglas Adams sendo Douglas Adams em seu melhor.



Agora, que importancia isso tem para a narrativa? Nenhuma, realmente. É apenas fluffy sem nenhum crunchy, como se diz no RPG.

Sim, eu sei, eu sei. Você pode não estar achando provavel que o livro TODO seja apenas uma coleção de paragrafos (maravilhosos) Douglasadanianos... e não é. Para ser honesto, existe um fio condutor juntando todas esses textos. E para quem não conhece o trabalho de Douglas Adams, é um fio condutor criativissimo, espetacular e super inteligente, como esperado do Dogão afinal.

Para quem é mais habituado ao seu trabalho a coisa vai parecer um tanto mais... sem vergonha. Eu digo isso porque a trama da Agência de Investigações Holísticas Dirk Gently - que só COMEÇA a ser  tocada para lá da metade do livro - nada mais é do que um compilado de dois textos anteriores de Douglas Adams.

Em 1979, Douglas Adams foi showrunner da temporada daquele ano de Doctor Who, e para a qual escreveu pessoalmente dois arcos: "A Cidade da Morte" e "Shada" - sendo que o segundo nunca terminou de ser filmado por questões trabalhistas na produção.

Ora, acontece que a trama da AIHDG nada mais é do que um reuso das ideias de Cidade da Morte com personagens que ele criou para Shada. E não é uma mera "inspiração", são literalmente os mesmos personagens e as mesmas ideias - o professor Chronotis até o mesmo nome tem, e embora ele use uma TARDIS como em Shada, obviamente ela não tenha esse nome aqui. O personagem título, Dirk Gently, é basicamente o Quarto Doctor: excêntrico, aventureiro e um pouquinho insensível. Richard MacDuff é um companion típico, cujo papel é principalmente ser surpreendido e perguntar “O que é isso?” quando confrontado com coisas fantásticas como fantasmas e máquinas do tempo.

– Noite ruim, hein?
– Diversificada. Teve desde assassinato até retirada de uma égua de um banheiro. Não, nem me pergunte.
(policiais conversando sobre os eventos iniciais do livro)

E enquanto eu entendo ele reaproveitar elementos de Shada - que nunca foi ao ar, afinal - o que ele reusa de Cidade da Morte já ... não soa tão legal assim, né amigo? Não estamos falando de um arco obscuro que nunca foi transmitido, estamos falando do arco mais bem avaliado e com maior audiencia da série clássica de Doctor Who. É como daqui a dez anos a Marvel fazer um filme sobre os Novos Mutantes enfrentando um vilão que quer eliminar metade da população do universo através de coletar jóias do poder e estalando os dedos para isso. Aí já é meio demais, né?

Enfim, isso torna uma venda mais dificil que o usual para os livros de Douglas Adams. Quando ele está com vontade de escerver, até a lista de compras do mercado dele é uma leitura deliciosa. Dirk Gently, entretanto, não parece o ponto motivacional literario mais alto da vida dele. Não é ruim, mas podia ser muito melhor.


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