Existe um fenômeno curioso na cultura que são as obras dedicadas a torcerem para os "bons bandidos". As pessoas tem uma tendencia a torcer para torcer pelos heróis que, segundo a letra da lei da sua época, estão violando-as desde que atendam uma demanda interiorizada da sua população. É aquele momento em que as pessoas veem alguém fazendo o que elas sempre "acharam certo", mas as leis locais as impedem de ter seus anseios atendidos.
Naturalmente, contra o que um "bom bandido" luta (e ganha o coração do seu publico) depende muito da cultura local e da situação da sua época.
Por exemplo, no século XV a população da Inglaterra alimentava a lenda de um bandido que só roubava de quem tinha demais (conquistado unicamente graças ao feito de ter nascido com sorte), e fazia pilhéria das autoridades locais. Quando você considera que, na época, as leis locais eram basicamente "o que deu vontade na cabeça da nobreza apenas porque sim e foda-se" (ou seja, igual ao judiciário no Brasil hoje), em que 1/3 da população do CONTINENTE morreu por causa de uma doença meio mocoronga como a peste negra porque eram filhadaputamente subnutridos e as condições de higiene era material de filme de terror, você meio que entende da onde a lenda de Robin Hood nasceu. No papel ele é tecnicamente um fora-da-lei, mas para as pessoas da época era o herói que elas queriam que existisse.
Outro exemplo de caso: pouca gente fala disso, mas todo mundo no Brasil hoje sabe que existem diversas regras sobre andar na rua. Nós temos que andar olhando por cima do ombro, escolhendo as ruas que vamos entrar e o horário, e basicamente andar em estado de defesa o TEMPO TODO. E mesmo assim isso não garantia que vai fazer diferença e que você não vai ser assaltado - na melhor das hipotes. Talvez nem elas mesmas percebam isso, mas elas estão fartas de viver desse jeito e o cansaço durante muito tempo leva a raiva. Andar hoje em qualquer grande cidade brasileira é uma situação estressante em que todo mundo sabe que a única regra que existe é dedo no olho e rasteira em quem der mole. Ninguém fala muito disso meio que porque a sociedade brasileira não é desenvolvida o suficiente ainda para ter ferramentas saudáveis de discussão, mas é algo que todo mundo sente. É uma coisa interiorizada, mas 62% dos jovens do Brasil sairia daqui sem olhar para trás dada a oportunidade. 6 em cada 10. Isso não é pouca coisa.
Isso explica, em boa parte, o sucesso estrondoso de Tropa de Elite. As pessoas estão cansadas, as pessoas estão com raiva, as pessoas querem vingança de quem elas passam o dia com medo. Isso é compreensível, e é exatamente isso que o filme entrega. Vingança contra "os bandidos". As pessoas estão fartas disso. Então o Capitão Nascimento é o herói que as pessoas gostariam que existisse, que tem controle da situação, que dá tapa na cara de bandido e faz as coisas "funcionarem". Se isso envolve quebrar as leis e até tortura, foda-se: "eles fariam pior comigo se eu der mole", é o que as pessoas pensam. Wagner Moura, o ator que interpreta o Capitão Nascimento, já disse em entrevista que acha extremamente trite que as pessoas vejam o personagem dele como herói e um sinal de problemas muito maiores nessa sociedade.
Então, "bons bandidos" nascem quando as pessoas querem dizer algo sobre o meio em que vivem.
A parte mais realista da Casa de Papel é que o cara é servidor publico a 27 anos precisou um grupo de assaltantes tomar a casa da moeda para ele ter o primeiro elogio por fazer um trabalho bem feito. |
E isso, é claro, se aplica também a "La Casa de Papel". Em 2012 o sistema financeiro da Espanha desmoronou de uma forma nunca visto antes, embora os motivos sejam basicamente o que sempre acontece quando governos acham que podem "aquecer a economia" (eles adoram essa palavra) e injetam uma quantidade estupenda de empréstimos em setores que não tinham real demanda para isso, formando uma bolha repleta de pessoas com dinheiro que elas não deveriam ter gastando em coisas que elas não realmente precisavam. Quando o fluxo de empréstimos do governo acaba, a coisa toda desmorona e todo mundo grita "Viu? O capitalismo não funciona, precisamos de mais intervenção do governo!", o que leva a mais governo achando que consegue direcionar e economia e todo ciclo se repete mais uma vez.
Mano, se o teu plano depende de uma mulher de trinta anos que usa colar de Anhk de gótica adolescente não surtar e fazer merda... teu plano não é tão sólido quanto tu pensa. #fikdik |
É por isso que crises econômicas são cíclicas, exceto em lugares que o governo se mete tanto que as crises são permanentes - como o Japão, por exemplo, que está em recessão a mais de 20 anos e no meio financeiro sua economia é conhecida como "economia zumbi".
Embora, é claro, nem toda população europeia entenda realmente como nascem as crises (bem pouca gente entende, na verdade), eles tem uma sensação geral de que para que lado estão os culpados. Em um grau maior ou menor eles sabem que todo o sistema financeiro europeu está MUITO errado e é aí onde entra La Casa de Papel: são bandidos que os representam.
Durante toda a série uma pergunta vai sendo construída na cabeça do espectador, até que no final ela é finalmente dita em voz alta: se os assaltantes estão roubando, eles estão roubando de quem, exatamente?
Todo crime precisa necessariamente de uma vitima, do contrário é apenas arbitrariedade do governo querendo mandar na vida das pessoas. Então, quem é a vitima aqui? Na série, os "bandidos" invadem a casa da moeda da Espanha e não roubam nada: eles usam as máquinas para fazer seu próprio dinheiro. Mais precisamente, eles imprimem 1 bilhão de euros. O que é meio o que a Casa da Moeda já ia fazer de qualquer jeito, então é o problema aqui? E não é como se eles fossem pegar esse dinheiro e construir uma caixa-forte do tio patinhas para ficar olhando para ele, esse dinheiro será gasto e será integrado a economia mundial - novamente, exatamente o que a Casa da Moeda já ia fazer também. Então quem é a vitima aqui, exatamente?
A série tem esse tema recorrente de que tem algo profundamente errado no sistema que governa a vida dos europeus mas ninguém está apontando o dedo para o problema realmente. Não é por acaso que o Professor bate frequentemente na tecla de o que eles estão fazendo é um ato de resistencia muito mais do que um crime - e enquanto isso não é particularmente importante no universo dentro da série, tem poucas consequencias dentro da narrativa - é profundamente importante para o espectador. A série dedica muita energia e força para estabelecer uma metanarrativa para com a quarta parede, para falar diretamente com publico muito mais do que com o universo ficticio dentro da narrativa.
Não é por coincidencia que os assaltantes elegem Bella Ciao como música tema da sua ação. "Bella Ciao" era uma canção cantada pelos membros da resistencia italiana contra o regime fascista de Mussolini (uma canção que, dado os resultados das eleições de 2018, sugiro que os brasileiros aprendam o quanto antes...). Durante todo o show, a música carrega suas esperanças de resistência - não é sobre o dinheiro tanto quanto sobre o que o dinheiro representa. Eles não se consideram bandidos, mas revolucionários contra um sistema injusto. O que ressoa profundamente verdadeiro com a realidade que a população europeia enfrenta. De certa forma, El Professor é para os espanhois o que Robin Hood era para os ingleses ou o Capitão Nascimento foi para os brasileiros.
Essa mensagem é tão profunda, e toca uma coisa tão verdadeira sobre o cotidiano do seu publico que ela é capaz de compensar uma série com muito, mas muitos, mas muitos mesmo defeitos tecnicos. Tecnicamente falando, La Casa de Papel não é uma boa série. Na maior parte do tempo, ela vacila em ser sequer uma razoavel. Tem alguns atores MUITO limitados (sim, Tóquio e Rio, estou olhando para vocês), ela não tem vergonha em usar todo e cada truque dos clichés baratos de dramalhão de telenovela (inclusive, mas não limitada a, amante grávida), todos os clichés dos filmes ruins de ação (como os policiais que desaprendem a atirar quando é conveniente para a história), histórias de amor muito bregas e câmera lenta em toda e cada cena de ação. Deus, como essa série sabe ser brega...
O plano do Professor, que brinca de Death Note com a inspetora da policia madrilenha, é em geral bem pensado, mas em muitas vezes só funciona porque os membros do governo tomaram decisões muito especificas que ele totalmente não tinha como prever - ou seja, funciona porque o roteiro disse que vai funcionar e foda-se.
De uma certa forma, pode-se dizer que a inteligência dos roteiristas é maior do que a criatividade deles. Então se prepare para muito amor proibido entre dois jovens, a policial com problemas pessoais, o líder que perde o controle por ser egocêntrico e perigoso, e tudo que você já viu em novelas antes. A edição também é terrível, porque a Netflix transformou uma série de 9 episódios em 13 porque... eles gostam desse número? Sei lá, a quantidade de séries que eles já estragaram fazendo isso é bem alta.
Na verdade, faz sentido que não fizeram isso: é uma ideia boa demais para ninguém do governo ter pensado nisso. |
Mas algum dos inúmeros problemas da série importam? Não. Nem um pouco. O que importa é que você torce para "esse bando de desgraçados", você quer que as coisas deem certo em um golpe onde muitissimas coisas podem - e vão - dar errado. Em grande parte por causa do carisma dos personagens (principalmente o Professor, Berlim e Nairobi), mas principalmente porque eles são a resistencia. E os que se opõe a eles são membros do governo que são invariavelmente incopetentes ou puramente maus (sendo Arturito, o diretor da Casa da Moeda, e o Coronel Prieto do serviço de inteligencia espanhola os maiores antagonistas do bando), não raramente uma mistura de ambos.
E isso é o que acontece quando um servidor publico decide ir para o ataque |
O jornal Le Monde chamou o show de "uma alegoria de rebeldia" e "um hino à coragem e à necessidade de pensar por si mesmo". Na Turquia, onde a série também é muito bem sucedida, é considerada “propaganda” pelo establishment: uma jornalista do canal estatal AkitTV twittou que poderia levar os jovens ao “terrorismo” e a momentos revolucionários como a revolta da juventude de Gezi em 2013, enquanto o ex-prefeito de Ancara vê nele "um perigoso símbolo de rebelião".
La Casa de Papel é um heist movie dividido em duas temporadas, metade Death Note e metade novela - com todas as qualidades e defeitos que estão implicitos nessas definições, mas ultimamente é uma obra relevante porque é o retrato do clamor internalizado de uma sociedade.
“Em 2011, o Banco Central Europeu criou €171 bilhões do nada. Assim como estamos fazendo aqui, só que maior. Você sabe onde todo esse dinheiro foi? Para os bancos. Diretamente da fábrica para os bolsos dos ricos. Alguém chamou o Banco Central Europeu de ladrão? Não. "Injeções de liquidez", eles chamaram. Estou fazendo uma injeção de liquidez, mas não para os bancos. Estou fazendo aqui, na economia real com esse grupo de desgraçados nós somos. Para escapar de tudo isso.
Em 2018, Robin Hoods não rouba os ricos para dar aos pobres. Ele hackeia o camarada Estado na sua própria fonte.