[ANIMES] My Little Monster (Tonari no Kaibutsu-kun) – resenha

| quinta-feira, 23 de abril de 2020

A síndrome de Asperger é uma variação do autismo clássico, e uma bastante esquisita. A grosso modo, o individuo praticamente não possui a capacidade de processar sentimentos, o que significa que a pessoa tem dificuldade em expressar sentimentos da forma socialmente adequada – o que é visto como apenas “falta de noção” – , mas a pessoa realmente não consegue entender que determinado comentário não deve ser feito, ou deveria ter sido feito de outra forma, ou mesmo em outro momento.

E, enquanto em um momento inicial pode parecer engraçado ter um amigo inconveniente, a longo prazo o desgaste de uma relação com alguém profundamente inconveniente assim, usualmente acaba por levar o melhor, mesmo das pessoas mais bem intencionadas.

A total desconexão do lado emocional com o comportamento prático da pessoa também leva a uma estereotipada falta de empatia – uma pessoa com Asperger não saberia te consolar, mesmo que ela soubesse que você precisa ser consolado, e é muito improvável que ela saiba disso, a menos que você diga isso explicitamente.

Isso não quer dizer que a pessoa não tenha sentimentos, apenas que ela não nasceu com a opção de “agir naturalmente.”

Na verdade, a falta de tato com os sentimentos é tão grande, que usualmente isto é visto puramente como ingenuidade e inocência, e não é realmente fora de lugar dizer que alguém assim tem o desenvolvimento emocional de uma criança.

Associe a isso as características tipicas do autismo – como a preferencia por padrões de repetição e universos seguros e bem definidos, como hobbies por exemplo – e você terá uma pessoa muito, muito, muito inconveniente e desinteressante. Tanto que é relativamente comum pessoas com Asperger não terem amigos próximos, e nunca virem a constituir qualquer tipo de relacionamento amoroso significativo. Tipo nunca, a vida toda. Esse é um cenário bastante recorrente.



O que não deixa de ser irônico, porque portadores de Asperger tendem a ter um nível de inteligencia muito acima da média, e conseguem compreender questões técnicas com um nível de facilidade impressionante – não é realmente raro um portador da síndrome passar em um vestibular da federal, ou em um concurso público, com pouco ou nenhum esforço, por exemplo. Na verdade, o grande estereótipo do “gênio sem noção” – tipo o Sherlock Holmes, por exemplo – vem justamente dessa síndrome.

Eu diria, aliás, que o Sherlock, interpretado pelo Benedict Cumberbatch no seriado da BBC, é o melhor exemplo possível disso.

Chega um determinado ponto da vida do aspie em que ele compreende (afinal, são pessoas altamente inteligentes) que, por mais que ele se esforce, nunca vai realmente se encaixar em uma dinâmica social comum… ou qualquer uma, na verdade. Isso leva ao isolamento e à solidão por um tempo, quando, então, a pessoa cansa de ficar sozinha e tenta “socializar” de novo – com resultados horrorosos, porque não existe magia neste mundo – o que, por sua vez, leva ao isolamento, e assim a um ciclo infindo, que não raramente termina com o suicídio (estudos mostram que 77% dos portadores de Asperger têm ao menos algum tipo de pensamento suicida, ao contrário dos apenas 17% da população “comum”).

Mas, antes dessa fase do “ciclo” em que você entende que deve apenas parar de tentar, existe uma fase de muita falta de noção e humilhação: a adolescência. Você pode pensar que toda adolescência envolve falta de noção e humilhação – o que é verdade – mas estou falando de coisas realmente esquisitas, que levam a pessoa a compreender que nunca vai ser normal, não de coisas que dão histórias engraçadinhas para contar depois.

E é aqui que eu queria chegar.


Por que eu estou falando disso? Porque saber o que é essa sindrome é realmente importante para entender o anime “My Little Monster“. Tanto que “my little monster” é uma expressão carinhosa, frequentemente usada pelas mães ao se referirem a seus filhos em grupos de apoio para portadores da síndrome.

Haru é um adolescente genial (do tipo que resolve cubos de Rubik por diversão etira as melhores notas da sala sem ao menos tentar) porém problemático, sem noção alguma na vida. E por sem noção, eu não quero dizer o seu típico bad boy de animes, e sim, alguém que desistiu de ir a escola, depois de mandar um garoto para o hospital em uma briga completamente aleatória – entre outros problemas sérios em seguir as convenções sociais mais simples de um colégio (tipo, não dizer para a professora que ela está sendo babaca, quando ela efetivamente estiver sendo babaca).

No primeiro episódio, por exemplo, ele encontra um “cachorro perdido”… que estava amarrado e com coleira. Ou então, ele tem dificuldade em entender porque é errado tocar uma garota sem o consentimento dela. Esse tipo de joselice.

Curiosamente, e isso o anime faz muito bem em representar, ele não faz isso por mal. Ele realmente faz apenas porque entende porque é errado.

Com efeito, Haru mora com o primo porque ele é tão problemático que o pai encheu o saco das suas imbecilidades e o expulsou de casa. O que não é tão distante da realidade, se querem saber.

Mas a nossa história começa mesmo com a apática e entediada Shizuku. Como muitas garotas da sua idade (não sei no Japão, mas por aqui é o que mais tem), Shizuku não dá a mínima para nada. Verdade seja dita, nunca lhe faltou nada, então ela não sente que precise de nada – a única coisa que lhe interessa é estudar e depois ter um emprego foda. Para todo o resto da existência, toda vida dela é um enorme e maciço “i don’t give a fuck”.

Porque ela não dá a minima pra nada mesmo. Ou pra ninguém.


E devido às leis da conveniência universal, Haru e Shizuku se conhecem e se apaixonam, e são felizes para sempre… só que não. O que acontece é que Shizuku tá tão pouco cagando pra tudo na vida, que ela tá cagando até pras bizarrices do Haru, e por esse motivo não liga a mínima se ele andar por perto.

E enquanto pra ela não é realmente grande coisa alguém na cola dela – porque ela  não dá realmente a mínima pra nada, caso não tenha ficado claro o bastante a esse ponto – para o Haru é tipo o acontecimento da vida dele alguém que não ligue para o jeito bizarro e grosso dele.

Não é surpresa realmente que, em menos de uma semana, ele diga que ama ela (prazer, isso é Asperger em uma casca de noz) e muito menos surpresa ainda que ela responda “ah tá, legal…”


Verdade seja dita, depois de determinado ponto a Shizuku tenta realmente, de verdade, gostar do Haru. Só que não vai. E às vezes parece que vai a muito pau e corda, então não vai. Porque, na boa, é muito difícil gostar de alguém assim, realmente difícil. Ela tenta honesta e genuinamente, mas tem coisas que não nasceram para ser. Essa é a dinâmica principal do anime

LÁGRIMAS DE UM PALHAÇO

Colocando assim, pode parecer que o anime é denso e pesado, só que não é. Ele é uma comédia romântica leve e carregado nas costas pelas joselices sem noção do Haru, que na maior parte do tempo são genuinamente engraçadas – tipo a obsessão dele por um galo, ou sua tendência a interpretar as frases muito literalmente (que é algo característico do Asperger, e dá para dar boas risadas, se não for com você).

O ponto forte do anime realmente são as gags visuais, que são leves e divertidas, mais divertidas ainda por serem plausíveis – ninguém faz animezice e tira uma bazuca das calças ou tem um pinto-foguete.


Totalmente não relacionado, mas voces não sabem a quanto tempo eu queria uma desculpa pra usar essa cena do pinto-foguete!

E é justamente por ser tão pra cima, leve e alto astral, que o anime acaba se revelando um excelente retrato de uma geração. Ao mesmo tempo que todos os jovens são super “normais” e “descolados”, e super ocupados com as suas vidas super legais, dá para ver nas entrelinhas o quanto eles são solitários, e pode parecer estranho eu dizer isso, dado o quão animado e colorido o anime é, mas ele é realmente sobre solidão.

A “turminha do Haru”, a gangue de amigos que ele acaba arrebanhando, parecem adolescentes colegiais super normais e saudáveis, mas que se agarram uns nos outros porque suas vidas são vazias de qualquer sentido, e preenchidas apenas por tédio e falta de propósito.


Quer dizer, eu não sou adolescente há um tempinho já, e não sei o quanto isso é realmente verdade ou não, mas posso dizer que, para quem olha de fora, parece bastante razoável.

Tanto que, para mim, a melhor personagem do anime é uma garota abusivamente bonita chamada Natsumi, cujo maior problema da vida é justamente o fato dela ser abusivamente linda. Por que isso implica que os caras só querem chegar nela com a intenção de botar o pinto-foguete para trabalhar, e as meninas não querem vê-la nem pintada de ouro, dada a inveja.

Como resultado ela é extremamente solitária.


Novamente, eu nunca fui mulher e muito menos sou bonito, mas já conheci algumas garotas incandescentemente bonitas que passaram ou passam por este mesmo problema.

Todos os personagens, neste anime leve e colorido, são de alguma forma quebrados e solitários – mesmo a própria Shizuku tem um motivo bastante plausível e relacionável para ter se tornado a pedra de gelo que ela é -, embora não demonstrem inicialmente. O que apenas aprofunda a sua solidão.

A GUERRA DE MIL DIAS

Agora, talvez, o maior problema do anime seja exatamente seu realismo na resolução de conflitos. Você pode achar que é estranho que ser realista seja algo ruim, mas o fato é que, muitas vezes, a realidade é algo chato e inconclusivo.

Por exemplo, o Haru não tem um desenvolvimento de personagem porque, na real, essa merda não tem cura. Não depende de vontade ou do “poder da amizade” ou nada desse tipo, como todos os tipos de distúrbios mentais graves, está além do que uma boa conversa pode resolver.


Por isso, a grande resolução de conflito do anime é que muitas coisas simplesmente não têm resolução nenhuma. O final parece em aberto, mas na verdade a mensagem é bastante sutil, ao dizer que eventualmente a Shizuku, por maior que seja sua boa vontade – e é – vai finalmente desistir, e seguir a vida dela adiante com alguém normal. Apenas porque é assim que as coisas são.

Nada disso é dito claramente, mas como eu já tinha dito, além das gags visuais, grande parte da beleza do anime vem do que é colocado nas entrelinhas. Existe realmente bastante a ser lido neste anime, o que não existe são finais conclusivos e muito menos felizes. Até porque, na vida não existe nada conclusivo, com exceção da morte.

Desnecessário dizer, claro, que uma comédia romântica de anime com slice-of-life sem grandes acontecimentos não é para todos. Para bem poucos, eu diria. Mas, caso a ideia não lhe pareça de toda ofensiva, eu recomendo dar uma checada nesta opção de anime da Netflix.
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