Geralt da Rivia. O Lobo Branco. O Carniceiro de Blaviken. Gweynbleidd. O bruxeiro.
Ao longo de dois jogos, a CD Projekt Red fez um trabalho espetacular em caracterizar e povoar o mundo do bruxador com reinos, tramas politicas, intrigas, monstros, segredos ancestrais e toda uma cultura de um mundo pobre onde monstros andam a solta e a guerra é uma vizinha constante. O mundo nunca nomeado por Andrzej Sapkowski é um caldeirão de preconceito, onde a vida humana vale muito pouco e não existe muito pelo que se lutar realmente.
Neste mundo, um mundo não tão diferente do nosso até que a conjunção das esferas derramou toda sorte de magia, demonio, elfo e desgraça sobre ele, crianças são submetidas a um excruciante trato alquimico e caso sobrevivam a isso, se tornam mutantes treinados para caçar monstros em troca de alguns trocados. Não é fácil ser um bruxeiro, especialmente NESSE mundo.
Mas... se é tão dificil e tão ruim assim, então porque eles fazem isso? Qual é a motivação, porque isso vale a pena? Porque Geraldo faz o que ele faz?
Nos dois primeiros jogos da série, a resposta foi "porque é um protagonista badass de videogame, e isso que personagens de videogame fazem". O que é verdade, é isso que personagens de videogame fazem.
Porém para o terceiro jogo da série, o maior e mais ambicioso jogo de videogame jamis produzido até hoje, a CD Projekt Red assumiu seu maior desafio narrativo até então: The Witcher 3 - The Wild Hunt é, no fim do dia, uma jornada emocional para mostrar o lado humano desse matador de monstros imbatível. O que Geraldo faz quando não está caçando monstros? Quem ele realmente ama? Do que ele se recente? Como Geraldo é enquanto ser humano?
Um dos preconceitos diz que os bruxeiros não possuem sentimentos humanos por causa das mutações que seus corpos sofrem, e enquanto isso obviamente verdade, é realmente verdade que os bruxadores são mais frios, distantes e cinicos do que o cidadão comum dos Reinos do Norte. Mas isso é por causa da mutação realmente, ou é a consequencia inevitavel da vida de miséria e morte que um bruxeiro trilha? Após passar quase um século vendo o mundo pelo que ele tem de pior, QUALQUER UM não ficaria assim, mutante ou não?
The Witcher 3 - The Wild Hunt é um jogo sobre tudo isso. E também sobre a maior história de amor jamais contada em um videogame até esta data.
Os dois primeiros jogos da série são quase um spin off dos livros, já que Geralt estava sem sua memória e não tinha muita personalidade além das escolhas de dialogo que o jogador escolhe. O foco dos jogos é mais na construção de mundo e política, algo que eles fazem excepcionalmente bem, mas dessa vez não, a coisa é bastante pessoal e embora ainda tenha toda a coisa de alianças, guerra e escolhas políticas, o jogo todo é sobre a grande jornada pessoal de Geraldo para encontrar e salvar o único verdadeiro amor da sua vida.
Não, eu não estou falando de ter que escolher entre Triss e Yennefer (o que não é uma escolha realmente, existem os que escolhem a Triss e os que estão errados, simples assim), mas sim sobre um amor muito mais mais verdadeiro, muito mais verdadeiro do que isso.
Estou falando, é claro, de Cirilla Fiona Elen Riannon. Mais conhecida como Ciri, e para Gerald sempre será a menina Ciri.
Paternidade é um tema raramente explorado nos videogames em qualquer grau satisfatório. Isso se deve em grande parte à tendência de os pais ou filhos dos personagens principais morrerem como parte de sua motivação, embora videogames ainda serem majoritariamente fantasias de poder juvenis ter algo haver com isso. Os dois únicos bons exemplos que me vem à mente são God of War, embora eu não tenha jogado esse jogo ainda e não posso falar muito sobre ele, e é claro The Last of Us.
Mas embora a comparação com The Last of Us seja inevitavel (porque como eu disse, não são muitos jogos nesse espectro para comparar), Witcher 3 tenta fazer coisas completamente diferentes do que o jogo da Naughty Dog. TLoU é sobre Joel redescobrindo o amor através de uma improvavel filha adotiva que o destino colocou no seu caminho, The Witcher 3 é uma versão disso muitos anos para frente.
Em TLoU, Joel acabou de conhecer Ellie e embora ninguém possa questionar que sua jornada seja sobre aprender a ama-la, ele ainda sim no fim do jogo ele a conhece a no máximo um ano. Como seria se o Joel tivesse criado e amado a menina Ellie pelos ultimos dez, quinze anos? O que ele estaria disposto a fazer, até onde ele iria por ela? The Witcher 3 é basicamente sobre isso, sobre Geraldo revirando o mundo inteiro de ponta cabeça, revirando outros mundos em busca da sua filha. Porque ele verdadeira e genuinamente a ama, e não existe uma única coisa neste ou em qualquer outro mundo que ele não faria por ela.
Mas porque isso soa tão verdadeiro, tão poderoso? Qualquer roteirista pode escrever um personagem dizendo "eu te amo", mas fazer o publico sentir isso no tutano dos seus ossos é uma história completamente diferente. O que a CDPR faz aqui é juntar todo o contexto de todos os três jogos da série para você entender porque a menina Ciri é tão importante para Geraldo.
Porque, quando você pensa sobre isso, a vida de Geraldo da Rivia é horrível. The Witcher se passa em um mundo de fantasia repleto de monstros literais e figurativos. As terras são devastadas pela guerra e pela ausencia de lei, graças a invasão dos Reinos do Norte pelo poderoso Império Nilfgaardiano. As coisas são ainda piores para as raças não humanas e os praticantes da magia já que com toda desgraça e miséria acontecendo, a Igreja do Fogo Eterno ascendeu a um poder nunca antes imaginado. Quando as pessoas estão desesperadas e sofrendo, elas querem respostas simples e poderosas, tal qual aconteceu no nosso mundo na idade média. Caça às bruxas e inquisição tornaram-se mais a norma do que a exceção, apoiadas por Radovid, o Louco - rei de Redania, o último reino livre nos reinos do norte.
Bruxeiros são, tecnicamente, mutantes e portanto sujeitos a todo desprezo e maltrato que os seres humanos são tão eficientes em empregar em pleno 2020. Geraldo entende perfeitamente como as regras do jogo funcionam, e ele explica a humanidade perfeitamente em dado momento:
Hatred and prejudice will never be eradicated. And witch hunts will never be about witches. To have a scapegoat - that’s the key. Humans always fear the alien, the odd. Once the mages had left Novigrad, folk turned their anger against the other races…and as they have for ages, branded their neighbours their greatest foes.
Caça as bruxas nunca é sobre as bruxas, realmente. Ou sobre os imigrantes. Ou sobre a cor da pele de alguém. Ou pelo sexo de quem uma pessoa ama, ou qual genero ela precisa ter para ser feliz. É sobre algo muito mais sujo, mais feio, mais podre dentro da própria essencia do que faz as pessoas serem pessoas. E o trabalho de um bruxeiro é lidar com isso diariamente.
Ser um bruxeiro é mais ou menos o equivalente a ser um caçador de recompensas negro no sul dos Estados Unidos na época da guerra civil. As pessoas te odeiam pelo que você é, mas precisam de você. As vezes isso as faz te odiar mais ainda, as vezes faz elas serem gratas. O que nunca faz é o trabalho ser fácil.
Mesmo quando tudo dá certo, mesmo quando as pessoas te agradecem e dizem "eu estava errado sobre o seu tipo, obrigado", ainda sim um bruxeiro trabalha sobre uma pilha de corpos e gente morta. Ninguém se torna um fantasma porque morreu na cama aos 94 anos cercado da família que o ama. São sempre histórias tristes, muito frequentemente injustas e crueis. E quando não é um fantasma, é um monstro que matou o irmão, a esposa, o filho de alguém. O melhor que um bruxeiro pode fazer é impedir que o monstro machuque mais alguém, mas ele nunca pode concertar o estrago que já foi feito. Geraldo é praticamente um Winchester medieval, e o jogo não apenas faz um trabalho muito bom em gamificar as investigações e caçadas, como passar essa sensação que mesmo no melhor cenário possível, o trabalho nunca é fácil.
Então, em um mundo tão dificil, tão cruel, tão sujo, como Geraldo consegue fazer o que ele faz? Como ele aguenta?
Bem, essa é uma forma |
A resposta é que The Witcher 3 não é um jogo sobre o que há de pior no mundo, mas sobre o tem de melhor. Quando não está caçando monstros, quando está apenas bebendo com seu amigo Zoltan ou aguentando as trapalhadas de seu parça Dandelion, quando está batendo cabeça com a Yennefer ou ajudando a Triss a ser a única feiticeira moralmente decente dos Reinos do Norte, são por momentos assim que Geraldo realmente vive. É por isso que ele luta realmente, para proteger esses pequenos e maravilhosos momentos de felicidade e é impressionante como ele parece uma pessoa inteiramente diferente nestes momentos que ele sente que pode abaixar sua armadura emocional.
Os melhores momentos do jogo são esses, e definitivamente um dos melhores momentos da história dos videogames é quando Geraldo tem que passar a noite esperando em Kaer Morhen com Yennefer e dois outros colegas bruxos que cresceram com ele na antiga fortaleza dos Witchers. Durante uma noite, uma maravilhosa noite inteira, Geraldo não precisa ser o Carniceiro de Blaviken, ou um caçador de monstros que luta com fetos abortados do capeta em base diária. Durante uma noite inteira, ele pode baixar a guarda e ser só um cara se divertindo com seus irmãos de armas que tem uma vida tão merda quanto a dele, quando não muito pior. Logo o dia vai nascer e o mundo vai voltar para cobrar a conta como ele sempre faz, mas por essa noite, apenas por essa noite, Geraldo pode se permitir ser apenas um cara. E é engraçado, é divertido, é lindo. De fato é tão lindo que chega a ser triste, porque todos os dias não podem ser assim? Porque é preciso quebrar todas as regras apenas para roubar um par de horas, porque não pode ser sempre assim?
E é por isso, e é por esse motivo que o amor pela sua filha adotiva é algo tão importante para o Geraldo. Porque em um mundo tão dificil, onde tudo é tão terrível, ela é uma eterna ilha onde Geraldo pode sempre colocar sua armadura de lado. Por isso a menina Ciri é tão especial para ele, porque ela representa tudo que existe de bom, tudo pelo qual vale a pena lutar nessa vida de merda que ele leva.
Isso não é algo exclusivo do Geraldo. Em certo sentido, todos os bruxeiros de Kaer Mohren sentem isso por ela. Não existe nada que Eskel, Vesemir ou Lambert não fariam por ela, porque criar aquela menina de genio forte em uma fortaleza de bruxeiros foi o momento mais puro e honesto que eles tiveram em todas suas longas decadas de vida. Como tão bem disse o Professor em La Casa de Papel, tudo isso é para ter um único momento verdadeiramente bom na vida desse bando de desgraçados que somos nós.
Incidentalmente, existe um momento que lembra muito The Last of Us nesse jogo e que ressalta todo o ponto aqui. Depois de encontrar Ciri, Geraldo sabe que a Caçada Selvagem vai continuar indo atrás dela até o fim dos tempos, e decide que o melhor curso de ação é reunir todos os aliados que ele puder em Kaer Mohren e tomar uma dramática última batalha contra a Caçada. Isso inicialmente funciona muito bem, até o momento em que falha completamente. No dia seguinte, Ciri está se sentindo culpada pelas pessoas que morreram, já que todos ali se voluntariaram para arriscar suas vidas contra a força mais perigosa desse e vários outros mundos (suponho que a Caçada Selvagem só seja uma ameaça menor do que dragões) para salvar a dela.
E é nessa hora que Geraldo decide ajuda-la. Mas ao invés de ver girafas com ela, ele começa uma batalha de bolas de neve com Ciri para faze-la rir e pensar em outra coisa. Geraldo da Rivia, outra acusado de ser assassino de reis, brincando de guerrinha de bolas de neve e rolando na neve com sua filha, você pode acreditar nisso? É isso que a menina Ciri realmente representa para ele.
Claro, ajuda muito que a própria menina Ciri seja uma personagem realmente, realmente gostavel. É até certo ponto impressionante em como a CDPR caracterizou ela como alguém tão gostavel, porque no papel ela poderia ser uma das personagens mais Mary Sue da história. Ainda sim você consegue entender e até mesmo sentir porque ela é tão importante para todo mundo. Inclusive você.
Entretanto, como tudo nesse mundo, não existe panaceia que dure para sempre. Ciri é a pessoa mais poderosa do mundo, tanto magica quanto politicamente, e com isso vem várias responsabilidades. O que significa que ela não pode ficar e brincar de ser a filha do Geraldo para sempre, por mais que ela realmente quisesse isso. E Geraldo é apenas um simples bruxeiro no fim do dia. Ele não é um rei, nem um imperador, nem mesmo uma feiticeira (que nesse mundo estão politicamente eras acima de simples bruxadores). Ele é só um simples bruxeiro, que pode ser útil se você tiver problemas com um Fetulho ou um Afogador, mas não muito mais do que isso. E o destino da menina Ciri é muito, muito, muito mais do que isso.
Geraldo nunca se torna mais do que isso, no fim do dia. Ou mesmo é o protagonista de alguma coisa. Ele ajuda a derrubar um rei louco, mas não é ele que dá o golpe final ou ascende ao trono no vácuo de poder. Ele ajuda a cortar a cabeça da Caçada Selvagem, mas muito mais importante que ter vencido um duelo foi quem organizou politicamente para que o rei da Caçada Selvagem perdesse apoio em seu mundo natal. Geraldo só é util para lutar, no fim do dia, e existe um limite bem baixo de até onde isso pode te levar.
Enquanto você consegue sentir nele de vez em quando o quanto ele se recente por ser uma casta inferior em meio a tanta gente importante que ele anda, o real problema é que ele nunca vai ser bom o bastante para ser o destino final da menina Ciri, e ele sabe disso. O que significa que o tempo que eles tem juntos é limitado, e mais cedo do que tarde essa fantasia de rolar na neve e apenas poder ser feliz vai terminar para sempre. Mesmo que tudo saia perfeitamente bem, ainda sim será um final amargo.
E é esse elemento trágico que torna essa história tão bela, tão única. Há uma beleza incomparavel em coisas belas que se perdem para sempre, desde as arvores da luz de Silmarillion cuja perda resultou em toda história da Terra-Média. Eu acho Blade Runner um filme bem ruinzinho narrativamente, apesar de seus méritos tecnicos e ambientais, mas esse filme acontece de ter o melhor monologo da história do cinema, quando o vilão do filme está morrendo
Cada momento que Geraldo e Ciri passam juntos também os aproxima de ser o último. Até que efetivamente seja o último. Todos esses momentos, toda essa luta, inevitavelmente vai se perder. Como lágrimas na chuva.
Se vai ser um último momento bom ou ruim depende das suas escolhas. Talvez seja uma despedida pacifica e em paz com o seu destino (como o Doutor do Capaldi, "I let you go"), talvez seja trágica com sangue e morte. Mas não será menos uma despedida por conta disso. Não tem uma única coisa no mundo que Geraldo não faria pela menina Ciri, mas parar o tempo não está entre as coisas que ele um simples bruxeiro pode fazer.
É assim que Witcher 3, a épica e tecnicamente perfeita saga de Geraldo da Rivia termina. Um dos maiores jogos de todos os tempos, uma aula de como se faz videogame que será lembrada pelas próximas decadas não apenas por causa de todas as inacreditaveis maravilhas tecnicas que faz, mas por causa do que faz você sentir. Ele te faz, te faz chorar, faz você se importar com o destino daquele bando de desgraçados tentando um momento de felicidade em um mundo fodido.
Tecnicamente e artisticamente, corpo e alma, é o melhor que os videogames tem a oferecer como midia. Existem coisas que você nunca, nunca, nunca deve fazer nesta vida em qualquer outra seja você um imperador que domina todo o norte, um rei elfo de uma horda de saqueadores ou uma bruxa do pantano: nunca fique entre Geralt da Rivia e sua filha. Grandes são as chances de que essa será a última coisa que você fará na sua vida.
E por isso, The Witcher 3 - A Caçada Selvagem, é um jogo perfeito.
Tão perfeito, de fato, que eu possívelmente não vejo como a CD Projekt Red pode possivelmente superar o que eles fizeram aqui em Cyberpunk 2077. Honestamente, acho que NÃO TEM COMO fazer. Sério mesmo.
Wake the fuck up Samurai, we have a city to burn. |
Hmm, quer saber? Esquece o que eu acabei de dizer.