[GAMES] THE OUTER WORLDS (ou vocês mataram os jogos de mundo aberto, seus bastardos)

| terça-feira, 3 de dezembro de 2019


De tempos em tempos (as vezes muitos tempos entre estes tempos) surge uma obra que simplesmente muda as regras do jogo. As vezes surge algo tão bom, tão bem feito, tão incrível que nós enquanto publico-consumidores apenas dizemos "ok, é isso. Nós não vamos aceitar menos do que isso daqui pra frente!".

No cinema, por exemplo, temos o caso de Logan. Enquanto os filmes de super-heróis estavam sendo feitos de qualquer jeito e se contentando em apenas existir e não serem horriveis, James Mangold colocou o pau na mesa e disse "Eu não quero fazer um filme de super-heróis bom, eu quero fazer um filme bom. Ponto.". Sem nenhum "se", sem nenhum desconto. Um filme bom, feito por adultos e para adultos apreciarem enquanto filme.

E a partir deste ponto nós meio que começamos a exigir que os filmes não fossem menos que isso. Apenas colocar pessoas com roupas coloridas soltando poderes de CGI não era mais suficiente, nós precisamos agora de um tema, de algo sobre o que esse filme quer falar porque nós não vamos aceitar menos que isso. E a partir deste ponto a Marvel começou a fazer filmes de super-heróis com coração, com um propósito narrativo. Capitão América 2: Guerra Civil é mais do que um filme sobre um cara vestindo uma bandeira e usando um escudo, é um filme sobre liberdades individuais e até onde é uma boa ideia abrir mão da liberdade em troca da segurança.


Depois disso tivemos filmes que tem um propósito, que tem um coração. Não apenas na Marvel, mas a DC também começou - aos trancos e barrancos, mas agora a coisa engrenou - a fazer filmes que podemos parar e perguntar para ela: "ok, mas porque você está me contando essa história? Qual é o seu ponto aqui?". Filmes como Pantera Negra e Joker jamais teriam existido sem o game changer da Fox.

As vezes também o game changer também se dá pela sua maravilhiedade tecnica. A obra não tenta fazer nada espetacularmente inovador, apenas executa o que já existe tão bem que nós simplesmente nos recusamos a aceitar menos que isso dali para frente. O melhor exemplo disso é John Wick. John Wick simplesmente estragou os filmes de ação, eu nunca mais vou sequer cogitar aceitar um filme de ação com a porcaria da camera tremendo ou que as coreografias não tenham sido feitas por um profissional com anos de experiencia no ramo.

Desculpe, caras, mas eu não vou aceitar menos que isso daqui pra frente. Simplesmente não vou e ninguém deveria. Existe a expressão em inglês "set the bar", que é exatamente o que algumas obras fazem. Daqui pra frente você tem que ser esse tanto bom para merecer atenção.

Estou falando isso, é claro, porque Outter Worlds é uma dessas obras. Como já cantava o Twisted Syster 30 anos atrás, we won't take it anymore.


Por muito tempo nós aceitamos que videogames, tais como os primeiros filmes de super-heróis, eram uma midia inferior. Que eles podiam ser julgados por uma métrica "café com leite", passando a mão na cabeça porque "é só um jogo, não dá pra exigir mais". Sim, dá pra exigir mais e nós não vamos aceitar menos do que isso.

Por anos nós sofremos com uma aberração, um atentado contra a decencia e a inteligencia chamada Bethesda. Mais conhecida pelas suas séries Fallout e Elder Scrolls (sendo o capitulo 5, Skyrim, o mais popular), a Bethesda é uma máquina jogos atulhados de bugs, uma engine absurda com física quebrada, ação apenas minimamente funcional e narrativa que não pode ser descrita como nada senão PATÉTICA. Quero dizer, a escrita da Bethesda é constrangedora e nenhum adulto deveria ser visto jogando isso:


Por muito anos a Bethesda prosperou vendendo milhões e milhões dessas aberrações na forma de jogo. Mas... porque nós aceitamos isso? Bem, para usar outra expressão em inglês, "we didn't know any better".

Nós não sabiamos melhor que isso. Entretanto aqui e ali espocavam jogos que não, que não apenas dá para ser melhor que isso como, PRECISA ser melhor que isso! The Last of Us, The Witcher e agora Outter Worlds. Sim, Outter Worlds é um jogo dessa turma.

E é um caso muito especial, porque ele usa a estrutura dos jogos da Bethesda para mostrar como dá pra fazer direito usando esse mesmo frameset e mesmo sem o tempo e orçamento de um AAA. O que você precisa é sentar a bunda na cadeira e escrever, isso é o que você realmente precisa.

Isso é mais especial ainda vindo da Obsidian, a criadora da série Fallout - uma série de CRPGs isometricos para PC - que vendeu os direitos para a Activision e viu sua criação que até então era conhecida pelo senso de humor negro e dialogos inteligentes ser transformado em uma das aberrações da Bethesda


A primeira vista, Outter Worlds parece bastante com Fallout e isso sozinho foi suficiente para me tirar o interesse do jogo. Verdade seja dita, OW parece um Fallout melhorado.

Isso quer dizer que ele usa o mesmo sistema de criação de personagem de Fallout, só que melhorado.


Atributos, skills e talentos, só que colocados de uma forma melhor, de maneira que você entende o que cada uma dessas coisas faz

Ele também usa um sistema de combate muito similar ao V.A.T.S. de Fallout, só que melhorado. Aqui ao invés de pausar o jogo e entrar no "modo RPG", com chances matematicas de acertar o tiro, o seu VATS aqui desacelera o tempo - ao invés de paralisa-lo - permitindo que você mire melhor. Essa pequena alteração transforma a aberração que é o combate de Fallout (que consegue ser ao mesmo tempo um sistema de combate de RPG mediocre e um jogo de ação mediocre) em um sistema de combate onde, olha só, é divertido jogar! Oh, quem diria,  hã?


Tudo que Fallout faz, Outer Worlds faz melhor. O combate é melhor, os menus são melhores, o dialogo é melhor, as escolhas criativas são melhores. Anything you can do, i can do better - como já dizia a música.

BETHESDA: Nosso jogo terá 200 horas de duração, mesmo que não tenhamos conteúdo para mais do que 10!
OBSIDIAN: Hmm, isso é meio bosta. O jogo vai durar o quanto ele precisar durar. Talvez o jogador termine em 10 horas, talvez em 50. Acho até que dá pra terminar em 30 minutos dependendo do que o jogador fizer.
BETHESDA: Não, espera, não é assim... Mas enfim, nosso mapa aberto terá um bilhão de quilometros quadrados, mesmo que não tenhamos nada interessante para colocar neles!
OBSIDIAN: Legal champs, mas a gente vai fazer mapas pequenos e fechados de forma a não despediçar o tempo do jogador com coisas que não interessam. Em compensação vamos crafta-lo a mão para ser repleto de coisas interessantes, que tal?
BETHESDA: Nossa narrativa foi escrita em um guardanapo 5 minutos antes de começar a programar o jogo, então é obvio que os NPCs importantes para essa piada de mal gosto que chamamos de história são indestrutíveis!
OBSIDIAN:


BETHESDA: Espera, como assim dá pra matar os NPCs? Quer dizer, você teria que... meu deus... pensar em formas alternativas de continuar a campanha?
OBSIDIAN: Sim, foi o que nós fizemos. 
BETHESDA:

OBSIDIAN: Claro que não dá pra cobrir tudo que o jogador pode querer fazer, mas nós tentamos abraçar o maior número de caminhos possíveis.
BETHESDA: Mas... mas... isso dá trabalho!
OBSIDIAN: Sim, e não é pouco realmente.
BETHESDA: Mas... mas... videogames não são para ter trabalho, são para lançar as coisas de qualquer jeito e se aproveitar do complexo de vira-lata dos gamers, que acham maravilhoso qualquer merda que a gente fizer!
OBSIDIAN: Nós discordamos. Videogames merecem apenas mais do que fazer o absolutamente minimo necessário, e nós reflitmos nossa crença na forma que a chain quest design é ordenada. Da trabalho, mas acreditamos ser o caminho a se seguir quando não se tem dinheiro para apenas razzle-dazzle com seus gráficos.
BETHESDA: A chain-o que?
OBSIDIAN:


Outer Worlds é um jogo da Bethesda melhor que qualquer jogo da Bethesda em qualquer métrica que você olhe. Mas, honestamente, esse não é sequer o ponto aqui. Estas são apenas as ferramentas para se chegar em um objetivo, não a meta em si.

O que a Obsidian queria não era dizer "olha, é assim que se faz um Fallout 3D!", eles estão tão, mas tão acima dessa mediocridade que seu objetivo aqui é outro e existem dois pontos que se tem que falar sobre Outer Worlds: tom e estrutura.


Falaremos sobre a tonalidade primeiro.

Parte do problema eu tenho com os RPGs ocidentais modernos é o desejo deles de criar mundos cada vez maiores, com cada vez mais o que fazer. É uma coisa estranha para reclamar, eu sei, mas chegou ao ponto em que acho que esses jogos estão me empurrando em um sandbox sem direção e fazendo com que seja meu trabalho descobrir como se divertir. O que The Outer Worlds faz é uma abordagem bem old school que tenta emular a sensação de - olha que loucura - estar jogando um RPG de mesa.

A primeira coisa que você nota é que seu personagem não tem voz. Eu não me lembro do último jogo que joguei onde realmente tive que ler minhas opções de diálogo para acompanhar a conversa e isso é a coisa mais importante do mundo. Quando você dubla as falas do personagem, você engessa o dialogo severamente. Quando não tem isso, um programador pode ter uma ideia para um dialogo bom as 3 da manhã faltando 2 dias para entregar o jogo e simplesmente adiciona-lo ao jogo sem escangalhar a coisa toda. 

O fato de os escritores terem dedicado tempo para eu poder discutir o meu próprio codinome realmente é algo que faz diferença pra mim
Foi como acordar de um sonho.

Nos últimos seis ou sete anos, senti que não tinha nenhuma agência sobre as decisões de meus personagens. Embora tenha sido um grande truque quando as árvores de diálogo do VO foram introduzidas em Mass Effect, não demorou muito para eu perceber o quão as conversas superficiais se tornaram nos RPGs. Havia a opção boazinha, neutra e a malvada, e não era dificil identificar qual era qual. Mas de repente, com The Outer Worlds, pela primeira vez em muitos anos eu não sabia o que cada resposta significava. Se eu pegar aquela opção, vai acabar o dialogo? Vai falhar a quest? Vai abrir uma nova possibilidade? Ou é só uma piadinha engraçada?

Pela primeira vez em muitos e muitos anos, eu simplesmente não sabia. E não saber te dá uma liberdade absurda, porque você desencana dessa coisa de tentar "ganhar o jogo" e apenas se diverte interpretando um personagem! Eu acho que eu nunca realmente tinha me divertido interpretando um personagem em um videogame, mesmo em Mass Effect! E foi lindo, eu PRECISO de mais disso na minha vida!


Tem uma quest em que um dos membros da sua tripulação revela que na verdade vem de uma familia rica e esnobe, e que adotou essa vida de pirata espacial para emputecer os pais (não com essas palavras, mas você entende mais ou menos isso). Então ela te pede que, quando você for com ela visitar os pais, seja o mais nojento e desagradavel possivel para deixa-los bem desconfortaveis.

Quando chega a hora do dialogo, você tem a opção de ter uma conversa normal, de não se meter muito na lavagem de roupa suja da familia, de ficar do lado dos pais ou... cuspir no chão e dizer que não prestou muita atenção em nada do que eles estão falando, mas que tá de olho em roubar toda prataria da casa na saída!

E cada um desses caminhos ramifica em um relacionamento diferente com o seu companion! Eu me diverti tanto fazendo isso, mas tanto!


Existem opções de diálogo suficientes em cada conversa para que cada jogador realmente faça do seu personagem quem ele quer que seja. Outer Worlds prova os RPGs não precisam de uma história épica e abrangente para serem envolventes e divertidos. A verdade é que The Outer Worlds não tem uma história que eu chamaria de incrivelmente envolvente, mas uma simples que é magnificamente bem contada. Quase todas as missões secundárias mantiveram minha atenção, e elas nunca pareceram tediosas ou encheção de linguiça apenas para artificialmente aumentar a duração do jogo (algo que Witchter 3 já havia dado aula de como se faz alguns anos antes, mas que dá um trabalho do cão de fazer). 

A melhor parte é que até o personagem do jogador entra nas piadas. Eu me acostumei ao meu personagem nos RPGs, tendo a personalidade e o humor de um protagonista de Friends e facilmente sendo o personagem mais chato do jogo. Aqui, eu ria constantemente das opções de diálogo que tinha ao me comunicar com minha equipe e com os vários personagens que encontrei. Dialogos em videogames podem ser divertidos, espalhem as boas novas!


Embora o jogo freqüentemente seja de um sassy fireflyesco, ele oferece algumas surpresas na profundidade dos meus companheiros e nas histórias que eles tinham para contar. Quando membros da minha equipe me pediram para ajudá-los em uma tarefa, presumi que participaria das mesmas missões de vingança e romance de sempre outros RPGs, mas o que The Outer Worlds me ofereceu foi revigorante. Há uma profundidade oculta nesses personagens que o jogador só aprenderá tendo tempo para conversar com eles. Em matéria de profundidade e diversidade de personagens, Outer Worlds me lembra bastante Steve Universe e esse é um dos maiores elogios que eu posso fazer.

Adicione a isso que seu relacionamento com os personagens é influenciado pelos seus atributos, e nós temos algo realmente mágico acontecendo aqui. Você quer fazer um personagem com força no máximo mas o carisma de um ator de sitcom da Nickelodeon? Tudo bem, mas não se surpreenda se os dialogos forem mais distantes, meio como se as pessoas estivessem intimidades pelo seu porte.



Não é uma ideia nova fazer seus atributos e skills influenciarem seus dialogos, apenas dá trabalho de sentar e escrever. E a Obsidian não tem medo do trabalho.

Em termos de ação, The Outer Worlds faz muito bem, mas certamente não reinventa a roda. Existe uma variedade decente de armas para carregar enquanto você dispara, explode e corta seu caminho pelo espaço. A maioria das armas tem personalidades únicas e existem tipos diferentes de munição para manter o combate interessante.

Lutar é geralmente divertido e raramente uma tarefa, ao contrário de muitos outros RPGs do gênero, mas não há nada de especial nisso. É difícil usar isso contra Outer Worlds, no entanto, já que eu estava sempre me divertindo.



Parte disso é auxiliada pela compartimentação das áreas jogáveis, algo que deu muito certo em The Witcher 2  e é bem executado aqui tambem. Cada planeta tem sua própria personalidade distinta e varia em tamanho de um mini-sandbox a apenas uma dungeon. Tem um punhado de missões de história principal a serem feitas em cada planeta e uma grande variedade de missões secundárias para me manter ocupado, mas nunca o suficiente para me sentir sobrecarregado. Eu poderia facilmente concluir todas as minhas tarefas e passar para o próximo planeta.

Ocasionalmente uma missão te pede para retornar a um lugar que já havia visitado, mas nunca parece com backtracking preguiçoso. A experiência geral é boa o suficiente para parecer uma aventura, mas pequena o suficiente para te impedir de ficar frustrado e eventualmente entediado com todas as missões do seu log.

E, bem, agora que eu já me dediquei suficientemente sobre como o jogo chegou até aqui e como ele funciona, eu posso passar a falar sobre a coisa que realmente importa: sobre o que ele é, o que ele tenta fazer e qual o caminho que ele usa para chegar lá. E, acredite, The Outer Worlds tem muito a dizer.

You know, the good stuff



(to be continued)
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