[FILME] RAHXEPHON: Pluralitas Concentio
É uma prática bastante comum no Japão que uma série em anime tenha um filme de recapitulação lançado nos cinemas. Os vinte e pouco episódios da série não apenas são cortados e editados pra caber em duas horas de filme, como frequentemente são adicionadas novas cenas e a edição dá um novo angulo para a coisa toda - usualmente explorando melhor um tema que ficou meio nas coxas na obra original.
O exemplo mais iconico dessa prática comum é o filme "Macross: Do You Remember Love?", que apesar de usar as cenas do anime original é uma experiencia inteiramente diferente, com foco muito maior no romance, a magia da edição e da redublagem transforma a Minmay de uma fedelha mimada e meio chatinha em uma estrela trágica... e não ofende que esse filme tenha uma das músicas mais bonitas que já tocou em um anim (imho), a "Do You Remember Love?" do título
https://youtu.be/wckZcVFLU24
Mas pq eu estou falando disso? Bem, pq pntem eu falei em como RahXephon apresenta conceitos intrigantes e um visual marcante, porém carece da profundidade emocional e coesão temática que tornaram Evangelion um marco cultural. Corta então para o filme de recapitulação de RahXephon, lançado nos cinemas com o nome "Pluralitas Concentio" e eu pensei "hã, se existe um anime na vida que pode usar uma nova edição, um tapa nos seus temas e um banho de loja completo, certamente é esse. Hã, acho que preciso comprar mais Whey também... espera, eu não fechei o balão de pensamento? Tá gravando ainda?".
E rapaz, como eu estava certo. Embora não seja perfeito, o filme de RahXephon representa um esforço muito mais focado e coeso, apresentando uma história que finalmente sabe o que quer ser - me levando a eu me assustar o quão certo eu sempre estou sobre tudo, é meu maior poder e minha maldição. Vamos a isso então.
A maior diferença entre o filme e a série é a clareza de propósito. Enquanto a série tropeça em sua tentativa de equilibrar um enredo complexo com temas filosóficos que soam vazios, o filme opta por simplificar. Ele reduz a quantidade de personagens em foco e prioriza a relação entre Ayato e Haruka, criando uma narrativa centrada em dois protagonistas cujas motivações são claras e compreensíveis. Esse foco narrativo é um grande avanço em relação à série, onde os personagens frequentemente eram utilizados mais como engrenagens para mover a trama do que como pessoas com jornadas emocionais críveis.
Ayato, o protagonista, é talvez o maior beneficiado por essa abordagem. Na série, ele é retratado como um personagem reativo e passivo, frequentemente perdido em meio aos eventos ao seu redor. No filme, no entanto, ele ganha agência e propósito. Sua conexão com Mishima, que na série era nebulosa e mal explicada, aqui se torna um ponto emocional claro: Mishima é o alicerce que ajuda Ayato a manter sua sanidade em meio ao caos. Essa mudança dá ao personagem uma força emocional que estava ausente na série, tornando sua jornada muito mais envolvente.
Haruka, por sua vez, é transformada em uma personagem muito mais sólida e interessante. Na série, sua caracterização era inconsistente, oscilando entre uma maturidade admirável e comportamentos que não condiziam com sua posição ou história. No filme, Haruka é apresentada como uma figura determinada, madura e emocionalmente rica. Sua relação com Ayato é explorada de forma mais profunda, com o passado compartilhado entre os dois ganhando destaque. Momentos como a revelação de que Haruka conhecia Hiroko, um ponto trágico na história de Ayato, adicionam camadas de complexidade à personagem e tornam suas escolhas muito mais impactantes.
A interação entre Ayato e Haruka é o coração do filme, e a decisão de concentrar a narrativa nesse relacionamento foi acertada. O filme constrói essa relação de maneira orgânica, mostrando como os dois personagens crescem juntos e como suas experiências compartilhadas os ajudam a enfrentar os desafios que surgem. Isso culmina em uma conclusão emocionalmente satisfatória, onde ambos tomam decisões como parceiros iguais, refletindo a própria sinergia do RahXephon e seu piloto.
Outro ponto forte do filme é a forma como ele lida com a exposição. Na série, a exposição era frequentemente um dos maiores problemas, com diálogos expositivos confusos e jargões que não faziam sentido para o público. O filme tenta uma abordagem diferente: ao invés de ter personagens usando termos que nunca são explicados ao espectador para fazer monologos diante de outros personagens que já tem essas informações, que ideia louca seria se... sei lá, um personagem que não sabe do que eles estão falando perguntasse a alguem que sabe?
Louco, absolutamente louco. Ayato realmente não sabe o que são "mulianos", então ele pergunta. E alguém responde. Uau, que forma louca de contar uma história! Deve ser tão louco que por isso a série preferiu usar alguém fazendo um longo monologo sobre como o refinamento do timbre não atingiu os portões de Ixtill em ressonancia com Yaldabaoth
O filme também apresenta melhorias significativas na exploração de seus temas centrais, como memória, identidade e a luta para conciliar passado e futuro. A ideia de que os humanos não podem escolher o futuro, mas podem usar o presente para escolher que passado querem ter é apresentada de forma clara e poderosa, permeando toda a narrativa. Esse tema é explorado de maneira especialmente eficaz através da jornada de Ayato, que luta para preservar sua humanidade enquanto enfrenta as consequências de ser o piloto do RahXephon. Essa mensagem não apenas dá coesão à história do filme, mas também resgata um dos temas mais promissores da série, que havia sido prejudicado por sua execução frouxa.
Ainda assim, apesar das melhorias significativas, o filme não é perfeito. Uma de suas principais falhas é a dependência do material original. Embora o filme seja uma experiência muito mais coesa e satisfatória, ele não funciona como uma obra independente. Muitas das cenas dependem de você ter assistido a série para entender do que eles estão falando, ou o que você está acontecendo. Você tem que estar ciente que está assistindo um recap... um recap de uma série que não é boa.
Hmm, colocando assim realmente me faz repensar minhas escolhas de vida, sabe?
https://youtu.be/zhwsfwmFe1Y
Além disso, algumas escolhas narrativas deixam a desejar. Quon, por exemplo, que por bem ou por mal era a personagem mais interessante da série, aqui é uma personagem que praticamente desaparece no filme, reduzida a um papel quase decorativo. Sua relevância para a trama é mínima, e ela carece de qualquer desenvolvimento significativo, tornando-a quase irrelevante.
No entanto, o filme compensa essas falhas com uma série de acertos criativos. Os Mulianos não aparecem para atacar apenas porque é o que os anjos faziam em Evangelion, agora existe uma lógica no que eles querem - alias, esqueça isso, eles QUREM alguma coisa além de ser o inimigo genérico do mal que odeia o bem. Você poderia achar que uma série de 26 episódios poderia ter tirado um momento ou dois para explicar qual é a dos inimigos, mas então você provavelmente não foi a pessoa que tomou as decisões criativas em RahXephon. O filme, por outro lado, usando edição de cenas e duas ou três cenas novas, mostra que os inimigos tem um objetivo. CINEMA ABSOLUTO, eu te digo.
Como eu disse, algumas outras cenas foram inteiramente redubladas, como a confrontação no banheiro, agora transformada em um momento significativo sobre a identidade de Haruka, mostram como a equipe por trás do filme conseguiu adaptar elementos da série de maneira criativa. Pequenos detalhes, como o impacto de se tornar Muliano e perder suas memórias, são explorados de forma muito mais eficaz, adicionando profundidade ao conflito entre humanos e Mulianos.
O filme também encontra espaço para momentos sutis que adicionam riqueza à experiência. O simbolismo visual, como a separação entre Ayato e Haruka até a cena final, reforça o tema da reconciliação e do amor. Referências internas, como o lago onde Reika desbloqueia os poderes de Ayato na série, agora transformado no local onde ele e Haruka se conectam emocionalmente, mostram uma atenção aos detalhes que estava ausente na série.
Em última análise, o filme de RahXephon oferece uma visão clara e emocionante do potencial que a série original nunca conseguiu alcançar. Ele não apenas corrige muitos dos erros da série, mas também apresenta uma história com propósito e personagens cujas escolhas e motivações fazem sentido dentro do mundo proposto. No entanto, como eu disse ainda falta algo para que o filme se sustente como uma obra independente. Ele depende muito do conhecimento prévio da série e ainda carrega alguns dos problemas estruturais que já existiam no material original.
Mesmo assim, saí do filme com uma sensação de contentamento que a série nunca conseguiu me proporcionar. É uma visão, ainda que agridoce, do que RahXephon poderia ter sido se tivesse encontrado sua voz desde o início. Uma pena que essa clareza tenha chegado tarde demais.