Continuamos a nossa mais efusiva premiação da internet, os Dogoncio's Awards 2022, abrindo uma nova categoria: desenhos animados. Agora, antes de continuar, eu preciso considerar que nem todos tem o mesmo nível de bagagem cultural transmidiática do que eu e explicar que...
OU SEJA, NEM TODO MUNDO É TÃO NERD PRA CACETA..
... e explicar que desenhos animados e animes são duas coisas diferentes. Bem, quer dizer, animes são um tipo de desenho animado, dã, mas eles são tão culturalmente diferentes com propostas e regras tão diferentes que eles são a sua própria coisa, e terão sua própria categoria mais pra frente. Isso sendo dito, cabe lembrar que essa série é sobre o que eu de facto assisti em 2022 e não tem haver... a ver? Sério, cada dia eu sei falar menos esse idioma... com o ano de lançamento da obra em si.
De facto, mais do que na categoria anterior, esse ano que passou eu assisti bastante coisa atrasada que eu tinha deixado passar. Isso sendo dito e explicado, vamos então aos indicados da premiação este ano:
- Voltron: Legendary Defender
- Todd McFarlane's Spawn
- Gargoyles
- What If
- Aaahh!!! Real Monsters
- Skeleton Warriors
- The Owl House
- Rick and Morty
- I Am Groot
- Rick and Morty
- Ducktales (2017)
- Amphibia
- RWBY
- Adventure Time
Agora que estamos todos estabelecidos e belos, vamos abrir os trabalhos anunciando que o terceiro lugar vai paraaaaaaaaa...
Sabe o que é uma das surpreendentes caracteristicas positivas de envelhecer que ninguém te contou? É que as pessoas que você vê as cresceram na mesma geração que você, que falam o mesmo idioma culturalmente que você agora são as pessoas que chegaram lá e estão fazendo as coisas.
Por exemplo, não é preciso dizer pra ninguém que os filmes baseados em video games dos anos 90 são... minha nossa estação Guadalupe parada em Duque de Caxias todos desembarquem... terriveis. Mais do que ruins, alguns conseguem figurar entre os piores filmes já feitos na história da humanidade e isso é dizer alguma coisa.
Hoje, entretanto, isso não é mais verdade. Filmes baseados em jogos não são necessariamente sofrimento e dor, pelo contrário, são genuinamente divertidos de se assistir como Detetive Pikachu, o filme do Sonic (essa eu realmente não esperava, tenho que admitir) e eu vou mentir se disser que o trailer do filme do Mario não dá um quentinho no coração.
Mesmo os filmes mais medíocres dessa leva atual de adaptação de jogos não são pavorosamente ruins, ainda são perfeitamente okay e totalmente assistiveis. Como Uncharted, por exemplo, pode não ser algo que "minha noooooossa como eu recomendo", mas é um filme de Sessão da Tarde perfeitamente funcional.
Então a pergunta que cabe ser feita aqui é... o que mudou de lá pra cá? Pq as adaptações de jogos não são mais hoje o piso coberto de Legos para pisar que costumavam ser?
HÃ, OBVIAMENTE VC SE PERDEU COMPLETAMENTE NO MUNDO DE FANTASIA NA SUA CABEÇA, MAS SÓ PRA LEMBRAR QUE ESSA CATEGORIA DEVERIA SER SOBRE DESENHOS ANIMADOS, NÃO ADAPTAÇÕES DE JOGOS...
Calma que isso tem um ponto. Então, eu dizia que o que mudou foi que... as pessoas que fazem essas coisas hoje não entendem video games, como quem ganhou seu primeiro Nintendinho no final dos anos 80 e cresceu com jogos hoje é um adulto lá pelos seus quarenta e poucos, cinquenta anos de idade. Isso é muito diferente de quando esses filmes eram feitos por executivos e produtores que entendiam sobre video games apenas que "era um brinquedo que as crianças gostam então dá dinheiro, sei lá mete o nome e faz qualquer porcaria".
Não, hoje essas coisas são feitas por quem genuinamente conhece e se importa com essas obras, fala esse idioma e pode fazer referencias a essa cultura com naturalidade.
E de todos os exemplos que eu posso dar disso que eu estou falando, de como é diferente ter alguém que fala o idioma da minha geração, é The Owl House. Porque se você não sabe absolutamente nada sobre sua criadora, Dana Terrace, ao menos uma coisa você sabe sim:
... que ela definitivamente jogou Hollow Knight. Não apenas em uma referencia visual, como ela entende é influenciada pela ambientação e o tom. E diga-se em uma nota lateral, poucas coisas são mais legais que o tom de Hollow Knight. Com efeito, tem um bonequinho do próprio Cavaleiro Oco na abertura do desenho!
Então sabemos algumas coisas sim sobre Dana Terrace: que ela é parte da primeira geração que cresceu jogando video games e assistindo animes, e que ela foi acumulando referencias dessa cultura durante o longo da vida e agora que ela está em posição profissional de ser ela a criadora de conteúdo, dá pra ver como tudo isso foi costurado em um mundo único e interessante que claramente está sendo cozinhado na cabeça de alguém faz uns bons anos já - mais especificamente, ela contou em entrevistas, desde que ela trabalhava nas storyboards de Gravity Falls.
No mundo de The Owl House você consegue ver como o cenário toma emprestado todo tipo de referencias de uma geração (do já citado Hollow Knight a Fullmetal Alchemist, passando por Harry Potter a Xenoblade Chronicles, entre vários outros) para criar uma coisas muito própria, muito sua.
Quer dizer, quando eu achei que veria um desenho da Disney com uma referencia a Dark Souls? É um mundo louco que vivemos, eu te digo.
Porém não é apenas pelas referencias que The Owl House está nessa lista. Quer dizer, também é, mas não é só isso:
The Owl House tem um world building e senso de humor definitivamente mais sombrio do que você esperaria em um desenho da Disney. Por exemplo, esse é o primeiro desenho que eu lembro que representa uma fada, não como a coisa fofa adoravel da Disney mas sim de acordo com o folclore europeu tradicional:
Eu realmente gosto desse senso de humor "casualmente mortal, mas não realmente" que você encontrava no primeiro livro de Harry Potter (em que passava a sensação que alguém casualmente desaparecer pra sempre nos corredores de Hogwarts era apenas algo que, vocês sabe, acontecia) mas que foi abandonado nos outros livros, ou da Familia Addams se preferir.
Mas não é apenas de referencias e humor que TOH vive, e agora eu gostaria de falar sobre outro aspecto desse desenho que me interessou bastante: o tema. The Owl House é, essencialmente, um desenho animado sobre não se colocar dentro de caixinhas rotuladas. Com efeito, eu seriamente suspeito que o nosso colega Oxe foi o roteirista da série pq ela é essencialmente sobre isso:
"É como se o mundo todo fosse um monte de caixinhas e você morresse de medo de estar nas caixinhas erradas."
The Owl House é sobre isso, essencialmente.
Luz Noceda é uma menina excessivamente criativa, ao ponto que ela está tendo dificuldade na escola porque ela não faz as atividades da forma como os professores esperam... e não raramente sem muito bom senso também. Depois de ser mandada para a sala do diretor pela terceira vez por seu comportamento... pouco usual... a mãe de Luz decide enviar ela para um acampamento de verão para ela aprender a ser normal e se comportar como o esperado.
O que teria acontecido, se no meio do caminho ela não tivesse esbarrado em uma porta para outro mundo e ido parar na dimensão demoniaca conhecida como 'The Boiling Islands'. Ou seja, essencialmente é um isekai só que em cartoon.
VAMOS ASSUMIR POR UM MOMENTO QUE AS 5 PESSOAS QUE ESTÃO LENDO ISSO NÃO SÃO UM CASO TÃO PERDIDO QUANTO O SEU, OKAY?
Hã, é uma história onde o protagonista do nosso mundo vai parar em um mundo de fantasia completamente diferente e a história gira muito em torno do choque cultural e adaptação. Feliz agora?
DIFICILMENTE, MAS SUPONHO QUE VAI TER QUE SERVIR.
Bem, seja como for, a coisa é que Luz descobre duas coisas sobre esse novo mundo: as Boiling Islands são um mundo hábito por monstros, demonios, bruxas e magia selvagem... e a segunda é que o Imperador-Deus Belos que acabar com essa poutaria, rotulando, classificando e selando a magia selvagem em caixinhas previamente estabelecidas.
Toda bruxa de Boiling Islands precisa, obrigatoriamente, escolher uma escola de magia na adolescencia e então suas habilidades de todas as outras serão seladas permanentemente. Se vc entrar para a escola das ilusões, perde a habilidade de criar e controlar golens ou magia elemental, por exemplo. O que, nesse mundo, é basicamente parte da religião vigente e visto como a forma bela e moral como as coisas tem que ser.
Ao chegar nesse mundo, Luz se encontra com a Owl Lady (daí o nome do desenho), a última bruxa "selvagem" do mundo e que não se submeteu a religião vigente. E que é uma figura bastante... exótica, vamos dizer assim.
A coisa é que a sanitização da magia em escolas bem classificadas, organizadas e controlaveis, e em como um agente externo introduz caos e, argh, questionamentos ao que "todo mundo sabe que sempre foi assim" é o tema do desenho, em vários níveis. De como a sociedade é organizada até mesmo como as estruturas familiares funcionam, The Owl House é muito sobre o que "esta estabelecido que é normal e portanto correto", e como a Owl Lady e sua aprendiz Luz bagunçam essas certezas.
Isso é particularmente interessante se considerarmos que a sociedade americana tem a cintura MUITO mais dura do que a nossa para essas questões de "verdades prontas em caixinhas e como você tem que estar na caixinha certa". É realmente refrescante ver um desenho questionar esses dogmas, e ainda mais um da Disney... porém isso é igualmente problemático também.
Isso porque, como é relativamente comum quando um desenho tenta ser ambicioso demais, o estúdio ficou bastante desconfortável com isso.
Pra começar, canais de televisão não se sentem muito confortaveis com desenhos animados seriados. No mundo ideal dos executivos, um desenho animado tem que ser um produto fechado para ser assistido por qualquer criança sabado de manhã sem nenhum tipo de continuidade. É verdade que isso não faz mais sentido com o streaming de video on demand, onde o espectador escolhe o que ele quer assistir na hora que ele quer assistir... mas os executivos lá de cima ainda são do tempo anteriro a isso, então um cartoon é fortemente desaconselhado a fazer isso.
A visão dos executivos de alto nível ainda é de que desenhos são pra ser encheção de linguiça para manter as crianças na frente da TV, não tentar coisas narrativamente ambiciosas ou contar histórias com worldbuilding e desenvolvimento de personagens. De My Little Pony a Lenda de Korra, mais de um criador de conteúdo já bateu cabeça com o estúdio pra poder desenvolver uma narrativa, e The Owl House não é exceção.
Então a Disney não estava feliz com o formato mais seriado e menos episódico do desenho, esse foi o strike 1.
O strike 2 foi que, bem, a menina que é a protagonista tem uma namorada e a reação da Disney a ter um desenho seu com uma protagonista gay foi essencialmente:
Mas tá, passa. O que a Disney não pode deixou passar, entretanto, foi quando o desenho começou a bater nessa coisa de questionar "verdades indiscutiveis da sociedade" e era apenas questão de tempo até começar a questionar a religião daquele mundo... com perguntas e apontamentos que são questionamentos válidos para coisas do nosso mundo... e aí acabou a brincadeira.
Existem algumas coisas que a Disney não está interessada em fazer, e ao menos mencionar qualquer referencia religiosa é uma delas (pode ver que todos os produtos da Disney tem no máximo uma menção vaga a espiritualidade, mas é só até onde vai), questionar a religião de forma abrasiva então.. big no-no. O resultado, bem, foi óbvio:
Embora tenha sido renovada para a segunda temporada antes mesmo de estrear, na segunda temporada Dana Terrace foi avisada pela Disney para empacotar as coisas dela e cair fora. Originalmente a série foi pensada para ter 4/5 temporadas, depois dessa segunda temporada vai ter três especiais de uma hora para encerrar a história e é isso (até pq se a série não for terminada o dinheiro até aqui vai ser perdido, ninguém pega pra assistir no catalogo de um streaming uma série que vc sabe que apenas para, sem uma conclusão).
O que significa que, infelizmente, muito do desenvolvimento planejado para o desenvolvimento dos personagens e do mundo teve que ser rushado (o que inclusive é citado dentro da série, em uma piada de quase quebra da quarta parede) e o resultado final é menos do que estelar.
É realmente uma pena que não vivemos em um mundo onde The Owl House foi tudo que poderia ter sido, e eu realmente acredito que em seu pleno potencial tinha tudo para ser um dos maiores cartoons de todos os tempos, mas ainda sim com o que foi apresentado, essa mistura louca de desenho animado com referencias de anime, video games e criticas sociais é o suficiente para um terceiro lugar.