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Postado por
C² |
quarta-feira, 23 de junho de 2021
Tem uma frase do Isaac Newton que eu considero uma das melhores coisas já dita na história da humanidade: "Se eu vi mais longe, foi por estar apoiado sobre os ombros de gigantes". Com isso ele quis dizer que tudo que ele sabe, tudo que ele descobriu ele não tirou magicamente da bunda e sim foi construido ao longo de séculos e séculos de conhecimento humano. Eu acho isso realmente fascinante, porque quanto você pensa sobre isso tudo na história da humanidade é o resultado de um longo e infindo processo de evolução do conhecimento que vai ficando mais e mais refinado a cada geração. As crianças de hoje são mais inteligentes e entendem mais coisas do que eu entendia na idade delas, assim como eu era mais inteligente e entendia mais coisas do que os meus pais na mesma idade e assim infinitamente.
Eu acho isso maravilhoso, isso me dá uma esperança sempre renovada que o amanhã será melhor do que foi ontem.
E quando eu digo que isso se aplica a todos os aspectos da vida humana, eu quero dizer todos mesmo. Como videogames por exemplo. Lançado a quase uma decada agora, The Witchter 3 foi o paragão de uma evolução nos videogames que começou a quase quarenta anos atrás e felizmente nunca vai terminar. The Witcher 3 é a obra prima de tudo que videogames podem ser, é a culminação magnífica de tudo que havia sido construído nos jogos até então, todas as lições que foram aprendidas, todos os erros que foram cometidos, enfim tudo. E por isso mesmo, por ser essa obra colossal criada sobre o ombro de gigantes, The Witcher 3 mudou tudo, se tornou a nova barra de comparação, se tornou a régua pela qual medimos jogos pois ele é a magnum opus da industria, um filho gestado com carinho ao longo de decadas.
Mas eu acho que você sabe disso. Então porque eu estou falando disso? Bem, porque eu genuinamente sinto que estamos presenciando outro momento desses. Quando as estrelas se alinham e uma obra prima nasce, uma daquelas que é o fruto de anos e anos de conhecimento humano acumulado em determinada area.
Jujutsu Kaizen é o The Witcher 3 dos animes shonen.
Mas para entender o que é Jujutsu Kaizen é, é necessário primeiro entender a história do próprio Japão. Veja, embora essa ideia pareça estranha para um brasileiro, a verdade é que a vida no Japão não foi nada fácil. É uma terra não tão grande assim, praticamente sem recurso natural nenhum senão montanhas e mar (boa sorte tirando algo disso), e com vizinhos bem barra pesada como Russia, China e Coreia do Norte. Só gente tranquila, né?
Essa realidade geográfica do Japão moldou a própria essencia do seu povo. Para sobreviver no Japão aquelas pessoas precisavam ser disciplinadas, discretas e simples. Existe um ditado japonês que resume bem a ideia da coisa que é "o prego que se destaca é o primeiro a ser martelado", simplesmente porque não existem recursos suficientes para inventar muita moda: é fazer o simples e viver de uma forma frugal, ou morrer. Não tinha outra opção.
O aspecto negativo é que isso levou a criação de um sentimento isolacionista de que a ilha do Japão não fazia parte do mundo e tudo que vinha de fora não era pra lhe fazer bem (o que não estava correto, realmente), que infelizmente levou ao sentimento nacionalista que deu origem ao Império Japonês da segunda guerra mundial e... bem, coisas realmente terriveis foram cometidas nesse tempo. Humanos quando acreditam que não estão lidando com iguais são capazes de justificar os crimes mais horríveis e infelizmente esse foi o caso.
O resultado, como todo mundo sabe, terminou pessimamente para o Japão:
Aqui viviam 200 mil pessoas que literalmente desapareceram em segundos
Porém não foi apenas as bombas nucleares o legado de guerra que o Japão sofreu: a fome era um quadro generalizado, e as sansões políticas e culturais que o Japão sofreu após a guerra foram igualmente pesadas. Tanto que até hoje o Japão não tem um exército próprio, as bases militares que existem no Japão e defendem o país são bases norte americanas.
Então adicione a toda aquele arquetipo de uma vida de durezas do Japão feudal a vergonha dos crimes hediondos cometidos pelo Japão na guerra e a humilhação de uma derrota com rendição incondicional e você consegue imaginar que a cultura japonesa toda é muito pesada, rigida, dura. Repare que mesmo no entretenimento toda cultura japonesa é engessada em formulas, existem modos de fazer as coisas, existem padrões a serem seguidos.
É um espetaculo em si mesmo ver o quão criativos os japoneses conseguem operando dentro dessas formulas, mas as linhas da grade ainda estão lá do mesmo jeito. Quando você vê um shonen, um shoujo ou um tokusatsu, você sabe de antemão quais batidas serão tocadas - mesmo que elas variem enormemente entre si. Porque, como eu disse, existe um metodo de fazer as coisas, existe uma forma correta. É assim que o Japão rola.
A cultura japonesa é o produto final do peso incalculavel que seu povo carrega nas costas.
... mas será que é mesmo?
Porque aqui voltamos ao que eu disse no começo do texto: a cultura humana não é nada senão um organismo sempre evoluindo através das suas próprias experiencias, e isso é verdade até mesmo para o Japão - porque japoneses são pessoas também, veja só você. E é aqui que entra o poder maravilhoso da juventude, pois é hora de entrar em cena uma geração inteiramente diferente, que cresceu sob as antigas regras porém cozinha no amago da sua propria alma a vontade, não, a necessidade de se expressar. "Esse é o nosso mundo também, ouçam a nossa voz" diz uma nova geração, e nos ultimos anos eles chegaram as posições de serem ouvidos.
Essa geração millenial japonesa cresceu sob o peso de uma cultura milenar em suas costas, porém ela é mais do que isso. Essa é a geração que não se sente culpada pela guerra (porque não é mesmo), é a geração que cresceu em um contato com o exterior nunca antes imaginado na sua história graças a internet, é uma geração que troca informações e experiencias como nunca antes em sua história.
Essa é a geração do hip hop, das roupas coloridas no centro de Tóquio, é a geração dos fabulosos Phantom Thieves. É uma geração leve, uma geração sem esse peso todo no seu coração. Essa é uma geração cool.
E se você não acredita em mim é só ver o maior termometro de qualquer cultura que existe: sua programação infantil. Nos anos 90, Kamen Rider era uma série super séria que tentava provar seu ponto pelo peso e responsabilidade de seu herói. Hoje o ponto do Kamen Rider é ser descolado, legal. Esse é o novo Japão do século 21, um Japão muito mais cool.
É nesse ponto que entra Jujutsu Kaizen, a obra prima da geração cool. O fruto de uma geração que cresceu assistindo as sementes de liberdade criativa que vazavam das formulas fixas do manga shonen. É uma geração que conhece Dragon Ball Z e Cavaleiros do Zodiaco, mas que cresceu mesmo é lendo os personagens com mais do que uma camada de Yoshiro Togashi (Yu Yu Hakusho e Hunter x Hunter), que cresceu o manga com proposito de Naruto, uma história que quer chegar em algum lugar no sentido artistico da palavra, uma geração que aprendeu a rir de si mesma com One Punch Man e Gintama.
Melhor besto friendo ever!
E tal qual Witcher 3 é a obra prima de algo que os videogames ja cozinhavam a decadas, Jujutsu Kaizen é o incoporamento carnal dessa nova geração de mangas shonen. E não me entenda errado JK é tão shonen quanto shonen pode ser, até porque a estrutura do manga - se estripada aos seus basicos - é basicamente Naruto: um jovem otimista e de coração bom tem um demonio de poder infinito selado dentro de si em uma sociedade rigida de pessoas onde cada clã tem tradicionais poderes animezisticos.
Só que Jujutsu Kaizen é um Naruto melhorado, porque ele aprendeu com Naruto e não incorre os mesmos erros naquele mesmo ponto que eu abri o texto falando: a cultura é um processo evolutivo infinito. Por exemplo, uma coisa que me incomoda em Naruto é que um ponto muito importante da série é que Naruto e o Sasuke são amigos. Exceto que eu vejo isso muito mais ser dito do que vejo acontecer, basicamente porque personagens meninos de anime tem que ter uma cintura dura e não se permitem muitas intimidades uns com os outros, é assim que o Japão é. Ou era.
Então você ouve muito o Naruto falar de amizade com o Sasuke, mas você realmente viu muito isso acontecer na prática porque é assim que as coisas eram feitas na época. Jujutsu Kaizen não tem esse problema: Megumi é "o Sasuke desse anime", mas esse anime não tem a mesma cintura dura no relacionamento entre os personagens que seu irmão 20 anos mais velho tem.
Meguumi e Yuji são amigos sim, você sente isso sem que ninguém precise dizer isso 238 vezes. Megumi ainda é o mesmo personagem reservado e distante, com um poder foda de um clã foda e uma história pessoal trágica, mas sem todo aquele peso anos 90 que o Sasuke tem. Ele é uma versão cool e maneira do Sasuke, sem perder a sua essencia. Pegar a essencia, corrigir os defeitos, deixar mais cool ainda.
Outra coisa, sabe como o estúdio Pierrot fez o que pode pra cagar Naruto com fillers ao ponto que é praticamente inassistivel se você não estiver vendo uma versão editada? A lição foi aprendida e aqui é justamente o contrário: cada cena é lindamente animada como se ela fosse importante, 24 episódios que valem ouro são uma escolha mais adequada aos dias atuais do que 240 que whatever faz qualquer merda aí.
Ou então sabe quando a personagem feminina do grupo não faz nada de particularmente útil porque eca meninas anos 90 eca eca? Bem, nós não fazemos mais as coisas assim hoje. A Nobara é legal pra caralho, obrigado, de nada.
Pois então, agora imagine que JK faz isso com 40 anos de anime e você entende o que eu quero dizer que é a obra prima de uma geração. Jujutsu Kaizen tem coisas de Naruto, mas corrige seus defeitos e é mais cool. Jujutsu Kaizen tem coisas de Bleach, mas corrige seus defeitos e é mais cool. Jujutsu Kaizen tem coisas de Yu Yu Hakuso, mas corrige seus defeitos e é mais cool. Entendeu meu ponto agora?
Literalmente o ponto do anime é que nesse ano em particular eles estão tento a mais talentosa e promissora de feiticeiros Jujutsu em séculos, o que é uma departure gigante do que obras desse tipo são no sentido de "antigamente houve uma era de glória e poder e agora vivemos com restolhos desses dias maravilhosos". Não, a era é agora, estamos vivendo os dias agora. O momento é esse e a hora é essa.
Ah, sim e quando eu digo "mais leve", eu quero dizer no sentido de livre, não de leviano. Jujutsu Kaizen não é um anime inconsequente, ele aborda temas relevantes (especialmente que nem todos os humanos merecem ser salvos, e nem todos os monstros merecem morrer) mas de uma forma tranquila que só quem sabe o que está fazendo consegue fazer. Jujutsu Kaizen sabe o que está fazendo.
O que nos leva direto ao nosso ponto inicial, Jujutsu Kaisen é o pico de mais decadas de animação (não apenas japonesa) que levaram a sua existencia. Ele sabe ser violento na medida certa, sabe ser perturbador na medida certa, sabe ser heroico na medida certa, sabe usar o tempo de tela na medida certa, sabe rir de si mesmo na medida certa, sabe ser estiloso na medida certa.
Claro, o anime ainda está na sua primeira temporada e nada garante que eles não vão foder a porra toda daqui pra frente. Mas o que temos até o momento é a evolução natural de Naruto, Yu Yu Hakusho e Persona 5, na forma da voz de uma geração que quer ser ouvida.
Imagine Devilman Crybaby, só que shonen e sem induzir ao suicidio por desesperança. Se isso não é material pra ser o melhor shonen de todos os tempos, então eu não sei mais o que poderia ser.
Ou então assista o encerramento, é tudo que você precisa para entender o espirito da coisa