[SÉRIES] JUSTICEIRO (ou não apenas tiro, porrada e bomba)

| domingo, 3 de maio de 2020


Houve um dia, a não muito tempo atrás, em que as séries originais da Marvel/Netflix eram sinônimo de qualidade. Após um grande e prolongado esforço de escolhas ruins e mal planejamento, hoje você não consegue ouvir falar desse universo sem cerrar os dentes e assistir as séries em posição de impacto.

Por isso mesmo, após que a série de super-heróis que a Netflix passou anos cozinhando acabou parecendo que foi escrita nos corredores 15 minutos antes da gravação, não é realmente surpreendente que não se espere muita coisa de uma série foi criada na base do "hey, olha só! Os caras gostaram desse personagem, bora fazer uma série dele? Bora!"

Surpreendente mesmo é que o Justiceiro seja a coisa mais bem satisfatória, com começo, meio e fim que a Netflix/Marvel já criou desde a primeira temporada de Demolidor.



Mas comecemos do começo: a Marvel/Netflix mostra, em seu melhor, seguir uma receita de vitória. Um indivíduo, um representante de um grupo marginalizado, usa vilões e superpoderes como metafora para um tema em especifico. Em Demolidor é a violência urbana e como o sistema de justiça é falho. Jéssica Jones é uma metáfora sobre relacionamentos abusivos e Luke Cage sobre o racismo (alguém mais maldoso diria que Punho de Ferro é sobre a falta que um revisor faz no roteiro e Defensores é sobre não deixar o trabalho que o professor deu o semestre inteiro para fazer para terminar na última noite).

As vezes que este subgênero da Marvel falhou foi justamente quando se afastrou desse formato - seja a segunda metade da temporada 2 de "Daredevil", qualquer subplot ou cena de ação em Jessica Jones, absolutamente tudo em "Iron Fist", ou a execução de Defensores. Em primeiro lugar, "The Punisher" parece ser um outro passo falso. Na paisagem da televisão em geral, outro show esmagadoramente cinza e brutalmente violento centrado em um anti-herói disfuncional é supérfluo. Dentro do gênero super-herói, é ainda mais. Mas "The Punisher" transcende o que parece ser. Não completamente, e nem sempre - até porque se o fizesse a série seria perfeita e sabemos que perfeito é só o cabelo do AJ Styles - mas a série acerta muito mais do que erra nessa proposta.
 
Graças ao desempenho contínuo de Jon Berthal como o vigilante não-superpoderoso Frank Castle e do showrunner Steve Lightfoot, a narrativa consciente e afiada de "The Punisher" aborda os pontos altos de "Jessica Jones da Marvel", apresentando um personagem danificado e perigoso, contando sua história como uma peça de um todo injusto. Apesar das primeiras impressões, Frank Castle é de fato uma figura marginalizada - o tema aqui sendo que ele é um veterano de guerra.

É difícil imaginar melhor casting do que Bernthal, que comunica tão fluentemente com silêncios impassíveis, e é convincente quando está sendo terrivelmente violento e especialmente gentil. Mas como toda boa série, ainda leva o show alguns minutos de limpar a garganta para encontrar a sua voz - eu realmente não preciso voltar sobre como os primeiros episódios de Buffy, Wander Over Yonder ou Parks and Recreation foram, né?


É engraçado pensar nisso depois de ter visto tudo, porque o primeiro episódio parece que é um episódio de uma série completamente diferente. "The Punisher" parece estar fazendo um checklist dos cliches de anti-herói. Ele lida com suas emoções batendo uma marreta na parede por horas. Ele é tão frequentemente assombrado pelas lembranças de sua esposa e filhos que eles se tornam presenças irritantes - se mais nada porque sua esposa, especialmente, não possui características de caráter discerníveis além de ser quente, macia e provavelmente limpa. Ele fica lamentando constantemente - ele lamenta lendo um livro, atrás de um volante, na balsa de Staten Island. Frank Castle lamenta tanto, de forma tão decidida, que você começa a se perguntar se ele não estava naquele filme com o irmão do Batman.

Mas tudo bem, primeiros episódios são permitidos cometerem alguns erros. Fora de Frank é que  o show começa a oferecer argumentos ao público de que não será apenas o octobilhonesimo vigilante usando de ultraviolencia. Tem Dinah Madani (Amber Rose Revah), agende da Homeland Security (o que é comparavel com o Ministério do Interior em outros países, mas meio que não tem um equivalente desse órgão no Brasil, mas é mais ou menos a CIA voltada para assuntos internos as fronteiras estadunidenses), um grupo de apoio de veteranos, liderado pelo amigo de Frank, Curtis, no qual os veteranos de diferentes origens lutam para entender o mundo em que estão se reintegrando e um hacker arrogante chamado Micro, que começa caçando Frank depois de vê-lo em uma das muitas câmeras de vigilância espalhadas pela cidade.

Sem perceber plenamente, Frank, Micro e Dinah estão todos tentando entender o que aconteceu durante uma série de missões onde a unidade de Frank foi empurrada para cometer crimes de guerra. À medida que outros veteranos se tornam personagens de maior dimensão, que Micro e Frank começam a trabalhar juntos - e Dinah faz mais conexões em Homeland Security - a rede de culpa e corrupção por trás da violência sem sentido é lentamente trazida à luz.


E é aqui que a coisa fica realmente interessante: The Punisher não é uma série de 13 episódios sobre um cara que grafita caveiras nas camisas metendo bala em vendedores de bitcoins falsas. Não, em sua essencia, The Punisher é uma série sobre conspirações do governo. Ou seja, ela está muito mais para Homeland (a série) do que para Streets of Rage.

Pode parecer estranho a primeira vista que uma série do Justiceiro seja mais sobre unir as peças do que aconteceu - e porque aconteceu - em outro país e como isso acabou fazendo a família do Frank ir ter aulas de roteiro com a Carrie Fisher do que um homem solitário em busca de VINGAAAAAAAAAAAAAANÇA Azaghal matando tudo que se move em seu caminho.

Pode parecer estranho, mas só parece. É muito dificil e altamente convidativo a encheção de linguiça fazer uma série de treze episódios sobre isso (ou você acha que toda aquela PUTA CONSTRUÇÃO DE MUNDO de John Wick é só porque o diretor estava entediado e com dinheiro sobrando?). Já uma série de treze episódios sobre contar uma história, bem isso realmente pode funcionar.

E uma coisa que uma série do Justiceiro precisa mais do que tudo para funcionar são personagens interessantes, já que o nosso herói em questão não costuma ter mais que dez falas por episódio se lhe dada essa opção.

Algo tão essencial, mas que a Netflix falhou tão fundamentalmente em Punho de Ferro e Defensores. Felizmente, isso não acontece aqui. Tanto Dinah quanto Micro são personagens intrigantes e ambos excedem as expectativas.

Micro - apelido de hacker de David Lieberman - em particular, traz uma vida surpreendente para um personagem que nos quadrinhos é só um vilão genérico. Como Frank, Micro fingiu sua morte; Ao contrário de Frank, sua família ainda está viva. Micro os vê obsessivamente, através de câmeras e microfones que ele colocou na casa toda.

Frank descobre isso e começa a usar a vigilância perpétua de Micro para manipulá-lo: ele aparece na casa dos Lieberman um dia, aparentemente por acidente, para insinuar-se na vida anterior de Micro. Que Frank tenha perdido uma esposa e filhos, assim como a esposa e os filhos de Micro tenham perdido o marido e pai, não é algo que passa despercebido. Uma das coisas estranhamente atraentes sobre "The Punisher" é o quão profundamente bagunçadas são as relações entre os personagens.

Outra coisa que a série presta muita atenção é no seu relacionamento com a violência. Todo episódio é pontuado com um conjunto de violência impressionante - não apenas visualmente impressionante, como é frequentemente o caso com sequências de ação, mas perturbadora também. Cenas de ação com as quais todos nos acostumamos - como um acidente de carro em que um sedan capotou e depois aterrissou pesadamente, ou armas sacadas ameaçadoramente em um jogo de cartas com altas apostas - assumem uma nova brutalidade em "The Punisher", que paga uma desconfortavel atenção especial ao som dos ossos quebrando, a pasta de sangue e miolos que fica em uma marreta depois de esmagar a cabeça de alguém, a intimidade de aproximar-se o suficiente de alguém para matá-los. Esta é uma marca de violência que é bastante, bem, punishing - cenas brutais, escamosas e dolorosas que não oferecem nada de bonito ou glorioso sobre o ato de arrancar os dentes de alguém com os próprios punhos.

O que eu quero dizer é que a violencia aqui lembra aquela cena de Gladiador em que o Russel Crowed destroça cinco caras na arena e enquanto a plateia esta vomitando em choque com a violencia ele grita "Ué, vocês não estão entretidos? Não é por isso que vocês vieram ver aqui?".



No conforto do seu sofazinho você acha que se pudesse matava todos esses bandidos filhodaputa? Ótimo, então primeiro ouça como é o som de um osso quebrando ou o depoimento dos caras que fizeram de profissão o que você que é a forma que o "cidadão de bem" deveria viver. A violencia aqui não é algo bonito, porque ela não é suposta ser bonita ou glamurosa.

É cínico, e às vezes muito desesperado, também.

Acima de tudo o que "The Punisher" é bastante cínico quanto ao uso da força: esta é uma série em que um homem que foi convidado a matar sem sentido pelo governo dele é sacaneado e acaba caçando membros desse mesmo governo porque o fizeram matar pessoas. O show desconfia das armas, desconfia do patriotismo cego, desconfia do conceito de servir sem fazer perguntas;



Falando em perguntas, a única relação com o universo de séries da Netflix (felizmente, é algo que eu tenho que dizer a essa altura) é Karen Page que justamente está lá para fazer esse contraponto, para fazer as perguntas que precisam ser feitas. Como quando ela entrevista o politico que diz que as pessoas deveriam confiar totalmente ao governo a capacidade de protege-las... sendo que ele diz isso com dois seguranças particulares bem armados contratados por ele a dois metros de distancia. Aí é fácil, né sarraceno?

A coisa interessante é que Frank Castle entende como a violencia funciona, o que ela significa. Ele se envolve com isso porque ele não confia em mais ninguém para ter o poder de empunhá-las - e, ao mesmo tempo, porque ele está tão quebrado por sua própria tragédia, ele é um protagonista que comete violência ao mesmo tempo em que compreende como essa violência cria trauma. Isso cria uma dinâmica carregada e desestabilizadora, e que Bernthal habita com aprumo.

Eu gostei particularmente também como a série tirou tempo para pensar os seus vilões. O cara do governo que é responsavel pela coisa toda, por exemplo, ele não fez aquilo para ficar rico ou para ganhar um carguinho ou algo do tipo (eu sei, como brasileiro esse conceito é inconcebivel, mas façamos um esforço) e sim porque ele REALMENTE acreditava que o ele fez era o certo, que era para o bem do país, que era útil a uma causa maior. E quer saber? Em um sentido pragmático da coisa, ele não estava realmente errado. 

Ou então todo o desenvolvimento do Principe Caspian como inimigo de Frank Castle. Certo, ok, ele é um cara mal, mas não mal como um pica-pau apenas because mwahahaha. A série mostra um insight como ele pensa e porque ele pensa dessa forma, e é compreensível. Um bom roteiro não precisa que o espectador goste dos seus vilões ou mesmo que concorde com eles, mas precisa realmente que ele compreenda da onde aquilo está vindo. É por esse motivo (mas não apenas por esse, claro) que os desenhos animados dos anos 80 são tão ruins, e que o Valdemar só começa a funcionar vagamente como vilão depois que suas origens são reveladas. E é algo que The Punisher faz satisfatoriamente bem.

Bem, essa é uma ideia para a segunda temporada...

Em resumo, "The Punisher" não é apenas satisfatório, mas surpreendente - uma interpretação da formula Netflix/Marvel que oferece profundidade e desafios para a audiencia além de caras fodas matando de formas fodas. Livre de superpoderes e super-heróis, o universo Marvel é mais indulgente - e mais interessante. 

Apesar de uma escorregada aqui e acolá (tipo ter um cara chamado Carson Wolf  tentando fingir como se não fossem obviamente um vilão), a série não desperdiça o seu tempo com subplots sem proposito ou personagens sem ter o que fazer ali. Eu fiquei bastante preocupado com todo o (longo) desenvolvimento que foi dado ao grupo de apoio aos veteranos de guerra, de que aquilo estivesse ali apenas como mensagem social sem proposito para a trama. Mas não, é a mensagem social mas também é importante para a trama - com efeito, é o que quebra o status quo da série e a impulsiona para o seu ato final. Attaboy, é assim que se faz!

Em resumo, "Punisher" é um pântano bem-vindo de perguntas espinhosas e respostas insolúveis (ao contrário do que o seu tio bolsominion ou seu colega de faculdade comunista dizem). Pelo menos nesta parte da paisagem da televisão, ainda há espaço para outro anti-herói. Com a ênfase na violência, no terrorismo doméstico e na segurança interna, "The Punisher" é surpreendentemente relevante - possivelmente a série mais relevante da Marvel, pelo menos para a realidade americana.



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