[SÉRIES] DOCTOR WHO: o 2º Doutor (ou aquela vez em que o Doutor foi um palhaço)

| domingo, 19 de abril de 2020


As palavras são engraçadas. Não raras vezes, elas carregam um peso e um significado bastante diferentes do que originalmente deveriam significar.

Pegue a palavra “palhaço”, por exemplo. Chamar alguém de palhaço é quase universalmente ofensivo, como se esse fosse um grande insulto. Não é minha intenção quando eu digo que o segundo Doutor, interpretado por Patrick Troughton, foi um palhaço.

Qualquer ator poderá te dizer que fazer o público rir é mais difícil do que fazer chorar, e é necessário um domínio muito grande de técnica de palco, timing e carisma. Pense nos grandes trapalhões do entretenimento que nos fizeram rir e ainda fazem tantos anos depois, como Groucho Marx, Chaplin, os Três Patetas, os Trapalhões e Roberto Gomes Bolaños.





Sério, se isso não é arte, eu não sei mais o que seria.

É a esse quilate de atuação que eu me refiro quando digo que Patrick foi um “palhaço” ao compor seu Doutor de roupas largas, gravata desarrumada e propensão a dar no pé quando as coisas ficavam complicadas (uma instituição da série até os dias de hoje)

Se William Hartnell e Verity Lambert criaram um programa sem precedentes na história da televisão, Patrick Troughton (eu estou copiando e colando esse nome – ô coisa difícil de escrever!) tinha um desafio não menos inédito: substituir o protagonista em uma série altamente popular.

Como você pode imaginar, poderia ter dado muito errado. Se considerarmos o quanto William Hartnell é bom ator e carismático de se ver na tela, DEVERIA ter dado fenomenalmente errado. Mais ainda porque Patrick e a produção do programa escolheram a rota mais arriscada possível: criar um Doutor inteiramente novo, não apenas no visual, mas no modo de falar e em maneirismos.



Só deu certo porque Patrick Troughton foi um dos melhores atores do seu tempo. Patrick podia liderar, adicionar e energizar um elenco. Ele lia suas falas como uma aproximação ampla do script, renovada a cada vez, para dar opções para a edição, e para manter seus companheiros de elenco “ligados”. Ele raramente dava entrevistas, afirmando que considerava atuar como “mágica” e que detalhar os processos iria estragá-la para as pessoas.

Pat me ganhou logo em uma das suas primeiras cenas, quando uma companion queria que ele fizesse alguma coisa que ele não estava interessado. Ela então tentou provoca-lo, dizendo:
– Você não vai querer que as pessoas pensem que você está com medo, não é, Doutor?
– E porque eu me importaria com o que as pessoas pensam? – ele respondeu genuinamente surpreso com a ideia.
A sua inocência e sinceridade ganham qualquer um. Muito diferente do primeiro, esse era um Doutor que segurava a mão de seus companheiros quando ELE tinha medo. Raríssimas vezes ele ficava irritado, mais provável era ele se desesperar tentando salvar o dia de um jeito muito único dele.

Não por acaso, o melhor arco do segundo Doutor é “O Inimigo do Mundo“, em que Patrick interpreta o herói e o vilão da história. Mas se você não soubesse de antemão, seria quase impossível dizer que o Doutor e Ramon Salamander são interpretados pela mesma pessoa, dada a magnificência da sua atuação. Tipo Orphan Black só que 50 anos antes.




Doutor dando sua opinião sobre seu sósia overlord do mal

Não é só eu que acho isso: Matt Smith disse que, quando estava se preparando para o personagem, assistiu os DVDs do segundo Doutor e se inspirou grandemente nele. Com efeito, vemos muito da atuação do Pat no 11º Doutor. Um jeito desengonçado similar, a gravata borboleta, e a coisa de deixar os inimigos pensarem que ele é mais bobo do que é realmente. Bem, não que ele não seja bastante bobo.

O homem que está sempre correndo para salvar o mundo (qualquer um deles), mas que não hesitaria em parar no meio para apertar a mão de um desconhecido e perguntar “olá, como vai você?”

PELA ROCHA DO JAVALI!

Um grande Doutor não está completo sem um grande companion, e o segundo Doutor teve um dos melhores de toda série: Jamie Mccrimmon (interpretado por Franzier Hines).

Mas quem é Jamie?



Jamie é um escocês do século XVIII mais grosso que dedo destroncado, que acaba se tornando parte da entourage do Doutor. E quando você está lidando com aventuras futuristas de robôs com raios da morte e mutações químicas, poucas coisas funcionam melhor do que um escocês grosso para salvar o dia.

Enquanto o Doutor é um Senhor do Tempo capaz de hackear a Skynet usando fita adesiva e dois transistores, às vezes em pleno século 28 você precisa de alguém que diga “não entendi nada do que ele disse, mas se esse bicho aparecer por aqui eu dou uma pancada na cabeça dele”.

Até onde séries vão, eu vi poucas coisas funcionarem melhor do que a química entre o Senhor do Tempo gentil e atrapalhado e o escocês orgulhoso e atrapalhado. Coisas como essa cena:




James Robert Mccrimon se juntou (com Ian e Barbara) ao hall de companions que falaram de igual para igual com o Doutor, até mesmo para tirar com a cara dele, com aquele jeito sincero meio xucro que só os escoceses sabem ter. Manto que foi assumido pela melhor companion ever, Donna Noble. É desse nível de qualidade que estamos falando aqui.

Sério, não tem como não amar alguém que diz coisas como “Essa nave está caindo aos pedaços, até lembra a TARDIS, não é Doutor?”

Não é por nada que Frazer Hines detém o título de companion com maior número de episódios (são 116 episódios), mesmo que naquela época os episódios fossem de 20 minutos, ainda assim é um número impressionante. Não sem um bom motivo.



O DOUTOR QUE NÃO ESTAVA LÁ

Se não cabe nada senão elogios aos atores e produção diretamente envolvidos, o mesmo não pode ser dito de algumas decisões  estruturais da BBC. Em primeiro lugar porque a emissora decidiu não mais fazer episódios históricos, tanto por achar que não seria “descolado” com a garotada, quanto por cortes de orçamento, já que fazer uma “sala de controle” alienígena é muito mais barato que recriar cenários históricos.

O que foi uma pena. O Doutor interagindo com figuras históricas do passado sempre foi um dos pontos mais legais da série (seja ele jogando Xadrez com Kublai Khan, seja a Rose tentando fazer a rainha Elisabeth dizer “I’m no amused”).

Pelos mesmos motivos financeiros, temos muitos episódios de “sobreviventes em uma base sitiada” (economia de cenário), o que acabou se tornando outra marca recorrente do programa.

Mas o principal problema nem foi esse. Quando o modelo de televisão ao vivo foi transposto para gravações por vídeo-tapes, o sindicato de atores britânico esperneou contra isso (porque para eles o ideal seria os atores serem contratados novamente para reprisar seus papeis), até que se chegou ao acordo de que um videotape só poderia ser reprisado um determinado número de vezes, ou por determinado tempo – previamente acertado em contrato.

Acontece que, quando a televisão passou a ser colorida, a BBC tinha rolos e rolos de filme de episódios que não poderia reprisar mais sem renegociar os contratos, e não parecia interessante para eles gastar dinheiro para exibir episódios em preto e branco.




“Lógica, minha querida Zoe, é meramente o que permite alguém estar errado com autoridade”

Até aí tudo certo, magrão.

O problema foi: o que fazer com esses originais, então? Na época ninguém achou relevante guardar para posteridade e, apenas para liberar espaço, muito desse material foi simplesmente jogado fora. Em parte porque ninguém achou importante, em parte porque a BBC tinha dois sistemas de arquivos: um para filmes de 16mm e outro para videotapes. Um arquivo achou que o outro era responsável por manter o acervo, e nesse mal entendido muita coisa foi fora.

Mais da metade dos episódios do segundo Doutor se perderam nessa pataquada.

Desses, alguns foram recuperados posteriormente com cópias enviadas a retransmissoras internacionais (“O Inimigo do Mundo“, por exemplo, só existe graças às cópias enviadas para a Nigéria) e outros foram reconstruídos pelos fãs.

Literalmente: algumas pessoas gravavam os episódios em áudio e posteriormente foram adicionadas fotografias das cenas aos áudios. Esses slideshows com áudio são chamados de “recon”. Prepare-se para ver muitos desses por aí.

Como grande parte da graça da série se encontra na atuação, principalmente na postura corporal e maneirismos do Patrick, é desnecessário dizer o quanto se perdeu nisso.

Atualmente a BBC corre atrás do prejuízo (expressão estranha essa, não?) e dá boas recompensas para quem encontrar episódios perdidos dando sopa por aí. Com efeito, em 2006 foi anunciado que um Dalek em tamanho real seria dado para alguém que encontrasse e retornasse um dos episódios em falta.


O DIA EM QUE A FLEUMA BRITÂNICA SE RENDEU AO MENDIGO CÓSMICO

Até hoje não deixa de me impressionar que uma  emissora tão empenhada a se levar a sério como a BBC (imagine a Globo dos anos 90 elevada ao cubo) se permitisse ter um protagonista  que viria a ser conhecido como “mendigo cósmico” (sério, joga aí “cosmic hobo” no Google), mas isso mostra o quão incrível o baixinho Patrick Troughton era. Em dupla com Frazer Hines, então, era de tirar o chapéu.

O segundo Doutor nos deu não só coisas importantes para a série, como o conceito de regeneração, os Senhores do Tempo (e suas regras sobre nunca interferir) e a própria Guerra do Tempo (que é mencionada aqui pela primeira vez) como toda existência da série inteira.

Se Doctor Who não é uma série que desapareceu como… basicamente todas as outras da televisão britânica dos anos 60, agradeça a este homem que torcia as mãos e salvava o universo da forma mais mambembe possível.



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