[WITCHER 3] PARTE 3: Hearts of Stone (ou o espelho da encruzilhada)

| segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020


Quando você pensa sobre isso, um DLC é uma oportunidade maravilhosa para a desenvolvedora de games e para o público por inúmeros motivos.

Em primeiro lugar, o grosso do trabalho já está feito. O jogo já foi programado, seus bugs corrigidos, as mecanicas rodam, os scripts funcionam. Você não precisa FAZER UM JOGO DO ZERO, não o jogo já está pronto - você só precisa usar as ferramentas que você JÁ TEM para fazer algo novo. É básicamente a diferença entre construir uma casa do nada ou apenas comprar moveis novos.

Isso é importante porque os custos de desenvolvimento de um jogo são diretamente atrelados ao tempo: 90% da folha de pagamento de uma empresa são salários, já que jogos não gastam com locações ou pós-produção mirabolante como os filmes. Isso quer dizer que na produção de jogos tempo é essencial, e se esse tempo está sendo gasto com fazer coisas legais para o jogo ao invés de apenas, vocês sabe, tentar fazer o jogo funcionar, tanto melhor para os desenvolvedores e os jogadores.



Falando de tempo, esse é outro aspecto muito importante de um DLC: o tempo. Quando um jogo está sendo feito, existe uma pressa para ele ser concluído porque até o momento que o jogo pipoque nas prateleiras (modo de falar, nem lembro a ultima vez que eu comprei um jogo em loja), a receita bruta que a empresa está recebendo é de absolutamente ZERO dinheiros. E a menos que você tenha digitado KLAPAUCIUS na vida real, seu dinheiro não é infinito - logo, seu tempo não é infinito. Então pau na máquina, afrodescendente da melhor idade.

Claro, existe o alivio da pré-venda, mas mesmo isso não é um passe grátis porque você tem que dar uma data para os jogadores. Você não pode apenas pedir "ah, deposita uma grana aí e um dia eu te dou uma resposta". Não apenas por questões comerciais ou éticas, literalmente em muitos países a legislação proíbe isso. Então mesmo que você use pré-venda para entrar uma grana, o tempo está contando.

Com DLCs isso não acontece. O jogo já foi lançado, sua fonte principal de renda já está entrando. Não existe o atropelo para lançar de qualquer jeito porque senão você morre de fome. Os desenvolvedores tem tempo para trabalhar, e isso significa muito menos crunch - a pratica, muito comum no mundo dos videogames, de virar noites em claro trabalhando como um condenado para entregar a porcaria dentro do prazo (também conhecida no Japão como "dia normal de trabalho"). E menos crunch significa funcionários mais felizes, e funcionários mais felizes significa um trabalho melhor - isso é um dado estatisticamente comprovado e as melhores empresas usam a seu favor.





O terceiro ponto a favor dos DLCs é que os desenvolvedores tem total liberdade para serem tão criativos o quanto eles quiserem ser. Você já contou sua história, já teve sua reação do publico, seu trabalho está feito. Um DLC é mais uma daquelas continuações diretas para DVD que a Disney fazia, não existe expectativa nenhuma por parte do público e você pode apenas se divertir com os personagens explorando situações que não cabiam na sua aventura principal.

Então, de um ponto de vista criativo e do consumidor, um DLC é uma coisa boa. Uma nova aventura com aquelas mecanicas e personagens que você já sabe que gosta por 1/5 do preço? Onde eu assino?

Infelizmente, entretanto, humanos são seres humanos e é claro que mais sim do que não vão usar o DLC para o mal. Práticas mesquinhas e idiotas, como tirar parte do conteúdo que deveria ser o jogo para "vende-lo separadamente". Implementar novas mecanicas ou armas que vão dar uma vantagem (aka "fazer você ganhar") em um multiplayer competitivo e diversas outras formas de sacanear o jogador.

Em seus piores dias, por exemplo, a Capcom fazia o jogo de luta completo, colocava todos os personagens no disco, e você tinha que pagar um adicional para liberar personagens que foram criados com o desenvolvimento inicial do jogo e já estão em sua posse. Não é  como Smash Bros, por exemplo, onde depois que o jogo está feito (e bem feito) continuam sendo criados novos personagens e faz sentido você comprar avulso o que foi criado depois.


Isso sendo dito, é claro que estamos falando da CD Projekt Red, mais conhecida como a melhor empresa de games que já existiu. Então quando eles anunciaram uma expansão para The Witcher 3, ninguém ficou realmente preocupado. Inclusive porque eles usaram a palavra "expansão", como os jogos de computador de antigamente tinham -  e isso significava praticamente um jogo inteiramente novo (toda história dos Blood Elves e dos Draenei foi introduzida em Warcraft 3 em uma expansão, que é tão grande quanto o próprio jogo original).

O que a CDPR fez para sua primeira expansão foi marcar todas as caixas de aspectos positivos que eu citei anterioremente. Hearts of Stone é surpreendentemente grande para uma expansão que é vendida por dez dólares, não apenas com o enredo principal (que provavelmente dura de 8 a 10 horas), mas também com as missões dos Ofieri - toda uma area do mapa que não tinha sido muito utilizada e várias novas sidequests e contratos de bruxeiro. 

Antes de eu me aprofundar mais sobre a expansão, entretanto, eu tenho outro ponto que quero mencionar rapidamente, e esse é o combate. O combate nessa série não é o meu ponto favorito, mesmo ele tendo sido feito com competência suficiente, mas não é exatamente o meu copo de chá. Hearts of Stone é um passo à frente nesse sentido. Por um lado, eles visivelmente refinaram a dificuldade. Mesmo comigo um pouco acima do nível, as lutas com o sapo e o feiticeiro Ofieri foram agradavelmente difíceis sem soarem punidas ou injustas. Eles recompensaram a paciência e o posicionamento: o feiticeiro tem uma habilidade semelhante a um tornado que pode atordoar, e ficar bem na frente do sapo na distância errada desencadeia um ataque de língua que não é telegrafado. Além disso, o esmagamento de botão não é recompensado durante nenhum dos dois. Em vez disso, você precisa se defender, dar alguns hits e reposicionar. 



Todas as lutas de chefes receberam alguma mecanica para torna-las interessantes, e mesmo as lutas comuns recompensam bem mais o uso de sinais e posicionamento do que no jogo base. Eu realmente apreciaria mais se o jogo todo fosse assim desde o começo, mas isso são coisas que só se aprende com a experiencia mesmo - eis mais uma vez a magia do DLC 

Porém a grande coisa de HoS é que ele faz uma coisa inteiramente diferente do o jogo principal tenta fazer. A saga de Geraldão da Rivia e sua preciosa menina Ciri é uma história épica e emocional sobre um apocalipse mágico iminente, HoS se baseia em relacionamentos pessoais e desenvolvimento de personagens. Outra coisa que ele essa expansão faz muito diferente é que sua tonalidade é mais leve do que o jogo principal, uma quest em particular é praticamente uma grande esquete de comédia.

E tem também Gaunter O’Dimm, o Senhor Espelho. Também conhecido como o melhor personagem escrito pela CDPR até esta data.

Gaunter O'Dimm aparece logo no começo do jogo principal, sendo ele um viajante aleatório que diz onde Geraldo pode encontrar a Yennefer - e é um personagem bem estranho. Estranho no sentido que ele ajuda o Geraldo a achar seu caminho, e então diz "Talvez um dia eu esteja com problemas e você esteja por perto para me ajudar". Essa não é a parte estranha, muitas pessoas considerariam ter um bruxeiro lhe devendo um favor como uma coisa boa.

A parte estranha é que ele simplesmente desaparece no ar depois de falar isso. Porém o jogo não volta mais a tocar no assunto e nós temos coisas mais urgentes para nos preocupar então.



Esse pequeno dialogo sem aparente muita importancia do qual a maioria das pessoas não lembra é no que se baseia essa expansão, quando o Mestre dos Espelhos vem pedir ajuda a Geraldo da Rivia... só que não é tão simples assim. Nada nunca é simples com Gaunter O'Dimm.

A principal linha de missão da expansão começa com um suspeito, chamado Olgierd Von Everec (um bandido com principios de nobre), que faz um contrato para matar um monstro sapo gigante nos esgotos de Oxenfurt. Há rumores de que o sapo é um príncipe, um boato que é confirmado assim que Geralt o mata e soldados do seu país natal Ofieri aparecem para prendê-lo por regicidio.

A defesa "eu achei que era apenas um monstro-sapo normal" aparentemente não cola com eles, e Geralt é colocado em um navio para ser transportado de volta a Ofieri para uma execução pública. É aí que Gaunter O'Dimm aparece do lado de fora da cela de Geralt, oferece-se para libertá-lo em troca de um pacto, queima uma marca misteriosa no rosto e o navio afunda em uma tempestade com a qual ele pode ou não ter relação, dando a Geralt a chance de escapar. Essa é a forma que Gaunter O'Dimm pede ajuda, saiba você.



A principal linha de missão da expansão começa com um suspeito, chamado Olgierd Von Everec, que faz um contrato para matar um monstro sapo gigante nos esgotos de Oxenfurt. Há rumores de que o sapo é um príncipe, um boato que é confirmado assim que Geralt o mata e soldados do seu país natal Ofieri aparecem para prendê-lo por assassinato.

O'Dimm pede a Geralt para encontrá-lo em uma certa encruzilhada em Velen, onde descobrimos que ele e Olgierd têm algum tipo de acordo, o que resultou em Olgierd sendo imortal. A essa altura, as comparações entre Gaunter O'Dimm e o folclore sobre o diabo já são bastante palpaveis, mas o jogo nunca (na minha opinião) pende muito para um lado. O'Dimm não é apenas o diabo que aparece no universo Witcher, ele é uma versão do diabo ao estilo Witcher, com diferenças e ambiguidade suficientes para mantê-lo misterioso e imprevisivel.

O que O'Dimm quer de Geraldo para pagar sua dívida com ele é que ele realize três desejos de Olgierd. Não é explicado exatamente porque O'Dimm precisa de uma terceira pessoa para realizar esses desejos, talvez seja porque existem regras na magia que mesmo os demonios precisam obedecer (o que é bastante recorrente no lore sobre magia), talvez seja apenas porque ele ache mais divertido desse jeito. É (bem) escrito de uma forma ambígua e interessante, então não dá realmente pra saber.



De qualquer forma, o que Olgierd quer de desejo são duas coisas bastante... estranhas (sendo a terceira revelada somente após você cumprir as duas primeiras tarefas). Ele quer que o seu irmão Vlodomir tenha a noite mais divertida que ele já teve, e quer que Geraldo lhe traga a casa de uma família lá.

Geraldo não parece preocupado com o primeiro pedido, mas não faz a menor ideia de como ele vai trazer uma casa inteira para Olgierd - mas então O'Dimm aparece e lhe explica que ele está com as preocupações invertidas, porque provavelmente conseguir a casa vai ser o mais fácil, dificil mesmo vai ser fazer o irmão Vlodomir se divertir. Muito provavelmente algo ligado ao fato que ele está morto a anos.

E esse é o ponto que você consegue sentir o quanto os roteiristas estavam se divertindo escrevendo esse DLC, porque eles tem (e usam) liberdade para escrever coisas que não caberiam na aventura principal do jogo. "Conseguir a casa" acaba se revelando um heist que não deve nada a GTA: você precisa recrutar uma crew para o golpe (com direito a escolher entre dois membros para cada role), o plano tem complicações, tem traições, enfim diversão para toda família no melhor crossover entre "Casa de Papel" e "Onze Homens e um Segredo" em fantasia medieval que você não sabia que precisava.

Na outra quest os roteiristas tentam coisas mais diferentes ainda, em que Geraldo tem que ajudar um fantasma a se divertir. Como você pode imaginar, Geraldo da Rivia pode ser muitas coisas, mas ser "um homem divertido" não é um adjetivo que eu usaria a ele. Os escritores tem total ciencia disso e não apenas temos ótimas cenas de Geraldão agindo fora do seu personagem tradicional, como são colocadas alguns questionamentos bastante pertinentes sobre a forma sisuda que Geraldo vive a vida ao mesmo tempo que ressalta as qualidades normalmente subapreciadas da sua personalidade.

Geraldo sorrindo, a CDPR teve que criar programar uma nova engine gráfica para isso
Os dois primeiros desejos são mais leves, por isso é de se esperar que o terceiro seja mais emocionalmente pesado, e de fato no terceiro, Geralt deve recuperar uma certa rosa que Olgierd deu à sua esposa, agora falecida.

Então conhecemos a história dos Von Everec, sobre como Olgierd se tornou imortal e a que custo. Tem algo de Lovrecraftiano na escrita dessa terceira quest (com efeito, me lembra bastante de "O Caso de Charles Dexter Ward"), e não existem soluções simples ou "certas" de como resolver os problemas da família Von Everec.

Geralt: Need to be honest. If I take the rose, you might cease to exist, as might the world you’ve built around you.
Iris: And what will happen then? Will I be free of the suffering, the sadness? Is it the void that awaits?
Geralt: I don’t know.
Iris: I don’t wish to suffer any longer… but I fear there will be cold and darkness, until… there is nothing at all.
Para mim, a CDPR conseguiu sintetizar toda essencia dramatica que eles queriam passar quando Geraldo diz "Eu não sei". O jogador não recebe uma resposta. Há muitos jogos e escritores de jogos que teriam sucumbido à tentação de oferecer, de uma maneira ou de outra, um caminho "certo" para sair dessa decisão. Não existem soluções "certas" aqui, e isso reflete muito bem toda tonalidade da obra inteira.

The Witcher 3 não é sobre fazer escolhas certas ou resolver o problema, mas fazer o melhor que você pode em um mundo tão errado.

Qualquer  que seja sua decisão, ela permite que Geralt avance no enredo, e encontre Olgierd para a conclusão da trama, na qual O'Dimm cumpre sua parte da barganha e atendidos os três desejos, vem coletar a alma do homem de Olgierd. 

Nesse ponto, o jogador tem a opção de deixar Olgierd à sua sorte ou intervir e tentar salvá-lo. Intervenções levam ao final que a internet tende a considerar o "good ending", mas eu não tenho tanta certeza de que é tão simples assim. Olgierd é, francamente, um bastardo que merece o que está acontecendo com ele. Ele se meteu nessa roubada de livre e espontanea vontade, sabendo do preço, então é certo apenas livrar a cara dele?



Para tornar a decisão mais complicada, algumas das atrocidades que ele cometeu durante sua vida de imortal são explicadas pelo pacto com O'Dimm que lhe deu um "coração de pedra", mas isso justifica tudo o que ele fez? Não é como se ele estivesse particularmente arrependido do mal que causou, embora você consiga entender o caminho que ele trilhou. E mesmo que ele se arrependesse agora, isso certamente não traria justiça àqueles que ele e seu bando machucaram e mataram.

No meu playthourgh eu não intervi, o que é justo é justo, mas se o jogador quiser faze-lo algo muito interessante acontece: você não luta contra O'Dimm em uma grande batalha de boss, como seria esperado de um videogame. Não, a CDPR tem muito mais classe do que isso. Você precisa outsmart ele em um tipo de puzzle, e se você vencer, O'Dimm aceita cavalheiramente sua derrota - o que é justo, é justo afinal. 

É realmente uma elegancia e bom senso na escrita que você não vê todo dia em videogames, porque O'Dimm é um personagem que eu não consigo explicar exatamente, parecendo feito de partes iguais do universo Witcher, um literal djinn e do folclore cristão, com uma pitada de horror cósmico aqui e acolá. Nunca aprendemos exatamente o que diabos ele é, o que, na minha opinião, é uma coisa boa. 



O que sabemos é que ele é o personagem melhor escrito da CDPR, e ele consegue fazer o jogador ter medo de desafiar ele mesmo sem ele ameaçar Geralt ou levantar a voz uma única vez. Grande parte disso é resultado do excelente trabalho de cameras feito pela CDPR: O'Dimm é normalmente mostrado de um angulo de baixo para cima, o que lhe enaltece em poder. 

Com efeito, existem apenas dois momentos que a camera fica no mesmo nível de Geralt: quando as coisas não saem como ele planejou e isso irrita ao ponto que ele efetivamente ameaça o Geraldo (ou seja, diminuindo seu poder a um nível psicológico), e em outro momento se você fizer uma sidequest para aprender mais sobre ele e encontrar um caminho para livrar a cara do Olgierd.

Usar a camera como elemento narrativo na construção do personagem é elemento básico do cinema, mas não é algo muito utilizado em videogames com muita frequencia - em grande parte porque videogames costumam ser feitos por programadores, não cineastas - e eu fico realmente impressionado em como a CDPR teve a sacada de usar isso a seu favor para construir tão bem esse personagem.



Se isso é um indicio de como as coisas serão feitas em Cyberpunk 2077, então fica cada vez mais dificil não acreditar que esse será o melhor jogo de todos os tempos.

Então essa foi a expansão Hearts of Stone. A abordagem da CDPR para um pacto com o demonio é um quadro definitivamente sólido, mas são as cores com que ele é pintado (a sequência do casamento, as interações com Shani, o dilema de Iris, a nuance entre o certo e errado) que o tornam tão bom.

Eu mencionei o quanto estou esperando por Cyberpunk 2077, mas antes de queimarmos essa cidade com Keanu Magia, ainda existe uma última parada a ser feita. A grande despedida do universo de Witcher e a última aventura de Geraldo da Rivia: a expansão Sangue e Vinho. 



Next Prev
▲Top▲