[TOKUSATU] KAMEN RIDER BUILD (ou as leis da fabulosidade já foram definidas)

| terça-feira, 12 de novembro de 2019
Nossa, como os japoneses adoram pôsteres visualmente poluídos, sério
Se você ligar o rádio ou a TV agora (sei lá pra que alguém ainda tem TV em casa, mas enfim), muito certamente você encontrará um jornalista dizendo o quanto o mundo é um lugar asqueroso e horrível, o quanto você deveria estar com medo de viver em uma realidade tão pavorosa e cruel quanto esta. Esse é o trabalho deles, e enquanto você não for pra cama borrado de medo e depressão eles não terão conquistado o seu pão do dia.

Mas... será que é assim mesmo? Será que o mundo é realmente um lugar tão ruim quanto pessoas que ganham o salário delas abrindo mão de qualquer conciencia sobre a repercussão dos seus atos te dizem que ele é?

Mais importante que isso, na verdade, não existem pessoas que fazem o trabalho contrário ao do jornalismo? Alguém que dedique a sua vida a bater no ponto que o ser humano é essencialmente bom e que há esperança?

Já dizia Rousseau
Bem, a resposta é felizmente que sim. E essa grande magia de um segmento da industria de entretenimento conhecida como "Tokusatsu". O Tokusatsu nasceu no momento mais sombrio da história recente do Japão, no momento que a Terra do Sol Nascente mais precisava de luz.

Após a segunda guerra mundial e seu trágico desfecho com uma rendição incondicional, o Japão tentava se reerguer fazendo aquilo que os japoneses são fantásticamente incriveis em fazer: baixando a cabeça e trabalhando. Tipo, muito. E então, durante os anos setenta, algo realmente ruim aconteceu: a Grande Crise do Petroleo de 1973.

Naquela época os Estados Unidos declararam seu apoio a Israel durante a guerra do Yom Kippur, e em represália os países arabes aumentaram o preço do petroleo em 400% . Para um país cuja produção de petroleo é ZERO, ter o preço de todo combustível aumentado em 400% do dia para a noite é uma facada na bunda. Para um país que estava reconstruindo não apenas sua economia, mas todo seu parque industrial e tecnologia, foi uma facada com uma faca enferrujada.

O Japão foi tipo o cara que tomou seis tiros, passou alguns meses no hospital entre a vida e a morte, mas de alguma forma conseguiu sobreviver. Aí quando você sai do hospital, atravessa a rua e é atropelado.


Não adianta você fingir que não ouviu "RABBIT! TANK!" na sua cabeça agora

Foram dias sombrios para a futura terra das waifus. E diante desse cenário tão sombrio, de perspectivas tão negativas, em resposta a população japonesa acabou abraçando justamente o oposto dessa realidade. Tokusatsu já existia no Japão na forma de monstros gigantes destruindo cidades (sendo o mais famoso deles tão famoso que eu não preciso sequer citar o nome para você saber de quem eu estou falando), mas nessa época houve uma explosão imensa de popularidade de um outro genero de tokustsu que nunca tinha tido tanto destaque até então: super-heróis que lutam pela justiça.

É realmente digno de nota que em um dos seus momentos mais dificeis, as pessoas escolheram a esperança. Ajudar os outros apenas porque é certo, não porque você vai ganhar algo com isso, porque é o que tem que ser feito.


Isso não é um fenomeno exclusivo do Japão, felizmente. Em culturas do mundo todo nós vemos esse fenomeno se repetir e em momentos de dificuldade as pessoas se voltam para o bem, não para o desespero. Nos Estados Unidos nós temos os heróis dos quadrinhos, na Inglaterra nós temos o Doutor, na idade média nós tinhamos os romances de cavalaria. Meu ponto é que o ser humano é essencialmente bom, e por natureza nós buscamos conceitos como justiça, abnegação e amor. As vezes a cultura dá uns tropicões no meio do caminho (sendo os anos 80 nada senão um gigantesco tropeço cultural), mas é onde instintivamente nós queremos chegar.

Eu estou falando tudo isso porque é importante você entender o que é o tokusatsu, sobre o que é o tokusatsu, para entender meu ponto sobre essa série em especifica. Eu já chego lá, apenas aguente mais um pouco, ok?


Atualmente a Toei trabalha com duas franquias de tokusatsu: Super Sentai e Kamen Rider. O que quer dizer que todo ano ela lança duas séries, uma sobre um grupo de pessoas em roupas coloridas que tem um robo gigante, e outra sobre um cara numa moto que se transforma. A diferença mais estrutural entre elas é que o Super Sentai é mais para crianças, e Kamen Rider é um pouco mais para crianças/adolescentes.

Isso é refletido muito na linha de brinquedos que esses programas vendem (que é como a Toei realmente faz dinheiro com esses shows), sendo que os Sentai se focam mais em bonecos/robos de brinquedo, e Kamen Rider é mais sobre acessórios e colecionaveis. Mas em essencia são dois grandes comerciais para vender brinquedos, apenas brinquedos diferentes e para publicos levemente diferentes.

Minha reação quando as pessoas dizem "as crianças de hoje..."
 O que nos leva ao segundo ponto importante sobre Kamen Rider Build, uma vez que você já entendeu sobre o que Tokusatsu é: as crianças de hoje são muito, mas muito, mas ANOS-LUZ mais espertas do que nós eramos na nossa época. Eu sei que é muito comum na internet dizer que "essa geração atual é idiota e nós que tivemos infancia de verdade" ou qualquer retardadice dessas que você vê em redes sociais, mas a verdade é justamente o contrário.

As crianças de 10-12 anos hoje, por exemplo, são burras. É claro, toda criança é burra. Mas ainda sim, elas são milhas e milhas e milhas mais espertas do que nós eramos com essa mesma idade. Se uma criança de 10 anos hoje é burra (e é), EU com dez anos era um completo mentecapto. E você também.

Não estamos derrotados, ainda temos o obrigatório vilão redimido para lutar por nós...

Por isso os programas destinados a crianças hoje são eons inteiros melhores do que na nossa época. Desculpe, é fisicamente impossivel não aceitar trocar My Little Pony de hoje pela aberração que era a animação dos anos 80. Pode juntar todos os desenhos dos anos 80, colocar esteróides, e ainda sim não vai chegar aos pés de UM Steven Universe, Avatar (qualquer um dos dois, pode escolher) ou mesmo Wander Over Yonder (que nem é um desenho tão badalado assim). Se der a chance de trocar o Voltron dos anos 80 pelo dessa decada, eu assino na hora.

Meu deus, nós vivemos em um mundo onde existe um filme baseado em videogame que é indiscutivelmente bom! Cara, Detetive Pikachu é bom! Não é "ah, você tem que entender o contexto" ou "você tem que jogar sei lá o que para entender", não! É BOM. PONTO. Não sem "se", não tem "mas". É bom.




E isso só é possível porque as crianças de hoje são mais espertas, mais exigentes do que nós eramos na nossa época. É assim que o mundo é hoje, e o mundo é um lugar melhor por conta disso.

E é claro que essa exigencia do publico acabou chegando, obviamente, nos produtos destinados a crianças. O Tokusatsu teve que mudar, ele teve que evoluir para acompanhar o ritmo das crianças hoje tanto quanto a Disney teve que apertar o passo para continuar tendo a atenção do seu publico (o que nos deu animações espetaculares como Moana e Zootopia). Mas como, eu rogo, você "moderniza" o tokusatsu sem que ele perca a essencia do que ele é E vende brinquedos no processo?

A resposta é Kamen Rider Build.



Como toda evolução cultural, Build não inventou a roda mas aperfeiçoou a forma como ela gira (da mesma forma que Frozen é uma evolução das ideias que a Disney já tinha tido com Enrolados, provavelmente o filme mais subestimado das animações da Disney). Me permita explicar: como os tokusatsu funcionavam durante o anos 90?

Você tinha um arco de origem, e então a série caia na rotina "monstro da semana", até que no final o tema levantado lá no começo da série é resolvido em outro arco. Uns faziam melhor, outro pior (e algumas destrambelhavam insanamente, como Jiraya que do nada meteu aliens e robo gigante no ultimo episódio sem este tema ser abordado em momento algum durante a série), mas é assim que rolava.

Esse modelo de "Monstro da semana" pode ter funcionado durante os anos 90, mas não é assim que nós rolamos hoje. Atualmente, por exemplo, só as séries da Warner (Flash, Arrow, Supergirl, Supernatural, etc) seguem esse modelo e isso é geralmente visto como televisão pobre. Enquanto ainda é aceito para sitcoms, qualquer série que pretenda ser leva a sério como narrativa se esforça muito mais em tocar a história adiante a cada episódio para o espectador ter a sensação que o programa quer chegar em algum lugar e não está apenas desperdiçando seu tempo. Esse modelo funcionava quando nós tinhamos poucas opções de entretenimento, mas hoje nós temos tantas opções, mas tantas que escolher com o que gastamos nosso tempo se tornou um fator decisivo.

- O quão boa é essa série?
- Bem, a última forma do vilão é o King Crimson...
- MELHOR TOKU EVAH!

As séries estão migrando para serem mais como "The Good Place" do que Supernatural, e isso é verdade mesmo para o tokusatsu. E é algo que Kamen Rider Build faz sem o menor pudor: cada episódio toca a história para a frente e vamo que vamo. Durante seu curso, a série teve varias oportunidades de atingir um novo patamar e se acomodar por ali. Ela poderia, seguramente, ter decidido se acomodar com um status quo e sentar sobre ele durante varios episódios, talvez até o fim da temporada se quisesse. Mas não é isso que acontece, a história anda, a coisa flui e isso é algo que não tinha visto acontecer em um tokusatsu ainda. Eventualmente, sim, mas durante a série toda? Isso é novo para mim.

O resultado final é que você sai com a sensação que o tema e as possibilidades propostas pelo cenário foram amplamente exploradas. Foi feito o que dava para ser feito com muitas transformações, lutas e CGs baratas (o equivalente moderno dos monstros de borracha). Mas, mais importante que isso, a série passa a sensação todo episódio que quer chegar em algum lugar, que tem uma história para contar e personagens para desenvolver.


Acredite, as crianças de hoje sabem quando estão sendo tapeadas e quando é só encheção de linguiça (sendo este o motivo que Kamen Rider Gaim não é tão popular quanto poderia ser, a produção teve problemas sérios de planejamento e muita encheção de linguiça e episódios corridos foram feitos). A história de um Japão dividido em três nações diferentes por um muro alienígena não parece desperdiçada ou pouco aproveitada, Kamen Rider Build foi o deveria ser.

Isso sem perder a essencia do que o tokusatsu é respeito. Build é uma série sobre amizade, sobre enfrentar o mal, e sobre justiça - porque é o que tokusatsus são - mas é uma versão moderna desse tema, que em nenhum momento subestima a inteligencia do seu púbico. O tema principal de Build é a ciência, e a grande mensagem no final é que a ciência por si só não é boa nem má, as pessoas podem usar para coisas terriveis tanto quanto para coisas maravilhosas - só que esse tema não é abordado superficialmente, e temos bastante explorado (as vezes de forma brega, verdade, mas isso é meio que um charme do tokusatsu) sobre as escolhas e consequencias disso para os personagens. Não tendo que gastar tempo com "monstro da semana", Build tem 46 episódios para desenvolver os personagens e o tema tanto quanto acha que deve, e disso não se sai insatifeito.

Falando em modernizações, não se pode falar de Kamen Rider Build sem falar do seu elenco. A partir dos anos 2000, a Toei mudou sua politica de escala de atores para suas séries (como eu disse, nenhuma revolução surge do nada) e parou de empregar dubles como personagens principais para escalar atores profissionais. É por isso que a partir dos anos 2000 praticamente não se vê mais lutas dos personagens destransformados, e durante muito tempo se criticou que isso era um desserviço da Toei com o produto.

Ai que menino sapeca


Bem, não é. Ao abrir mão de lutas coreografadas de personagens sem o henshin, a Toei estava na verdade escolhendo beleza, carisma e capacidade de atuação. E em Kamen Rider Build essa escolha pagou dividendos em seu máximo potencial, eu nunca vi uma série japonesa com tanta gente bonita, carismática e com boas atuações. Considerando que a proposta da série é justamente focar no desenvolvimento dos personagens mais do que em cenas de ação, eu diria que a escolha não poderia ser mais acertada.

Você realmente compra a jornada, e todas as reviravoltas de Kiryu Sento e sua gangue, você identifica sua personalidade e torce por seus objetivos. Quando após varios episódios de coisas ruins acontecendo, o Sento volta finalmente a sorrir, não tem como não se emocionar com um menino tão carismático e tão bonito quanto ele. E o mesmo vale para todos os personagens, em maior ou menor grau.



O que não apenas é o ponto da série, mas uma dica pra vocês: é assim que se vende brinquedos hoje em dia. Eu (e qualquer criança assistindo isso) estou muito mais inclinado a comprar qualquer tralha que eles queiram me vender de personagens com os quais eu verdadeiramente me importo. É assim que funciona, e eu posso dizer isso porque estou escrevendo olhando para um funko do Doutor (bem, tecnicamente da Doutora) que eu me dei ao trabalho de comprar em uma loja que não entrega no Brasil e usar um serviço de shipping adress para ter. Da mesma forma que enquanto metade do que fazem as pessoas irem ao cinema asssitir John Wick são as cenas de ação espetacularmente talhadas a mão, outra metade é o quão carismático e legal o Keany Reeves é. É assim que o marketing funciona, e como todas as coisas o tokusatsu não está alheio a isso.



E eu não estou tirando isso da bunda, os numeros da Toei mostram isso: o maior lucro do ano com brinquedos baseados em live action (porque nada ganha de Dragon Ball e One Piece também, né) é de Kamen Rider Build, com 22,5 bilhões de ienes (aproximadamente  850 milhões de reais).

Bem, então resumindo a obra até aqui, Kamen Rider Build é exatamente o que você poderia esperar de uma releitura dos temas clássicos do tokusatsu adaptados para os tempos modernos, com a execução e o desenvolvimento que esperamos de uma série top nos dias de hoje.

Essa série tem uma fotografia excepcional, tendo cenas de luta lindissimas usando efeitos de luz e cenário para criar drama e monologos no meio do combate, classy stuff.
Mas... isso quer dizer que a série é perfeita? Hã, não exatamente. Kamen Rider Build é uma evolução inacreditavel dentro do genero de tokusatsu, mas ainda não é o produto final. Embora seja louvavel essa preocupação da história estar sempre avançando e evoluindo os personagens, a Toei ainda tem que acertar a mão um cadinho na sintonia fina para que alguns subplots não pareçam rushados (como por exemplo, toda a coisa sobre a Namba Industries ou a coisa das dimensões paralelas, que é apenas TODO O PONTO DO ARCO FINAL!). Não é nada que comprometa a série, mas definitivamente pode ser melhor trabalhado no futuro.

O que eu acho mais comprometedor em relação a proposta, no entanto, é a coisa das garrafas que dão os poderes aos Kamen Riders. São muitas transformações diferentes, e enquanto isso não é um problema per si, passa a sensação que em determinado momento a Toei perdeu a mão legal de quantas garrafas existiam e quem estava com cada uma. Eu posso jurar que o numero total de garrafas que existem no mundo fica mudando, porque mais de uma vez é dito que facção X tem todas as garrafas... mas os Kamen Riders ainda tem as deles para se transformar. E as vezes não tem, é muito confuso.

Não tão confuso quanto o visual da Genius Build, isso é
A coisa degringola tanto que mais para o final da série você apenas para de prestar atenção nisso, quando um personagem diz que tem X garrafas então você apenas aceita que ele tem porque não tem como fazer o tracking de quantas existem e muito menos onde estão. Quando a coisa das garrafas é todo o ponto central da trama, é algo que é meio dificil "deixar pra lá".

Kamen Rider Build pode não ser perfeito, mas é exatamente o que você esperaria de um Kamen Rider moderno que não perde sua essencia de Kamen Rider. Tem vilões carismáticos (o Stalk é o melhor vilão de tokusatsu que eu lembro de ter visto), a maioria das coisas faz sentido (tem até uma explicação para o que são as Best Matches), as cenas de luta importantes tem uma fotografia linda, os personagens são carismáticos, os momentos dramaticos soam genuinamente heartfelt (seja lá como se diga isso em portugues, eu juro por Deus que estou desaprendendo essa lingua idiota que ninguem mais usa), o humor funciona, as discussões não são rasas tanto quanto o tema e o publico alvo permite e tem o final mais adoravel que eu já vi em um toku.

Como eu disse, ainda não é o produto alvo, não é onde a Toei acerta todas as questões sobre como passar o mesmo tema de justiça, amor e amizade para uma nova geração (uma participação feminina maior cadê, né dona Toei?), mas definitivamente é um onde ela diz: "Vamos começar o experimento?"











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