O livro infantil The Story Of Ferdinand foi um sucesso comercial após sua publicação em 1936, superando "E o vento levou" e se tornando o best-seller número 1 nos Estados Unidos. Escrito por Munro Leaf e ilustrado por Robert Lawson, o livro segue um touro pacífico que prefere cheirar flores a batalhar matadores na arena, ganhando a ira e a confusão da Espanha no processo. Na época, muitos leram "A história de Ferdinando" como uma alegoria política e ela incomodou muita gente: ela foi banida na Espanha depois que partidários de Francisco Franco acreditaram que era um tratado pacifista; Hitler queimou cópias do livro, chamando-o de "propaganda democrática degenerada"; e outros pensaram que ele incorporava o fascismo, o comunismo e outras ideologias políticas violentas e de má reputação. Embora Leaf tenha dito que seu livro era meramente “propaganda para as risadas”, a filosofia não-violenta de A História de Ferdinand tem pelo menos algo a ver com seu legado duradouro. Afinal, nem todo livro infantil foi distribuído gratuitamente na Alemanha para promover a paz após a derrota do país na guerra. Gandhi e H. G. Wells se declararam fãs do livro.
A melhor coisa que pode ser dito sobre Ferdinand, a adaptação extremamente livre do livro de Munro da Blue Sky Studios (A Era do Gelo), é que ele tenta defender os mesmos valores que o material de origem, embora seja com o bom e velho "seja você mesmo!" igual a tantos outros filmes infantis. O enredo, tal como é, permite que o ponto de vista de Munro brilhe em meio às várias conflitos que o filme apresenta para seu público. Depois que um jovem Ferdinand descobre que seu pai foi morto no ringue, ele escapa do campo de treinamento de touro da sua juventude apenas para ser pego por uma família que o leva para morar em sua fazenda. Os anos passam e Ferdinand cresce em um touro cintilante (dublado por um bastante afável John Cena), mas com certeza, as percepções da sociedade de sua ameaça superam as evidências de sua personalidade gentil. Ele é arrastado de volta ao acampamento depois de um incidente envolvendo uma abelha e Ferdinand em uma loja de porcelana, onde ele deve testar seus princípios para salvar a si mesmo e aos outros touros no campo.
Os momentos mais sinceros de Ferdinand acabam sendo os seus melhores, mesmo que sejam um tanto quanto bregas. Quando um jovem Ferdinand humildemente pergunta ao pai se está tudo bem se eles não compartilham o mesmo sonho de lutar, sua resposta medida, mas derrotada sobre "o mundo não funciona assim" soa verdadeira em sua miopia. Mais tarde, Ferdinand conforta um touro companheiro chorando sobre o seu amigo ter sido mandado para um restaurante, essencialmente dizendo-lhe que touros também podem expressar outras emoções além de agressão. Mas o melhor momento de Ferdinand vem quando o touro gentil finalmente entra no ringue: Seu gesto de paz diante da violência tem um sentimento legítimo, tanto que é uma pena que o filme não saiba como lidar com o tema.
John Cena, especialmente, claramente entrou nesse projeto porque ele viu o valor dos apontamentos de Ferdinand contra a masculinidade tóxica e o preconceito social. Não existem muitas discussões produtivas sobre como os meninos são criados para ter a bagagem emocional de um soldado espartano e depois reclamamos quando as consequencias disso acabam machucando as mulheres (pelo menos demonstramos uma coerencia aqui: ninguém parece se importar muito quando essa toxidade só prejudica os prórios homens que tem uma taxa de suicidios maior, expectativa de vida menor e incidencia de doenças evitaveis através de exames de prevenção muito maior). No meu livro, qualquer filme cuja proposta seja questionar o bom e velho "HOMEM DE VERDADE TEM QUE/NÃO PODE", é um tentativa válida.
Mas meio que "na tentativa" é até onde vai.
Pode parecer estranho, mas Ferdinand me lembra um pouco Ghost in the Shell - o live action. Naquele filme, Scarlet Johansson claramente entrou nesse projeto pelas implicações éticas e morais da proposta, e ela se esforça muito e genuinamente para fazer disso o seu filme em cada cena que participa...
... só que o resto do filme parece que não esteve na mesma reunião de briefing que ela, e parece funcionar em uma sintonia totalmente diferente. Com Ferdinand acontece a mesma coisa: John Cena parece estar tentando fazer um filme, e todo o resto do filme quer outra coisa.
O resultado é uma mediocridade geral pouco interessante. A narrativa de uma única nota, de início e fim, parece especialmente prolongada, talvez para justificar uma adaptação de longa duração de um livro fortemente ilustrado, ou com maior probabilidade de incluir tantas seqüências de perseguição ou de luta quanto possível. Além disso, o filme é quase desprovido de humor além do ocasional rosto engraçado ou de humor fisico. Claro, algumas piadas funcionam como os ouriços Un, Dos e Quatro (nós não falamos sobre o Três), ou como os cavalos alemães (embora parecem mais ter saído de Shrek do que conversar com a proposta do filme), mas não conte muito com isso.
Depois, tem a animação digital colorida do Blue Sky, que mal evoluiu desde a estréia da Era do Gelo 15 anos atrás; embora o estúdio consiga renderizar paisagens com composições pictóricas, tudo o mais é um saco de imagens vagas e opressivamente brilhantes que dizem o mínimo possível.
Em estrutura, Ferdinand lembra um pouco Procurando Dory: tem algumas cenas martelando o tema do filme preenchidas por cenas de ação, perseguição do piadinhas de humor fisico que estão lá só para matar o tempo das crianças. A grande diferença aqui é que enquanto "o tema do filme" de Procurando Dory é feito pela fucking Pixar, aqui parece ser apenas o John Cena remando sozinho.
Porque aparentemente animais dirigindo um carro na autoestrada é a melhor forma conhecida pelo homem de matar tempo em uma animação, né Dory? |
Se Ferdinand queria ser "Zootopia para meninos", bem... tem a dublagem do David Tenant também, isso é alguma coisa? Eu acho?
OSCAR 2018 (1 indicação)
Melhor animação de longa metragem