De tempos em tempos as estrelas se alinham e mesmo uma indústria conhecida pela sua produção em série e sem alma é capaz de entregar uma obra prima que reverberará por muitos anos por vir. Quer dizer, se a Disney aprendeu que fazer filmes de heróis com coração e um ponto a ser provado é melhor do que apenas despejar nomes de peso em filmes sem impacto nenhum, então há esperança para a desumanizante industria dos animes, certo? Ceeeeeeerto?
Pois bem, vejamos o estudo de caso de hoje: Violet Evergarden, aquele que tinha tudo para ser o maior anime de 2018. Talvez um dos maiores de todos os tempos, que mudasse o próprio rumo da animação japonesa como Evangelion, Akira e Ghost in the Shell foram antes dele. Parece ambicioso? Pois saiba que Violet Evergarden tinha na mão todas as ferramentas para isso. As estrelas estavam certas.
E deu tudo errado.
Para começar, Violet Evergarden é uma light novel escrita por Kana Akatsuki que ganhou três prêmios literarios da Kyoto Animation (light novel, manga e cenário). Tá, e daí? Bom, "daí" que a Kyoto Animation não é só um dos maiores estúdios do Japão, como um dos mais exigentes também. E quando eu digo que eles são exigentes com qualidade, é o padrão japones de qualidade. Tanto que eles não fazem essa premiação anual. Imagine, por exemplo, que em determinado ano o Oscar apenas dissesse "meh, não tem nada de taaaaaao especial esse ano, quem sabe ano que vem?" e ficasse por isso mesmo?
Em nove anos de prêmio, apenas três prêmios foram concedidos e em muitos anos sequer "menções honrosas" tiver. A Kyoto Animation é exigente DESSE jeito com seus prêmios. Então podemos dizer que a obra na qual o anime se baseia tem bastante peso.
Resolvido isso, o próximo quesito que normalmente atrapalha a produção de um anime é a grana, o money, o tutu, o faz-me-rir, a alegria das criancinhas, moola, cash, dingo. Você entendeu. Isso normalmente é um problema bem sério para os animes, e muitas vezes valores de produção são sacrificados para que as coisas sejam entregues dentro do prazo senão o dinheiro acaba. *Cof Karekano cof*
Esse não é um problema para a Kyoto Animation, que reconhecidamente é uma das melhores empresas para se trabalhar no ramo dos animes. Não apenas sua faixa salarial é consideravelmente acima do mercado, como as condições de trabalho são estupendas para um mercado que só não tira sangue dos seus artistas a chibatadas porque não querem gastar comprando tiras de couro.
Com efeito os animes da Kyoto são conhecidos por sua impressionante qualidade visual e nível de detalhe com o qual os outros estúdios não ousam sequer sonhar numa série feita para TV. Permitam-me ilustrar:
ISTO É ANIME...
... ISSO É KYOTO ANIMATION
Sem exagero, os personagens de fundo dos animes da Kyoto costumam ser mais bem desenhados que os protagonistas da maioria dos animes, isso é Kyoto Animation!
Agora, e se eu te dissesse que a KyoAni não só tem bolsos muito fundos, como conseguiu o melhor contrato de exclusividade que um anime pode desejar? Pois saiba você que Violet Evergarden foi bancado por um rechonchudo contrato de exclusividade com a NETFLIX. O resultado é que eu não acredito que eles possivelmente conseguiriam gastar todo o dinheiro que tiveram a disposição para fazer esse anime.
E o resultado final é tão bom, mas tão bom que eu achei que estivesse assistindo um longa do Makoto Shinkai, não um anime de 12 episódios! Chega a ser ofensivo o quanto de cuidado e esforço eles colocaram no cenário, na iluminação, nos figurinos, na animação... ufa. Sem mentira, você consegue saber muito da personalidade dos personagens de Violet Evergarden apenas pela linguagem corporal dos personagens, e para um anime isso é estarrecedor.
Sem mentira, esse é o anime não-longa metragem mais bonito que eu já vi na minha vida!
Para propósitos deste texto, desconsidere a dublagem americana pavorosa do video (embora a brasileira não seja muito mais inspirada que isso também), a dublagem japonesa nesse anime é ótima
Mas puta que me pariu em rocambole e maria-mole, a maioria dos LONGA METRAGENS de anime não são tão bonitos assim!
Então vamos recapitular: nós temos um livro ganhador de prêmios adaptado da forma mais visualmente bela possível com todo orçamento e tempo que um anime poderia sonhar. O que poderia dar errado?
Bem, a grosso modo... todo o resto!
Vamos começar pela premissa do anime: Violet é uma veterana de guerra que, agora que a guerra acabou, tem que se adaptar a realidade da vida civil novamente. Sim, muito como a série do Justiceiro, só que aqui o protagonista com stress pós-traumático é uma garotinha de 14 anos BECAUSE ANIME!
Mas ok, se você respirar fundo e superar a coisa do BECAUSE ANIME, a premissa é boa e pode nos levar a lugares interessantes. Afinal, é uma proposta interessante. Uma pessoa usada como instrumento de guerra tentando encontrar maneiras de reavivar sua humanidade perdida. Uma garota disciplinada em rigoroso decoro militar. Um fantoche com suas cordas soltas, sem saber o que fazer com sua nova liberdade. Ela é uma criança perdida, esquecida pela sociedade, forçada a começar do zero. O cenário é um resquício de uma nação devastada cuja utilidade é levada a uma encruzilhada. A história termina com o fechamento de um capítulo, quando começamos a jornada de outro. A jornada é a da recuperação.
Definitivamente dá para tirar uma ótima história disso. Através desta garota, somos apresentados a este mundo feito como uma colcha de diferentes períodos de tempo e influências culturais, todos costurados juntos para criar algo novo. As estruturas da era vitoriana servem como horizonte da cidade, enquanto a inegável aparência da tecnologia do início do século XX assume a forma de veículos motorizados, bem como uma ampla variedade de traquitanas e bugigangas espalhados pelo ambiente. Nossa pessoa de interesse, Violet, igualmente misturada. Sua aparência é de uma mulher jovem e insegura, enquanto seus membros mecânicos contam uma história diferente. Um de violência e escuridão. Esse temperamento refletia em sua personalidade. Ela só vê as coisas de maneira utilitária; máquinas de escrever são armas, a escola é uma missão, seu emprego é um quartel-general, saudando sempre que receber ordens, solicitando permissão para todas as suas ações. As graças sociais são completamente perdidas por ela. Sua formação militar roubando-lhe o privilégio de decidir. Havia apenas um caminho para ela tomar. Até recentemente, suas ações eram as de uma lâmina, embainhada, aguardando o momento em que sua utilidade fosse necessária novamente. Um instrumento de morte sempre que seu portador achar adequado. Seu novo trabalho muda isso.
A primeira cena desse vídeo, só ela, levou um mês inteiro para animar e foi desenhada em painéis de dois metros de altura para ser filmado. É uma qualidade realmente estupenda.
Ela deve escrever para os outros como uma "Automata de Automemória", uma forma desnecessariamente complexa para dizer que é encarregada de escrever cartas para as pessoas, dando voz àqueles que têm dificuldade em fazê-lo por conta própria. Um trabalho onde os sentimentos registrados são capturados em uma carta. Uma chance para uma garota emocionalmente raquítica aprender quais são os sentimentos. Uma "boneca" dizendo para si mesma que ela é um objeto, quando, na verdade, o ato de tentar ser uma é o que mais a aproxima da humanidade.
Como eu disse, a obra que se baseia o anime parece realmente espetacular. Então, eu sou obrigado a perguntar mais uma vez: como POSSIVELMENTE esse anime deu errado?
Bem, executando coisas maravilhosas da forma errada, eu suponho que possa ser a melhor explicação. Vê, o problema com a nossa protagonista, Violet Evergarden. Ela é suposto ser uma pessoa ferida por ter sido criada como uma criança-soldado, se sentindo mais confortável vendo a si mesma como um objeto do que um ser humano. No papel, isso é profundo.
Na execução, ela é apenas burra.
Não, sério, eu entendi o que o anime quis fazer: Violet não entende os sentimentos e as nuances da sociedade. Ok, legal. Mas o que acontece na prática é que ela é ridiculamente imbecil. Sim, eu sei que ela é uma criança que só conheceu a guerra, que não entende os próprios sentimentos e tudo mais, mas a execução disso é tão tosca e tão simples que você fica apenas com a sensação que ela é apenas retardada.
Grande parte do problema disso vem que ela é bastante inteligente e capaz em todos os aspectos possíveis e imagináveis, mas então quando o roteiro precisa ela passa do nada a ser tão sem noção quanto uma criança autista. Mas é só quando o roteiro quer forçar uma cena triste ou, Amaterasu me ajude, tenta ser engraçado. Animes raramente sabem ser engraçados, mas esse leva o bolo.
Porque, claro Violet, troque de roupa na frente do menino sem entender pq isso é um problema enquanto ele grita e sangra pelo nariz. Não é como se isso já não tivesse sido feito um bazilhão de vezes antes em animes, não é?
Acho que talvez o maior problema que eu tenha com esse anime seja esse, afinal. A falta de tato, a falta de direção, a falta de bom senso. Por exemplo, Violet perdeu ambos os braços na guerra e por isso tem mãos mecânicas no lugar delas. Bastante como em Fullmetal Alchemist. Só que diferente de Fullmetal Alchemist, os braços mecanicos da Violet são completamente alienígenas ao nível de tecnologia do cenário. Não existe absolutamente nada que seja tão avançado como isso, e os braços mecanicos dela se destacam sim mas pelos motivos errados, como se tivessem sido criados só para ela BECAUSE PROTAGONISMO. Isso é ruim, isso chama atenção do jeito errado e quebra a suspensão da descrença.
E o anime é todo repleto de momentos assim. Por exemplo, o anime todo tem um aspecto vitoriano e os personagens se vestem de acordo... com exceção de uma personagem com tetas enormes que se veste como se tivesse vindo de 150 anos no futuro, de um mundo completamente diferente. E não porque é uma coisa da personagem - ela se veste diferente porque escolheu ou algo do tipo - e sim apenas pq tem que botar esses melõezões pra jogo, né? Apenas por isso.
Falta de tato, falta de coerência, de feeling. Outro exemplo que eu posso dar: as autom... ah, foda-se: as maids escrevem cartas para as pessoas, certo. No nosso mundo, na época pós primeira-guerra isso era bastante comum de fato: ser alfabetizado era uma comodidade de luxo. Ok, certo.
Violet EVAgarden. Hã? Hã? |
Só que... esse não é o caso aqui. Todos os personagens são tão culturalmente avançados que você não vai me convencer que essas pessoas são analfabetas. Não aquelas pessoas que se expressam mais eloquentemente do que eu serei capaz até o fim dos meus dias. Então... pra que eles precisam de "escrivinhadoras" de cartas mesmo? A mera existencia das maids letristas não parece fazer nenhum sentido ou ter nenhuma necessidade nesse mundo.
Então, temos uma protagonista cuja complexa inabilidade social soa como pura patetice, um cenário que perde a consistência toda vez que o anime quer fazer uma cena triste ou (argh) engraçada, e um próprio tema que nunca é claramente justificado. E que é executado pior ainda!
Deus, metade das estrepolias do anime é sobre a Violet não tendo noção nenhuma de sentimento e escrevendo cartas sinceras demais. Certo, mas ninguém na empresa de cartas onde ela trabalha se deu ao trabalho de ver o que a novata com dois dias experiencia e claramente com as habilidades sociais de uma porta de zinco escreveu antes de entregar a carta ao cliente? Isso não faz sentido nenhum! E é coisinha assim atrás de coisinha assim, aí tu me fode o meio campo, amicci!
Bem, isto posto... o que acontece ao longo do anime então? No grande esquema das coisas, pouca coisa. Vamos lá: por algum motivo que me foge o conhecimento, a direção do anime decidiu transformar a light novel em episódios isolados sem muita relação uns com os outros. Então Violet Evergarden, o anime, não é uma série progressiva que conta uma história com começo, meio e fim e sim uma coleção de "cartas da semana".
Normalmente Violet vai até algum lugar resolver um problema que só pode ser resolvido por uma carta (sim, é sério isso), acaba ajudando justamente por causa do seu jeito inocente/bronco de lidar com as emoções e então depois do bem vencer o mal e espantar o temporal, parte para a próxima carta. Ou seja, o estudio decidiu que a melhor forma de contar a história era... TRANSFORMAR ELA NUMA COLEÇÃO DE FILLERS! É CLARO QUE SIM, COMO NÃO?!
Mazuquetacontecendo aqui, pela morte da careca do Kuririn!
Foi aqui que pediram MAGUMBOS VITORIANOS? Porque eu acho que foi! |
A boa noticia é que algumas dessas histórias são genuinamente bem escritas, e realmente emocionantes. Por uma breve duração de episódios eu pensei que a série tinha encontrado o seu caminho, lembrando bastante a pegada de Kino no Tabi: chegar em um lugar com uma história interessante acontecendo, conta-la de uma forma honesta e semana que vem bola pra frente. Deixa as papagaiadas da protagonista de lado e se foca na historinha do lugar. Poderia funcionar desse jeito, e são nesses momentos que você consegue vislumbrar o quanto o livro deve ser bem escrito.
O episódio 10, especificamente, é uma das histórias mais bonitas que eu já vi contadas em um episódio de 20 minutos. É uma escrita espetacular. E o episódio catártico onde a Violet finalmente aceita que ela é um ser humano, que as ações dela na guerra tiveram consequências e o que essas consequencias significam é de uma sinceridade que rivaliza com o episódio de Re:Zero onde o Subaru e a Rem apenas passam o episódio todo conversando (que é o melhor episódio do anime inteiro e termina DAQUELE JEITO, você sabe...). É verdadeiramente ótimo! Agora vai!
É esse o caminho a se seguir! E é justamente por isso que não é o que acontece. Claro que sim, como não, né? Porque aí o que a Kyoto Animation faz? Eles viram que o anime tava começando a ficar bom, começando a achar um caminho e isso disparou todos os alarmes de emergência. Eles atiraram o livro original mais longe do que se fosse um manual do MEC e inventaram por conta própria uma bobajada sobre Violet tendo que entrar no modo Rambo para impedir o retorno da guerra porque um grupo mais mal desenvolvido que vilão da fase 2 da Marvel achava paz muito coisa de mariquinha.
O QUE? UAT? MAS QUE CARALHOS TÁ ACONTECENDO AQUI? ACODE, BENJAMIN!
Eu desisto com vocês, caras. Sério. Eu não sei se foi a Netflix metendo o bedelho querendo mais ação a todo custo na série, eu não sei se vocês fumaram cogumelo estragado, ou sei lá o que. O que eu sei é que uma série que conseguiu cagar em toda e excelente premissa que tinha estava achando seu rumo... até vocês jogarem tudo isso fora pra ter cenas de ação e a guria encarnar o Bruce Willis. Aí forçaram a amizade, entreguei os tacos.
Sem mais, meritíssimo.