[FILMES] CLOUD ATLAS (ou A Viagem, porque nada que eu escrever aqui será mais sem noção que o titulo brasileiro...)

| sexta-feira, 25 de outubro de 2019


Cloud Atlas é uma bagunça desgraçada ou uma obra prima? A resposta é sim.

Explicar o que acontece em Cloud Atlas é surpreendentemente simples. Explicar porque merece ser amado e admirado é um pouco mais complicado. A história (baseada em um romance de David Mitchell) é na verdade seis histórias separadas. Em 1849, um advogado moribundo atravessa o Oceano Pacífico. Um aspirante a compositor encontra trabalho como amanuense para uma lenda musical na Escócia dos anos 1930. Uma jornalista de San Francisco em 1973 está envolvido em uma conspiração obscura. Em 2012, um editor foge depois de uma briga com gângsteres. Um clone escravizado luta por sua liberdade em uma versão distópica da Coréia do século 22, e em uma ilha havaiana pós-apocalíptica um pastor ajuda um membro de uma civilização avançada a alcançar o topo de uma montanha.

Tomados por conta própria, cada um desses contos é uma jóia. Como um todo, eles são uma peça de cinema corajosa, brilhante e transcendentalmente bela que leva tudo o que sabemos sobre narrativa e gênero e a transforma completamente em sua cabeça. Não só as Wachowskis e Tom Tykwer conseguiram filmar um romance supostamente não-fílmavel - eles realmente melhoraram o material original.


O romance original de Mitchell apresenta este sexteto de histórias como um conjunto de bonecas russas, cada uma empilhando umas sobre as outras em ordem cronológica antes de serem descompactadas novamente. Essas histórias, que a principio parecem completamente diferentes umas das outras, repetem os mesmos temas sob diversas abordagens diferentes. A história é sobre as diversas formas de escravidão, canibalismo, esperança, o poder de um individuo fazer a diferença. E quando eu digo "abordagens diferentes", é exatamente isso que eu quero dizer.

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Falemos sobre canibalismo, por exemplo - taí uma frase que não se diz todo dia. Em uma das histórias é feita uma piada sobre Soylent Green, em outra há a participação de canibais literais embora isso não seja o cerne da história e em uma terceira o canibalismo é todo o ponto da coisa toda. De certa forma, e talvez essa seja uma comparação estranha  a se fazer, lembra aquele quadro dos Barbixas onde uma mesma história é contada várias vezes com diferentes quantidades de tempo disponiveis.

As mensagens morais que estão presentes no romance são aumentadas pela edição do filme - embora às vezes até o ponto em que você tem flashbacks das "lições de moral do He-man sobre livre-arbítrio" que lembra muito os monologos toscos de The Matrix Reloaded. Como muitas outras coisas que as irmãs Wachoswki fazem, as mensagens do filme são ao mesmo tempo maravilhosas e horríveis.



E enquanto o livro é linear de uma história para outra, a edição do filme, por outro lado, as trata mais como um mosaico. Somos apresentados a cada história em uma introdução quase perfeita de cinco minutos, antes de cruzar a linha do tempo de um lado para o outro quase ao acaso. É apenas quando cada história se desenrola e nos afastamos cada vez mais da pintura, que a verdadeira majestade do quadro completo e a habilidade da edição são reveladas.

Enquanto eles saltam loucamente de thriller para ficção científica, para drama de época e até comédia escrachada, as mensagens no coração de cada sequência são quase idênticas. Estas são histórias sobre lutar pela liberdade (seja liberdade de pensamento ou liberdade do cativeiro); sobre as maneiras como mudamos como sociedades e como pessoas, e sobre a busca de redenção em muitas formas diferentes. O que é mais surpreendente é como todas as seis histórias são absolutamente essenciais - tirar qualquer uma delas e o castelo de cartas cair completamente. Até mesmo a história de 2012, que é uma paródia de "Um estranho no ninho", é um testemunho de quão soberbamente escrito é o roteiro.

As frases que parecem apenas soltas, como a referência solta a Soylent Green, assumem uma pungência inesperada quando colocadas ao lado dos motivos recorrentes do filme: "Os fracos são carne e os fortes comem."

Não são apenas os temas que unem as partes do Cloud Atlas - o filme tem um aspecto meio teatral dado o seu elenco pequeno, mas perfeitamente formado, que desempenha vários papéis com uma maquiagem incrível e transforma o que poderia ter sido o truque mais ridículo do filme em sua maior força. Atores como Tom Hanks, Halle Berry e Hugo Weaving mudam de idade, raça e até mesmo gênero para interpretar meia dúzia de papéis cada, e ainda é claro quem está por baixo (na maior parte do tempo: ver quem Halle Berry foi no segmento de Neo-Seul ainda me pega toda vez).


É uma jogada que gerou alguma controvérsia na época e de forma alguma seria feita em 2018. Por que, os chatos das "redes sociais" argumentam, não poderiam ter contratado atores coreanos para os papeis coreanos? Bem, porque fazer isso seria perder todo o sentido do Cloud Atlas. Idéias de reencarnação e recorrência são tão vitais para o enredo, a mesma história contada pelas mesmas pessoas de diferentes formas é a essencia da coisa toda. Esses personagens renascem e, no entanto, cometem os mesmos erros repetidas vezes. Eles são diferentes, mas fundamentalmente o mesmo - algo que as irmãs Wachowski, sem dúvida, entendem enquanto transexuais.

Como Joseph Campbell definiu tão bem, todas as histórias do mundo são fundamentalmente a mesma - mas jamais exatamente a mesma. E esse filme é a forma mais elaborada que eu já vi de ilustrar esse ponto.

Como eu me sinto toda vez que começo a assistir um anime sem pesquisar antes quantos episódios vai ter. Toda. Vez.


Isso, quando tudo está dito e feito, é o motivo pelo qual Cloud Atlas é um marco cinematográfico. Não pela atuação, ou a escrita, ou o visual - embora cada uma dessas coisas individualmente seja incrível, e eu não exagero quando te digo que cada uma das seis histórias seria um filme bastante competente por seu próprio mérito - mas pelo simples fato de que essas loucas realmente conseguiram consegui-lo. Elas deram um salto impossível de fé ao juntar todas essas histórias em um único filme e, ao fazê-lo, fizeram algo como ninguém jamais visto antes. Quando os ganhadores de Melhor Filme da década seguinte desaparecerem de nossa memória, o Cloud Atlas ainda será lembrado como um dos filmes mais ambiciosos e importantes já feitos. 

And dats the true-true.
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