[ANIMES] K-ON! (ou no Japão, ser brasileiro é piada)

| domingo, 27 de outubro de 2019


Humor é uma coisa engraçada. Hm, bem, essa frase não saiu bem como eu esperava, vou tentar de novo: humor é uma coisa mais interessante de se analisar do que parece, porque depende de vários fatores muito dificeis de explicar e mais ainda de acertar.

Tem muito haver com o timming, com a bagagem cultural de quem ouve e com quem você odeia. Por isso videogames, animes e o humor brasileiro de antes dos anos 90 tem tenta dificuldade em serem engraçados. Por exemplo: quando o Costinha contava uma piada (e ele executava isso magnificamente bem) sobre uma bichinha, um negro ou um nordestino, a graça não era tanto no conteudo da piada mas sim do conceito que aquela classe de ser humano era motivo de chacota e todos se sentiam bem pisando um pouquinho mais nela.

Era um tempo que se usava tranquilamente "viado" como xingamento, por exemplo, pq ser homossexual era a pior insinuação que alguém poderia sofrer. Hoje, eu evito contato com pessoas que pensam dessa forma, mas se necessário for eu recomendo o cidadão procurar ajuda médica porque ele pode ter um tumor pressionando seu cerebro e diminuindo suas faculdades mentais, ou é um completo imbecil. O primeiro tem uma chance de ser curado.

Em outra categoria, videogames tem enormes dificuldades em serem engraçados porque o jogo não tem controle absoluto do timing de sua execução. Com efeito, eu não consigo lembrar do topo da minha cabeça algum jogo que seja realmente engraçado, que eu tenha dado risada jogando. Posso lembrar de jogos que me fizeram chorar, jogos épicos e jogos que me fizeram refletir, mas engraçado, de verdade?

Com muito esforço eu posso lembrar de... Monkey Island e momentos bem especificos de Undertale e os jogos da Behemot (Castle Crashers e Battleblock Teather), mas não muito que isso. Então, é, jogos dificilmente são engraçados.

Animes, por sua vez, sofrem de todos os problemas citados acima (nós não odiamos as mesmas pessoas que os japoneses, e não temos a mesma noção de timing para comédia) com o adicional de que a bagagem cultural deles simplesmente não funciona para a gente. Isso porque grande parte do humor vem da inversão da expectativa, e um exemplo bem claro que eu posso dar é que o Rafinha Bastos construiu a carreira inteira dele em cima da mesma piada: ele dá dois exemplos sérios e então um terceiro absurdo.

Tipo: "Coisas que não funcionam: bandaid usado, astrologia e ... esperar ser abduzido enfiando uma banana na bunda". Se duvida, quando assistir um video dele repare que ele certamente vai fazer essa piada do "sério, sério, inversão de expectativa com nonsense".

O problema com os animes é que o que os japoneses esperam é algo completamente alienígina para quem não vive aquela cultura. No Brasil, por exemplo, perder o prazo para preencher um formulário não é sequer engraçado, é como nós fazemos as coisas por padrão e as autoridades já partem desse pressuposto tabelando uma prorrogação de prazo antes mesmo da coisa ser lançada. No Japão, isso é uma coisa tão impensavel, tão fora da realidade que chega a ser engraçado alguém sugerir isso.

Ou então tente explicar para um japones o que é um flanelinha (basicamente, um cara que decide que da cabeça dele que aquela rua é DELE e que vai foder o seu carro se você não pagar uma "taxa de proteção" pra ele e está tudo certo, todo mundo aceita isso como super normal), e tente convence-lo de que isso não é uma piada. Boa sorte com isso.

Eu tenho uma tese que o que define o limite entre o que é engraçado de tão absurdo esta diretamente ligado com o quão boca-braba um lugar é, o quanto mais cascudo ele exige que seus habitantes sejam. Uma cena que seria bizarra no Japão (digamos, alguém sair na rua constantemente olhando por cima do ombro para evitar que um trombadinha leve sua bolsa), seria totalmente "ué, super normal isso" no Brasil, da mesma coisa que coisas que nós brasileiros achamos exageradamente comicas não são nem rodapé de jornal na Africa ocidental.

Mas porque eu estou falando tudo isso sobre um anime de menininhas fofinhas? Porque K-on é justamente sobre isso: para os japoneses as meninas desse anime são hilarias de tão absurdas. Para nós brasileiros, elas seria apenas brasileiras tão comuns que é até dificil entender onde está a piada aqui.

 E como isso funciona?


Bem, o K-on (que vem de "keion", que é mais ou menos o equivalente japones para o smooth jazz americano) é o pior clube de atividade extracurricular da sua escola. Suas integrantes são todas cabeças-ocas, com a capacidade de atenção de um gato diante de um laser e elas basicamente se reunem apenas para lanchar e bater papo, apenas em situações muito especificas elas fazem coisas como ensaiar ou tocar música... num clube de música.

Tá, e daí? Bem, se você for brasileiro, nada. É absolutamente comum perverter a função de uma organização apenas para ficar batendo papo, ganhando créditos curriculares e lanchando. Isso é até esperado! Mas para os japoneses? Loucura, loucura, loucura, maestro Vini!



Grande parte do "humor" de K-On vem justamente da "brasileirice" das personagens. Elas são irresponsaveis, usam roupas inadequadas e tem um habito de ficar tocando nas pessoas o tempo todo. Os japoneses, saiba você, detestam esse tipo de comportamento e apenas muito recentemente o aperto de mão se tornou algo mais ou menos socialmente aceitavel por lá. As meninas ficam constantemente se abraçando e tocando nos rostos (quando não peitos) umas das outras, e para os japoneses isso é tão bizarro que chega  a ser engraçado.

Para salientar ainda mais esse ponto, depois da segunda metade do anime chega uma integrante nova no clubinho que é uma tipica japonesa, e ela se sente extramamente desconfortavel com toda essa "brasileiragem" onde as outras meninas ficam constantemente dando apelidos, pegando nela e fazendo ela usar roupas ridiculas. Chegaria até configurar bullying, não fosse deixado claro o suficiente que as meninas do clube são idiotas demais para haver alguma maldade no que elas fazem.



O ponto aqui é que, mais uma vez, para nós que estamos acostumados a esse tipo de coisa (bem, eu odeio isso e se pudesse tinha uma ordem de restrição judicial de 50m de toda raça humana, mas digo enquanto sociedade), não tem nada realmente demais nesse tipo de comportamento. O que tem demais a presidente do clube ser irresponsavel demais a ponto de entregar um formulario importante depois do prazo e pedir para uma amiga dar um "jeitinho" da inscrição delas valer assim mesmo?

Aqui, absolutamente nada. Na verdade você vai ser visto como um esquisitão se não esperar que as coisas funcionem desse jeito. No Japão... ARE YOU FUCKING CRAZY MODAFOCKA?!? HILARIOUS LOL LOL LOL.

Esse, basicamente, é o ponto de venda de K-On enquanto comédia e como parece ter ficado claro até aqui, não é uma comédia tão engraçada se você não foi criado com os valores culturais japoneses.

Mas isso quer dizer que o anime é ruim?



Não totalmente. Afinal, estamos falando de um anime da fodenda KYOTO ANIMATION e se tem uma coisa que eles não fazem é anime mal feito. O que significa que a fluidez da animação é espetacular, a composição dos backgrounds tem tantos detalhes que implodiriam o Kurumada e a dublagem é alguma coisa espetacular.

Sério, tem um episódio que a protagonista fica rouca de um ensaio doido que ela tentou e a dubladora dubla ela o episódio todo com uma voz avacalhada, onde dá pra sentir que ela (a dubladora) deve ter parado a cada cinco minutos para explodir de rir  de tanto que ela estava se divertindo fazendo isso. 




Aproveitando para falar das personagens um pouco, não tem nada particularmente inovador ou profundo aqui. Da formação inicial do clube, Yui é a preguiçosa, lerda e meio idiota. Ritsu é enérgica e meio sem noção, tipo da Rainbow Dash. Mio é a menina timida que fica assustada ou envergonhada extremamente fácil. Tsumugi é a garota rica, legal e porém sem a menor noção de como o mundo funciona quando você não é podre de rico.

Como dito, elas têm em comum serem idiotas em variados niveis. Na verdade, apenas dois personagens deste programa parecem ter cérebro funcional: Ui, a irmã mais nova de Yui (uau, a irmã mais nova que é responsavel, hilario se você for japones), e Nodoka, a melhor amiga de Yui.

Tem também Sawako, a professora conselheira do clube de música. Quando você a conhece pela primeira vez, aprende que ela é vista como o auge da feminilidade gentil entre seus alunos e até mesmo seus colegas. Seu passado é, na verdade, uma das pouquíssimas brincadeiras engraçadas que o programa tem a seu favor. Você vê, há muito tempo atrás, ela confessou seu amor a um cara que ela gostava, apenas para ser rejeitada por ser muito tímida e retraída.
Então, o que ela fez? Ela se juntou ao clube de música suave ... como uma musicista de rock de metal punk, rugindo, rosnando e tocando violão com os dentes com a mesma frequência que suas mãos. Naturalmente, ao confessar seu amor mais uma vez, ela foi informada de que estava levando a coisa toda longe demais, e toda a comédia de flashback é deixada assim, com as garotas usando seu passado para pressioná-la a se tornar conselheira do clube. Infelizmente, esse não é o humor que Sawako fornece nesta série depois de tudo dito e feito. Em vez disso, quando ela não está passando seus dias tomando chá no clube de música, ela está assediando as garotas (principalmente Mio) contra sua vontade e submetendo-as a seus fetiches de fantasia! Hilário. É.


Sure, keep telling yourself that...

K-on é baseado em uma tirinha de jornal, então é muito mais uma coleção de esquetes de slice-of-life das meninas vadiando do que uma narrativa progressiva. E pela metade inicial da série não é uma coisa ruim de assistir apenas pela qualidade Kyoto Animationesca que eles colocam nessa produção. Sim, claro, não é assim "minha nossa, é uma Violet Evergarden", mas para o orçamento que a série parece ter, é de um capricho e sinceridade muito além do que se pode esperar.

As meninas são bonitinhas (no sentido cute, não no sentido loli), e as patuscadas delas são satisfatóriamente interessantes a principio. Muitos animes funcionam sem um main plot, apenas confiando em esquetes para seguir (como Sakamoto Desu Ga ou Soredemo Machi Wa Matteiru), porém o principal problema é que as piadas acabam rápido e depois da metade da série vemos apenas uma reciclagem das mesmas piadas de novo e de novo.

E, como já previamente mencionado, sequer são gags engraçadas fora do Japão. Ok, eu sei que estou parecendo meio grumpy com o anime, mas eu realmente achei a primeira metade bastante assitivel dos qualidade da execução mais do que o conteúdo. De verdade, eu não me importo de ter que desligar meu cérebro para gostar de um anime, mas espero ser compensado por isso, seja me fazendo rir, aquecendo meu coração, ou me deixando com algo para lembrar. K-ON, após o seu começo satisfatório, esplendidamente falhou em todas as três maneiras várias vezes ao seu decorrer

Como uma série moe de slice-of-life é frequentemente desprovida de qualquer enredo em curso de importância significativa, ela deve confiar nas circunstâncias do dia-a-dia dos personagens, apresentando-os de maneiras novas e inventivas, ainda que familiares, a fim de manter atenção. Surpreendentemente, K-ON! segue uma história linear, embora frouxamente conectada, mas nada interessante acontece na rotina delas.

Não surpreendentemente, os melhores episódios do anime são os que acontecem alguma coisa realmente, como elas se apresentando no evento da escola, ou o último episódio que elas vão tocar em uma casa de shows de verdade e episódio todo é sobre os preparativos para isso (passar o som, preencher os formularios para pedir como quer a iluminação e efeitos sonoros, etc). Isso acontece com pouca frequencia, entretando.

Falando em música, eu realmente preciso falar sobre isso. Em teoria, o show deveria ser sobre música (afinal o clube que elas se reunem é sobre isso), porém a música em si é sonoramente relegada a um terceiro ou quarto plano aqui. Não só porque as meninas são preguiçosas demais para se dedicar a isso, como a produção do anime corta valores justamente nesses momentos.

Então se você está esperando pelo mesmo tipo de animação durante as sessões de música, como naquele episódio de The Melancholy of Haruhi Suzumiya (que também foi feito pela Kyoto Animation, é uma das melhores cenas de música da história dos animes), você está sem sorte.


 A Melancolia de Haruhi Suzumiya é um desperdício incrível de um conceito genial, mas puta merda que cena de música bem animada


A animação durante esses segmentos é preguiçosa. (e sim, definitivamente eu estou dizendo isso de um anime da Kyoto Animation, pasmén!) Por alguma razão desconhecida, K-On, com raríssimas exceções, se recusa a mostrar que as garotas tocam seus instrumentos até o último episódio. Sempre que as garotas tocam seus instrumentos, elas quase sempre cortam para outra coisa: uma estátua, o chão, do lado de fora, multidões de pessoas, uma mesa, uma foto de uma rocha. Ou, melhor de tudo, as torneiras de água fora da escola, porque, sim, nós estamos REALMENTE querendo ver isso agora. Qualquer coisa EXCETO elas tocando seus instrumentos.

E se você conseguir vê-las "em concerto", é do pescoço para cima ou de uma grande distância. Eles não podem nem tê-las animadas em um ciclo repetitivo de animação, o que é indesculpável para um anime supostamente sobre música! É como assistir Captain Tsubasa e o show cortando para o céu toda vez que alguém dá um chute que desafia as leis da física, ou Dragon Ball Z animando espectadores assustados durante todas as lutas. Somente no último episódio nós conseguimos ver a banda, de perto e pessoal, enquanto eles estão tocando. Não é a pior coisa de todas, mas é definitivamente muito pouco e tarde demais. Esse é o tipo de atitude que o show deveria ter tido com seus personagens desde o começo, ou pelo menos até - e depois - do primeiro show que elas tocaram.

Essas são as "cenas" que passam durante as músicas, sem mentira
Se assistir K-On fosse o equivalente a ir a um show de verdade, então seria um dos shows mais decepcionantes que você iria. Você começaria com uma grande quantidade de antecipação, até perceber que pagou muito dinheiro por um lugar na parte de trás do estádio. E antes que você perceba, acabou. Tudo o que você teria para são as pessoas à sua frente, todas mais altas do que você (e a maioria delas carregando suas namoradas nos ombros). 

A primeira metade do K-On! é realmente ok, mas é no meio do show que os sinais de alerta ficam altos demais para serem ignorados, e sua única esperança é basicamente se entreter assistindo meninas bonitinha fazendo coisas fofas. Me deixe colocar dessa forma: o anime basicamente se vende para otakus de uma forma que faz Haruhi Suzumiya parecer sutil. E isso é muito ruim, porque se os personagens fossem mais detalhados, e os segmentos musicais realmente tivessem animação neles (ou que eles tivessem mais a ver com música de verdade), K-On! poderia ter sido outro vencedor para a Kyoto Animation. 

Infelizmente, as únicas partes que desfrutamos depois da metade inicial do show (que é quando as piadas se esgotam e as situações apenas se repetem) são os pequenos momentos entre toda a loucura desinteressante é o charmoso relacionamento de Yui com sua irmã mais nova. Esses são os raros momentos em que o K-On! consegue levantar sorrisos, se não necessariamente riso. Mas como um todo, isso simplesmente não funciona como um show de música do tipo "construindo uma carreira musical", e como uma comédia ainda menos. 

Pensando bem, sabe, eu realmente acho que a Kyoto Animation fez um pequeno milagre aqui, toda as coisas consideradas. Pensa comigo: o elenco não é particularmente interessante, a música é ultra socada pra debaixo do tapete, pouca coisa interessante acontece, é basicamente sobre "moe girls doing moe things", o humor simplesmente não funciona se você não for japonês e... eu realmente não odiei esse anime tanto assim, sabe?



Eu sei que eu deveria, mas eu não odiei. Recomendo além do sexto episódio? Não, definitivamente não, mas também não é a pior coisa que você verá em sua vida - o que, pela descrição, deveria ser. Ou seja, como dizem os japoneses: "como esperado da KyoAni!"
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