[GAMES] TYRANNY (ou Tiers acima de tudo, Kyros acima de todos)

| quinta-feira, 12 de setembro de 2019


Sabe o que é curioso, quando você pensa sobre isso? Por toda violência que videogames são acostumados a promoverem, e sendo frequentemente destinados a adolescentes na sua fase darquii-trevosa-dumauuu, você esperaria que seria de alguma forma mais comum você jogar com vilões.

Claro, aqui e ali você joga com alguém que incidentalmente é o cara mau da história quando você pensa sobre isso com calma (como Pokémon) ou um personagem caótico neutro que faz o que quer e você não manda em mim, coroa! (como a série GTA). Mas não é disso que eu estou falando. Estou falando de vilão VILÃO mesmo, alguém com uma agenda deliberadamente maligna.

Estou falando de vilão tipo jogar no papel de um nazista, fã do Bolsonaro ou um flanelinha. Esse tipo de cara mau. Então, onde estão estes jogos?

Em 2016 a Obsidian Entertainment decidiu que precisavamos de um jogo desses.


O(a) imperador(a)-deus(a) Kyros está a um passo de dominar todo o mundo conhecido. Falta apenas uma última região cair perante sua bandeira vermelha tremulante, e o(a) senhor(a) de toda malignicidade absoluta terá conquistado 24 territórios e vencido o jogo.

Na última peninsula do continente, a região dos Tiers, os rebeldes lutam estoicamente para manter sua última chama de liberdade. Tão estoicamente que a grande campanha da máquina de guerra bem lubrificada de Kyros parou, e o império do(a) glorioso(a) está tendo dificuldades em concluir esta guerra.

Kyros então se envareta com isso e ordena a um dos seus generais que mande um enviado de sua confiança para a região com um "Edict". Edicts são, basicamente, bombas nucleares de magia que destroem uma região inteira e impedem que a vida se estabeleça ali pelos próximos séculos porvir - o até para sempre. É onde você entra na história, como o enviado do Arconte da Justiça para proclamar o Edict de Kyros: se aquela guerra não for encerrada em uma semana, a magia vai comer e todo mundo ali (tanto os rebeldes quanto as tropas de Kyros, quanto você) vão virar mais farinha do que se o Thanos tivesse uma pedreira da Toei de gemas do infinito. Cabe a você agora acelerar a extirpação do último pilar de liberdade do mundo e assegurar que a glória do império Kyriano ilumine estes desencaminhados, talkey?

Tic-tac. A bomba mágica está armada. Glória a(o) Overlord Kyros!


A primeira coisa que você percebe ao iniciar Tyranny é que esse é um jogo de sérias restrições orçamentárias. Os modelos 3D dos personagens são muito pequenos, e são pequenos por um motivo: quando você olha de perto eles parecem terem sido feitos no final dos anos 90. Os mapas dos jogos são extremamente simples e mesmo em sua simplicidade eles são repetitivos. Apenas o orçamento para fazer uma variedade visual de coisas a se ver não está lá.

Baldur's Gate, um CRPG de 1998...
... e Tyranny, um CRPG de 2016
 Em qualquer coisa que dependa de orçamento na produção de um jogo, Tyranny sai com resultados extremamente limitados. Os gráficos parecem do século passado, o sistema de combate é extremamente simples e repetitivo, e a dublagem parece que foi feita com quem estava passando pelos corredores do estúdio. Não que as vozes sejam ruins, apenas que elas não combinam com os personagens.

Um dos membros do seu grupo, por exemplo, é um tipo de amazona criada em uma facção que acredita que os fortes podem tudo sobre os fracos. E de alguma forma a dublagem dela é totalmente tongue'n cheek espertalhona. Mas oi?

Bem, mas se sabemos o que Tyranny NÃO tem, então o que esse jogo tem?


Ora, esse jogo tem o que um jogo pode ter que não custa muita coisa. Na verdade, não custa nada per se: alguém sentou a bunda na cadeira e escreveu como se sua vida dependesse disso. Tyranni oarece bastante com um RPG de mesa não apenas porque você constrói seu personagem com atributos, skills e talentos - como é algo muito característico de D&D - mas porque ele parece uma campanha de RPG escrita por um mestre bastante dedicado.

O pessoal da Obsidian dedicou muito esforço para escrever uma construção de mundo realmente interessante e complexa. O exército de Kyros, por exemplo, é composto por duas facções com ideologias completamente diferentes, lideradas por generais carismáticos com suas próprias biografias. O mito ao redor do que (ou quem) é Kyros é fenomenalmente bem construído e enquanto ninguém duvida que exista um(a) imperador(a)-deus(a) na capital de Terratus, existe uma aura mística sobre ninguém ter certeza do que essa entidade realmente é. Não se sabe se Kyros é um homem, uma mulher, uma linhagem que usa o mesmo nome a séculos ou mesmo talvez até um clã que seja conhecido até por uma única figura pública. 

Abaixo do Imperador(a)-Deus(a), existem os arcontes: que são humanos que em algum momento da vida desenvolvem habilidades sobrehumanas em algum sentido, algum tipo de habilidade. Aqueles que se submetem a vontade de Kyros se tornam seus intendentes, os que não... não costumam figurar por muito mais tempo nas páginas da história.



O seu personagem, especificamente, é um Fatebinder - o que é uma forma chique de dizer que você é um capitão do Arconte de Justiça, Tunon (que efetivamente é o seu chefe imediato neste jogo). Tudo isso e muito mais escrito com muitos personagens com longas biografias, regiões com sua própria história através dos séculos e tudo que você pode esperar de uma campanha de RPG escrita por um mestre que realmente se importa com o cenário que se passa a história. Sabe o fazendeiro que te deu uma quest de recuperar o medalhão da sua esposa falecida e que ele tem mais background escrito sobre ele do que você tem sobre o seu personagem? Então, Tyranny é um jogo escrito com gosto nesse nível.

É um mundo vasto, complexo, politicamente intrigante sobre o qual você genuinamente quer aprender mais. Eu realmente gosto como a magia parece... mágica. Existem algumas linhas gerais sobre como ela funciona nesse cenário (de modo que ela parece coerente e parece seguir algum tipo de lógica, mesmo que seja uma que você não compreenda claramente), mas sem chegar a ser fria e científica como em Harry Potter, por exemplo.

Mas... isso é executado de uma forma interessante, na prática?

Hmm, então...

Vamos começar do começo: quando você chega na região dos Tiers como arauto de Kyros, sua primeira missão é acabar com a resistencia e tomar a porra toda em nome e glória de Kyros. Este é o Ato I, a partir do Ato II do jogo os generais de Kyros declaram guerra entre si e você é livre para decidir o que fazer dali para frente: seu chefe, o Arconte da Justiça, te ordena a investigar de quem é a culpa e deste ponto você pode fazer o que quiser: se juntar a uma das facções, ou mesmo iniciar o seu próprio lado nessa guerra civil e ficar com a região toda para você.

Esse é o resumo geral do que acontece, mas muito mais importante que isso é COMO acontece e esse é o ponto que eu quero chegar aqui: videogames normalmente são sobre heróis extremamente underpower e sem autoridade alguma salvando o mundo. Por isso quando você é um agente do overlord do mal trabalhando para conquistar do mundo, e não só não é um Zé-Orelha aleatório como tem o poder de dar carteiradas do tipo "Você sabe com quem está falando?" é algo raro e novo em um jogo.

Entretanto, para cada coisa nova e certa que Tyranny faz. ele faz pelo menos (ou mais) no sentido errado.

Enquanto, no papel, você é um agente do império, na prática não é assim que você se sente. O que você sente, realmente, é que você é apenas um aventureiro aleatório em mais um RPG de power fantasy buscando por artefatos de poder. O melhor exemplo disso é que o seu chefe, o Arconte Tunon, frequentemente repete que você é responsabilizado pelo uso do poder que lhe é investido do Império, mas em nenhum momento eu me senti responsável por nada. Seu personagem, como qualquer aventureiro genérico em qualquer RPG, pode fazer o que bem entender e isso não trás consequencia alguma nesse sentido.

Uma sacada genial do jogo são esses hyperlinks, explicando conceitos para o jogador que o personagem já sabe - evitando assim dialogo redundante


O maior culpado é que a narrativa é blatantemente escrita para revolver ao redor das escolhas do jogador e acaba evoluindo para uma jornada de "chosen one". Yeah... não foi exatamente por isso que eu vim aqui, caras.

A impressão é que a Obsidian não sabia como continuar essa ideia de "ser um agente do overlord do mal" e meio que escorregou para o default dos RPGs tradicionais. Não me entenda errado, existem momentos em que o jogo é fiel a sua premissa: em determinados pontos você realmente age como a premissa do jogo, como quando você pode decidir com o que fazer com uma cidade recem capturada: vai deixar seus cidadões fugirem, vai tentar "assimila-la" ao império, ou apenas vai matar todo mundo e queimar tudo para servir de aviso as outras cidades que cogitarem resistir ao seu jugo.

Momentos assim são interessantes e adequados a temática do jogo, mas dificilmente pode-se dizer que esse é o core do jogo. Em determinado ponto você tem que julgar a respeito de um colega Fatebinder que quebrou a lei ao executar soldados de Kyros que estavam estuprando moradores de uma vila conquistada. Você pode aplicar a letra fria da lei e condenar seu colega por traição, ou pode usar seus poderes legais para dar uma interpretação freestyle da vontade de Kyros. Momentos assim são legais, mas novamente não são tão frequentes quanto deveriam ser.

Momentos assim deveriam ser o nucleo do jogo, não apenas uma sidequest de background em uma jornada de poder para adquirir artefatos mágicos como qualquer outro RPG da vida. E ainda sim, quando é feito, ainda sim não é executado da forma certa.

Por exemplo, tem uma quest que você investiga e descobre que uma mulher aproveitou a raid que aconteceu na cidade para matar sua esposa. Quando você confornta ela com as provas, ela responde da seguinte forma:


Uau, não tinha como ser mais brega que isso?
Bem, na verdade, tinha. A SUA resposta consegue ser pior ainda:


A qualidade da escrita é abismal em vários, vários momentos, e mesmo as consequencias das suas ações não fazem sentido. Neste caso, por exemplo, você está passando julgamento em alguém como representante do Arconte da Justiça de Kyros. E ainda sim, você não tem a opção de prender a pessoa, ou realizar uma execução publica para mostrar o que acontece com quem desobedece as leis de Kyros, ou alguma coisa assim. A opção que você tem é, no fim, atacar a pessoa como se ela fosse um mob qualquer do jogo.

Mesmo que a ideia seja passar um feeling de Juíz Dredd, eu posso te garantir que você precisa do tipo certo de dialogo para fazer isso certo.

- Como você se declara?
- Inocente.
- Defesa considerada.

Acredite quando eu digo que poucas coisas me seriam mais satisfatórias do que se sentir o Juíz Dredd da fantasia medieval, mas isso não passa nem perto do caso. Tudo que o jogo faz é desbloquear para você e sua gangue atacarem que nem um bando de loucos como se fosse só outro mob.


Porra, taí um jogo que eu gostaria de jogar.
É uma pena que escolhas e consequencias importem tão pouco, porque mecanicamente a Obsidian teve algumas boas ideias sobre isso. Ao invés do sistema retardado de moralidade de "bom e mau", cada personagem e facção tem três barras em relação a você: favor, wrath e fear.

Conforme você escolhe suas respostas essas barras enchem de acordo, e ela desbloqueiam opções de dialogo ou mesmo habilidades de combate para serem utilizadas.


Falando em coisas boas, vamos falar de Tecpix. Nossa, acho que existem poucas pessoas vivas que tem idade para entender essa piada... enfim, eu quero falar do sistema de magia. Enquanto o combate em si não é nada especial (apenas selecione seu grupo, mande agroar em cima dos inimigos e micromenageie apenas as ações do healer), o sistema de criação de magias é muito inteligente.

Cada magia tem três componentes: o core, o sigil e os accents. A combinação de core e sigil determinam o tipo de magia criada (tipo core fogo com sigil "um alvo a distancia" gera a bola de fogo). Os accents são melhorias que podem ser aplicadas a esta magia.

Existem accents para aumentar o dano, a duração, o alcance, etc. Qual que é a pegadinha aqui: para usar cada magia, você precisa ter um skill de lore minimo (digamos, 50). Adicionar accents aumenta o skill necessário para lançar a magia (aumentar a distancia da magia aumenta +10 skill necessária, tornar magias de fogo causar dano de gelo também e vice-versa aumentam em +35 skill). Isso dá uma combinação enorme de magias que podem ser criadas, e que são constantemente melhoradas conforme você evolui seu lore skill. Você pode usar a mesma magia do começo ao fim do jogo, e ainda sim continuar evoluindo ela e adicionando recursos a ela.


Você pode, por exemplo, pegar a magia core+sigil mais forte que couber no seu skill lore, ou pode pegar a mais basica e enche-la de accents. É um sistema muito interessante e muito bom.

No fim das contas, Tyranny poderia ser um jogo interessante sobre os dilemas morais da guerra, ou apenas a diversão de ser o próximo overlord do mal porque é assim que nós rolamos. Acaba não sendo nenhum dos dois, e acaba sendo uma power fantasy bastante genérica.

É um jogo terrível? Não, mas é um desapontamento pelo que poderia ter sido. Eu realmente gostaria de ver o worldbuilding fantástico que a Obsidian criou em um jogo com dialogos que fizessem eu me importar com os personagens, ou ver o ótimo sistema de magias em um jogo onde o combate fosse funcional. De preferencia os dois ao mesmo tempo. No dia que isso acontecer, aí sim, teremos um baita jogão.


Next Prev
▲Top▲