O que acontece se você tentar recriar Portal com o dobro da ambição e metade do talento? A resposta a essa pergunta é The Turing Test.
Mas vamos começar pelo que é mais fácil falar para seguir então para o que tem mais sobre o que ser dito. Assim sendo, deixa eu falar do gameplay primeiro. Agora, eu tenho que admitir que a Bulkhead Interactive tem bastante coragem para lançar um jogo como esse.
Digo isso porque quando você faz um jogo já sabendo que a descrição que as pessoas farão dele será "é o Portal do homem pobre", você tem que ter muita confiança no seu roteiro para fazer isso. Bem, The Turing Test é o Portal do homem pobre. Você tem que resolver salas de testes usando uma arma com propriedades especiais enquanto uma inteligencia artificial fala com seu personagem.
A diferença aqui sendo que ao invés de uma arma que abre portais, você tem uma arma que puxa e distribui a energia armazenada para resolver puzzles.
Puxando energia de um lugar e colocando em outro você aciona sistemas, plataformas, imãs e etc, o que são os puzzles do jogo. Nesse do GIF acima, por exemplo, você só tem uma esfera de energia para passar por todos elevadores - então você tem que ir trocando ela para ir ativando os elevadores conforme você passa.
Esse é um puzzle muito simples, claro, mas conforme você avança ele vão ficando mais complexos ao ponto que no final do jogo você, entre sistemas ativos e desativados, começa a ver como funcionam os principios básicos da programação (afinal um computador nada mais é do que um sistema que alterna informação entre "ligado e desligado")
Como um pobre com a fiação da casa feita por gambiarras, você tem que gerenciar vários sistemas usando uma quantidade extremamente limitada de energia. |
Mais para frente são adicionados ainda outros tipos de energia além da azul constante. Tem dois tipos de energia que pulsam em ritmos diferentes e uma quarta que só dá um spark de alguns segundos quando você coloca ela (tendo que tirar e colocar ela para ativar de novo). Tudo isso somado e você tem bastante variedade de puzzles durante a duração do jogo, de forma que você sente que o tema foi bem explorado.
Até onde puzzles podem ir, Turing Test é um jogo bem acima do decente.
O problema é a outra metade, a que definitivamente faz TTT não ser Portal.
Turing Test já começa de uma premissa muito, muito estranha: uma equipe de pesquisadores desapareceu na instalação cientifica na Europa.
... não, não essa Europa. ESSA Europa:
Europa, a lua de Jupiter que é levemente menor do que a nossa Lua, que é um dos poucos lugares do sistema solar onde existe água (estima-se que abaixo da sua superficie congelada exista 2x mais água do que nos oceanos da Terra, na verdade). Então uma equipe de pesquisadores desapareceu lá e T.O.M., a inteligencia artificial da missão aciona o plano de emergencia: despertar você, Ava Turing, para descer lá e salvar os peopolosos.
Agora, porque a IA precisa de você? Bem, porque os pesquisadores não apenas "desapareceram" na estação na Europa, eles se barricaram lá e reconfiguraram as salas de modo a serem "testes de Turing", ou seja, puzzles que apenas uma mente humana criativa poderia resolver. Por isso TOM precisa de você para abrir caminho até os pesquisadores.
... e isso já de cara faz tão pouco sentido quanto soa.
Porque o plano de contingencia da missão é "ter uma pessoa de reserva"? Como assim "reconfiguraram as salas para serem puzzles"? De que forma TOM, que é altamente articulado e lógico, tendo uma capacidade de sintaxe e analise melhor que a minha, não conseguiria resolver aqueles puzzles mas eu que passo metade do dia pensando em furries lolis consigo?
Nada disso faz o menor sentido, na verdade faz tão pouco sentido que você imagina que tem algo por trás disso. Talvez Ava seja uma inteligencia artificial e tem uma equipe de pesquisa estudando o quão humana essa inteligencia se comporta sob situações de stresse moral (já chego nessa parte) ou alguma coisa assim. Talvez você não esteja na Europa e sim em um laboratório subterraneo no Texas. Algo assim.
Enfim, enquanto você resolve os puzzles TOM fala como uma lavadeira em chamas e sua personagem responde com a personalidade de uma caixa de papelão molhado. Mas sobre o que eles falam, você pergunta? Bem, aqui é a parte onde Turing Test NÃO é Portal.
Verdade seja dita, TOM aborda alguns temas bastante interessantes. O que é inteligencia, exatamente? O que diferencia um ser consciente de uma máquina com um banco de respostas muito, muito vasto? Existe realmente livre arbitrio quando todas nossas opiniões e crenças são moldadas de alguma forma?
Em 1950, Alan Turing (que por acaso parece muito com o Doutor Estranho) desenvolveu um teste: se um humano pudesse ter uma conversa com um computador sem a pessoa saber que está falando com uma máquina, então esse computador poderia ser considerado inteligente como um humano.
Por muito tempo se acreditou que o "Teste de Turing", como ficou conhecido, era a melhor forma de medir se uma inteligencia artificial é, de fato, uma inteligencia. Hoje em dia esse não é mais o caso. Em 1980 John Searle publicou o "paradoxo da sala chinesa", que mostra porque essa não é a forma correta de medir a inteligencia de uma máquina.
Mas o que é o paradoxo da sala chinesa?
Suponhamos que houvesse no meio da praça no centro da China existisse uma sala fechada. Um chinês então escreve alguma pergunta em um pedaço de papel, coloca para dentro da sala por um orificio e algum tempo depois recebe um papel com a resposta natural e adequada em chinês. Do ponto de vista do chinês, óbvio que existe outro chinês dentro da sala e eles estão tendo uma conversa em chinês.
Só que dentro da sala não existe um chinês e sim um cara que não faz a mais remota ideia de como falar mandarim e muito menos identificar o primeiro simbolo do seu alfabeto (na verdade ele nem sabe se chinês usa um alfabeto). Mas o que ele tem dentro da sala é um livro-guia com todas as respostas que ele deve dar. Se tais ideogramas forem colocados no papel, a resposta certa é tal. Assim ele faz o que o livro diz para ele fazer e devolve a resposta para o lado de fora.
O homem dentro da sala não fala chinês, mas para quem está olhando do lado de fora parece que ele fala. O mesmo se aplica ao teste de Turing: ele mede o quanto uma máquina consegue se passar por um humano, não se a máquina entende o que está sendo dito.
Com um banco de dados grande o suficiente, uma máquina pode ter respostas naturais para manter uma conversa. Se eu digo "oi, como você está?", existe apenas um número limitado de respostas certas a essa frase. A máquina pode saber quais são as respostas certas e ainda sim não ENTENDER uma palavra do que está sendo dito - tal qual o homem na sala chinesa.
Computadores, até o dia de hoje, não "pensam" da forma que nós entendemos a palavra. O que eles fazem é testar todas as possibilidades possiveis até encontrar a resposta certa, e então salvar essa resposta como "correta" para usar dali para frente. Agora, o que é interessante é que enquanto nós podemos não chamar isso de inteligencia, ainda sim é exatamente como a natureza funciona.
Não existe uma "mente" por trás da evolução: apenas a natureza "tenta" todas as combinações possiveis até encontrar uma que funcione. Hoje nós sabemos que gafanhotos são verdes, da mesma cor da grama e por isso eles sobrevivem. Faz sentido e parece que tem um design inteligente por trás disso, não?
Mas porque os gafanhotos não são amarelos, azuis ou rosas? Bem, em algum ponto provavelmente existiram gafanhotos rosas, roxos e lilases, mas esses morreram (tecnicamente foram extintos antes de alcanceram uma população viavel) porque eram a resposta errada a questão da sobrevivencia. É assim que a evolução funciona: tudo é tentado até encontrar uma resposta certa.
Enquanto não é possível provar que existiram gafanhotos magentas em algum momento, existem inumeros registros fósseis de que é assim que a evolução funciona.
As pessoas constumam visualizar a evolução como o macaquinho que digivolve até o homem moderno, mas a verdade é que houveram pelo menos 5 tipos diferentes de "humanos" convivendo na mesma época e apenas um "deu certo", que somos nós hoje. Inclusive o homo neanderthalis tinha o cerebro maior (logo, supostamente mais sofisticado) que o nosso ancestral direto. Provavelmente os neanderthais eram mais inteligentes do que nós, e ainda sim hoje é apenas outro ramo fracassado da evolução.
Então, de certa forma, a forma com que inteligencias artificiais "pensam" é mais natural do que o que nós entendemos por consciencia humana. Então porque entender que é menos válida de alguma forma?
Quando eu disse que The Turing Test era mais ambicioso do que Portal, eu não estava brincando. O jogo aborda estas questões e algumas outras (existe realmente algo como livre arbitrio se cada pensamento que você tem hoje foi condicionado de alguma forma?) e durante sua primeira metade é um exercício de raciocínio realmente fascinante. De verdade.
Só que, infelizmente, a Bulkhead Interactive não teve a menor ideia sobre onde queria chegar com isso. Todo esse dialogo edificiante e interessante vai por terra (ou por Europa, no caso) quando o jogo dedica a sua segunda metade a explicar o que realmente aconteceu na estação cientifica.
Não, você não é uma inteligencia artificial sendo testada - o que faria sentido e o jogo flerta com essa possibilidade - e sim você é realmente uma pessoa resolvendo puzzles em salas que foram "reconfiguradas" para impedir que uma inteligencia artificial passasse. Isso já é estúpido, mas piora.
O que aconteceu foi que a equipe de pesquisa na Europa achou uma forma de vida no oceano congelado da lua e deliberadamente decidiu se expor a ela. Porque eles fariam isso? Ora, porque estudando a forma de vida que eles encontraram descobriram que é um tipo de parasita capaz de reparar o DNA do seu hospedeiro.
Isso quer dizer que o hospedeiro desse parasita se tornam efetivamente Time Lords: enquanto o dano não for grave o suficiente para matar de uma vez só, o usuário pode se regenerar indefinidamente. E T.O.M. não pode permitir que a tripulação leve uma coisa dessas de volta para a Terra.
T.O.M. não teria problema em deixar aquelas pessoas "imortais" vivendo ali, mas como eles estão decidos a voltar para Terra a qualquer custo, ele quer que você o ajude a matar aquela gente e então fique na Europa para sempre - ou até morrer, caso você não tenha sido infectada ainda.
UÉ, MAS QUAL O PROBLEMA EM ALGO QUE PODE CURAR QUALQUER COISA? É ALGO INCRÍVEL!
Não, não é. E nisso T.O.M. explica eu caso razoavelmente bem. Você está pensando no beneficio óbvio visivel, mas não está considerando as consequencias implicitas disso. Se o DNA não pode ser alterado (já que o parasita repara ele), a vida na Terra é impossível. Nenhum óvulo jamais seria fecundado, porque o parasita "consertaria" o DNA dos pais que se divide para formar uma nova vida. Celulas cancerígenas seriam indestrutíveis e imortais. Se as plantas não pudessem ser geneticamente alteradas para serem colheitas mais eficientes, a humanidade já teria morrido de fome a bastante tempo. Alias apenas as plantas que se reproduzem por brotamento poderiam existir.
O resultado mais provavel seria a Terra habitada por uma raça morimbunda de semicadaveres constantemente morrendo de fome, e ainda sim incapazes de morrer e incapaz de gerar nova vida. Isso sem falar na possibilidade de um Hitler imortal, você quer mesmo um Hitler imortal que viva por séculos? Pois é, eu também achei que não.
Enfim, esse é o argumento do T.O.M. e realmente faz muito sentido.
TÁ, MAS PORQUE VOCÊ NÃO PODE APENAS SER DESCONTAMINADO E VOLTAR PARA CASA?
T.O.M. pensou nessa possibilidade também. Não dá certo. Esse organismo é um extremófilo, ele sobreviveu por milhões de anos em um oceano congelado. Não existe nenhuma garantia que os nossos metodos de descontaminação realmente o matem. Mesmo que você não tenha aspirado nenhum deles por causa do traje espacial, não tem como garantir que você não está trazendo isso na sua roupa. NADA que está nessa lua pode voltar para a Terra. NADA.
CERTO, O ARGUMENTO DE TOM PARECE BASTANTE RAZOAVEL. QUAL O CONTRAPONTO FEITO?
"Toda vida é uma vida, você não é um ser vivo de verdade e não tem o direito de decidir isso!"
MAS OI?
Sim, o argumento é esse. T.O.M. argumenta que, enquanto ele não tem nada contra aquelas pessoas, ele não pode permitir que elas voltem para a Terra. A vida de 6 caboclos não vale mais do que um evento de extinção em massa, esse é o ponto dele. O argumento da sua personagem é que isso é injusto apenas porque sim, e que essa não é a forma "certa" de alguém morrer.
Meu deus, parece que eu estou lidando com a tripulação de Interestelar aqui porque nada disso faz o menor sentido! A maior desconexão para mim é o quão incrivelmente impacientes os humanos ficam quando "se tornam imortais".
Puta merda, estamos falando de cientistas que literalmente dedicaram sua vida a pesquisar sobre a Europa. Eles estão dispostos a ficar pelo menos 10 anos em de criostase. Eles deixaram o mundo, fa familia e os amigos para trás por nada senão amor a ciência. Aí eles se tornam imortais e, de repente, ficam "Precisamos voltar à terra agora, não há tempo para pensar ou avaliar as possíveis conseqüências!!!"
Eu entendi que o jogo queria passar isso como à "natureza emocional" dos seres humanos quando eles devem ser lógicos ... mas isso não é ser emocional, isso é apenas ser egoístas e negligentes. E não faz sentido com o que esperaríamos desses tipos de pessoas. Se eles realmente são imortais, eles têm tempo para avaliar o impacto potencial do vírus. Só que eles querem porque querem levar essa merda de volta para a Terra AGORA, e nunca respondem aos argumentos do TOM sobre as possíveis consequências. Eles literalmente não têm nenhuma resposta.
Por causa dessa pataquada a respeito do que realmente aconteceu, as partes mais interessantes da narrativa (a discussão sobre inteligencia e liberdade) são reduzidas a fragmentos de segundo plano que, às vezes, são apresentados em alguns registros de áudio ocultos por desafios opcionais. Também não ajuda que os personagens de The Turing Test não tenham personalidade (talvez além de TOM) e apenas exponham seus pontos de vista opostos repetidamente, sem nunca fazer um bom argumento (novamente, exceto TOM).
A sensação final é que os desenvolvedores morderam mais do que eles conseguiam engolir e parece apenas que eles acabaram de ter uma aula de filosofia 101. Os conceitos lançados são realmente apenas isso: apenas conceitos e apenas lançados. Eles não dizem nada de único ou diferente, apenas fazem referência a idéias famosas e é isso. E nem sequer os explicam particularmente bem.
The Turing Test já impos sobre si mesma a tarefa indigesta de tentar desenvolver um tema filosoficamente complexo, agora quando você faz isso como pano de fundo para os personagens mais burros e sem argumentos desde Prometheus? E vocês acham que isso vai dar certo?
Ah, e a protagonista se chama Ava Turing, resolvendo testes de Turing e isso não é mencionado uma única vez durante o jogo? Faça-me o favor...