E por magia eu quero dizer magia de verdade, mística, incompreensível, elemental. A grande dificuldade de escrever magia é que se você colocar regras sólidas demais, ela se torna ciência e não tem nada de místico nisso. Como Harry Potter, por exemplo, onde para além das descrições de humor negro do primeiro livro todo o resto da "magia" é apenas outro tipo de ciência que passa a impressão que pode ser rotualda, quantificada e reproduzida regularmente. De "mágico", Harry Potter tem muito pouco realmente.
Por outro lado, se você colocar regras de menos... bem, aí qualquer coisa vira qualquer coisa e os personagens apenas tiram magias da bunda conforme a necessidade da história. Isso é pior ainda. Muito pior, na verdade. Eu posso lidar com mágica-ciencia, mas mágica da bunda é demais para mim
Então escrever mágica convincente em um nível interessante é um dos maiores desafios que um escritor pode ter, e eu consigo pensar em poucos exemplos que tiveram sucesso nisso sendo o maior deles - obviamente - Lovecraft. O estúdio Ghibli também faz isso muito bem, mas eu quero me focar no Filipe Luís por agora. A magia que ele escreve em seus livros parece infinitamente ancestral - tão antiga quanto o próprio tempo, senão mais - e é estranha e alienígena, porém enquanto incompreensível parece seguir algum tipo de lógica distorcida e doentia. Não que o leitor possa realmente apontar seu dedo e dizer qual ela é, mas ele tem a sensação que a lógica está lá.
Vai sem dizer que um numero bastante limitado na história da humanidade é H.P. Lovecraft (esse número estava em UM na última vez que eu chequei), mas muitos se beneficiariam em tentar entende-lo. Talvez o que faça a magia tão estranha em Lovecraft é porque tudo na obra dele é estranho e único. Talvez você não possa criar um sistema de magia convincente, talvez você só possa criar um cenário que passe ao leitor a sensação que você precisa passar e a magia seja parte dele. Talvez.
O que eu posso dizer com certeza, no entanto, é que Kore Yamazaki com seu Mahou Tsukai no Yome conseguiu criar uma sensação que evoca uma sensação genuína de magia, mas então seguindo a minha tese, essa sensação de estranheza e antiguidade é algo que está presente na série inteira e a magia é apenas um elemento desse contexto.
Tudo em "A Noiva do Mago Ancestral" parece estranho. A começar pelo nome, que ao mesmo tempo está certo e errado. O nosso amigo cabeça de osso Elias compra uma novinha de 16 anos em um leilão para ser a "noiva" dele, o que soa chocante a principio mas lentamente você compreende que ele não realmente compreende o que essa palavra significa. Ah, ufa. Mas então, de um jeito estranho, você compreende que o uso dela também não está realmente errado, apenas usado de uma forma... estranha.
Ou então sua premissa: Chise é uma adolescente que viveu uma vida traumática. Além de seu pai abandoná-la quando ela era jovem, pode-se entender que sua mãe sofria de doenças mentais e se matou na frente dela. Desde então, ela foi passada por membros da família que não a queriam e, para piorar as coisas, ela pode ver e interagir com seres do outro mundo. Alguns dos quais são amigáveis, mas muitos aparentemente querem perturbá-la, se não comê-la. Felizmente, em algum momento durante o 16º ou 17º ano de vida, depois de ter desistido da possibilidade de felicidade, ela é vendida em um leilão como escrava e se vê aos cuidados de um capiroto meio-fae chamado Elias.
A história mais antiga do mundo: novinha conhece o capiroto, capiroto compra a novinha na liquidação. |
Espera, o que?!
Pois é, MTnY não é um anime como a maioria dos outros pois é "estranho" em vários sentidos. Eu sei que dizer que um anime é estranho pode não parecer grande coisa em um país que tem o anime da Hitler Loli ou do hárem de meninas-submarino, mas não é disso que eu estou falando. Mahou Tsukai não é tão estranho em conceito (ok, TAMBÉM é) tanto quanto é em narrativa ou desenvolvimento de personagens.
Pois é, MTnY não é um anime como a maioria dos outros pois é "estranho" em vários sentidos. Eu sei que dizer que um anime é estranho pode não parecer grande coisa em um país que tem o anime da Hitler Loli ou do hárem de meninas-submarino, mas não é disso que eu estou falando. Mahou Tsukai não é tão estranho em conceito (ok, TAMBÉM é) tanto quanto é em narrativa ou desenvolvimento de personagens.
Me deixe colocar assim: o anime da Hitler loli é um anime bizarro em conceito, mas ainda sim é um anime em narrativa. Isso quer dizer que eu fazia alguma ideia do que esperar dele porque eu conheço as ferramentas com as quais se monta uma escrita - mesmo que seja uma bem estranhona.
Mahou Tsukai não, é um anime estranho na forma com que ele é montado. O ritmo dele é esquisito - as coisas não levam o tempo que "deveriam" levar e o anime parece não se importar com isso, a progressão da relação entre os personagens é estranha e como um todo ele faz um uso muito peculiar do seu tempo.
Eu estou perguntando para... hã... um amigo, é, isso, aham... |
Agora, convenções de regras narrativas foram consolidadas por um motivo e eu realmente não recomendo a nenhum escritor quebrar nenhuma delas até entender exatamente o que você está fazendo e porque está tomando tais escolhas. Kore Yamazaki quebra a maior parte das regras sobre como usar o tempo do leitor em uma obra, porém ele parece saber MUITO BEM o que está fazendo.
Um exemplo muito bom disso é o que a protagonista Chise é. Nos é dito que ela é uma Sleigh Beggy, mas nunca é explicado EXPLICITAMENTE o que isso significa. Bem, isso é um problema muito sério, não? Pegamos, por exemplo, a série Divergente onde não é até muito tarde no primeiro livro que você começa a começar a entender o que diabos ser uma "divergente" significa e porque todo mundo está criando caso com isso desde o começo da história. Ora, como eu vou torcer pela menina sofrendo por ser uma "divergente" se eu não faço a mais remota ideia do que isso significa?
Então, é, não explicar o que um conceito chave é pode ser considerado uma coisa ruim. Porém Mahou Tsukai não explica o que uma Sleigh Beggy é, ele faz muito melhor que isso: te dá algumas ideias do que isso pode significar. De modo geral, você tem uma compreensão geral do que o termo significa embora possa ter dificuldade em colocar em uma expressão técnica. Ou, melhor dizendo, talvez você não possa explicar o que uma Sleigh Beggy é, mas tem um sentimento a respeito do que essa palavra significa.
Ora, não é exatamente isso que boa literatura deve almejar? Ser descritiva o suficiente para o leitor e o autor estarem falando da mesma coisa, mas não demais para que não seja apenas uma transcrição de um filme?
Mahou Tsukai é boa literatura, e Yamazaki sabe muito o que está fazendo. Pelo mesmos motivos a magia na obra dele funciona como magia e os personagens funcionam como personagens. Os episódios de Mahou Tsukai não são destinados a contar uma história de amor ou apresentar um vilão que será enfrentado em um fodelástico duelo de varinhas. Os episódios do anime são sobre ... bem, sobre um anime que não está muito preocupado com rótulos, na verdade. Considerando como os japoneses são obcecados com categorização e classificação das coisas em nichos, isso é realmente impressionante.
Você é família agora, Chise. Depois te mostro o seu cantinho de fazer as necessidades, tá? |
Você poderia dizer que Mahou Tsukai é um slice of life se for realmente importante classificar de alguma maneira, mas isso invocaria expectativas e suposições que o anime não parece nem um pouco interessado em atender - o que, se você ler os reviews sobre o anime, a maior parte vai justamente reclamar disso. Ele meio que vai contar a sua história, e quando ela estiver contada ela estará contada. Nem antes, nem depois.
Então, o melhor que eu posso dizer sobre ele é que um anime sobre uma menina que foi quebrada ao ponto da miséria descobrindo um maravilhoso mundo mágico. Não, não estou falando de um mundo com fadas e magias (embora ela descubra esse também) e sim de um mundo REALMENTE mágico: o do autorrespeito e da autoestima.
Ao mesmo tempo, faz um trabalho maravilhoso em retratar Elias que no começo parece apenas o primo Lich do Doutor Estranho, e sim uma criatura largada sozinha neste mundo, confusa e com um senso de moralidade bastante alienígena. Ele não é bom, nem mau. Ele é apenas o Elias.
Ok, talvez não esse Elias, mas eu não ia perder a chance |
O anime começa com Chise sendo tratada como um objeto, e mais importante que isso, aceitando ser tratada como um objeto porque é o que ela acredita que ela vale. Por isso mesmo é fascinante perceber que o arco de personagem de Elias é se dar conta que ele precisa da Chise, mas o da Chise é que ela não precisa do Elias tanto quanto ela precisa de si mesma. Uma história de amor é sempre válida (especialmente as distorcidas e esquisitas), mas isso fica em segundo plano para o amor que realmente importa em primeiro lugar: aprender a amar a si mesmo. O que é meio que o arco de personagem de Scott Pilgrim, e hey, se você está sendo comparado com Scott Peregrino então você está fazendo coisas muito certas, de acordo com o meu livro. Mesmo que você precise de uma pequena ajuda dos amigos para isso, como já cantou uma certa banda. Ou amigos e um familiar doguinho, because DOGUINHOOOO!!!
Que duas pessoas (ou uma pessoa e seja lá o que o Elias for) tão perdidas quanto Chise e Elias possam encontrar um ao outro é um pequeno milagre, mas a dificuldade para dois seres tão quebrados forjar um vínculo saudável nunca é encoberta ou passado panos quentes. Como é Chise acaba entendendo em determinado ponto:
"As palavras não existem para nos entendermos. Eles existem para falarmos um com o outro. Se batermos cabeça, se não nos entendermos, vamos conversar juntos. Então podemos encontrar um ponto em comum"
O que eu quero dizer é que Mahou Tsukai explora o tema de almas danificadas de formas que poucos animes conseguiram ou mesmo tentaram justamente porque ele não segue formulas pré-estabelecidas. Quando você descreve em voz alta as coisas que acontecem no anime (como Chise ter sido comprada por Elias em um leilão ou Elias não ter nenhum problema em matar uma criança), elas não fazem jus as reações simplificadas que tais rótulos evocam.
Esse é um anime que não trabalha nada bem com rótulos, e com efeito seus momentos mais fracos são quando ele escorrega para os clichés narrativos típicos de anime. Como quase tudo sobre a corte das fadas me fazia revirar os olhos e pensar "nossa, isso é TÃO anime", não em um bom sentido.
Isso é importante porque a estrutura básica do anime é que Chise encontra algum tipo de criatura fantástica tirada do folclore europeu (e é impressionante o quanto de pesquisa bem feita foi usada aqui) e ela tenta ajudar o "monstro do dia" da forma que consegue. Embora isso seja mais bem feito do que não, infelizmente no micro nem todos os arcos o mesmo padrão de qualidade, as vezes escorregando na previsibilidade de "animezices". Felizmente isso não pode ser dito do último arco da temporada, em que Chise está mais interessada em ajudar o "vilão" do que derrotá-lo, condensando tudo que ela cresceu enquanto personagem nos ato.
Se existe um uso melhor da pesquisa sobre o extenso folclore europeu sobre fadas, este ainda permanece para ser visto. |
Como eu espero ter conseguido transmitir até aqui, Mahou Tsukai no Yome não é um anime para todos, e em nenhum momento tenta ser. De fato, para a maioria das pessoas - e sobretudo o publico de anime que é mais novinho e com padrões de exigencia de acordo com a sua experiencia de vida - ser genuínamente estranho é algo que vai afasta-las de assistir Mahou Tsukai.
Para mim, no entanto, o maior problema do anime é justamente que ele não é estranho o suficiente. Como se diz no teatro, "está bom, mas pode ir além". Eu acredito que irá.