Em 1991 o reinado do D&D nos RPGs foi desafiado pela primeira vez na história. A recem-fundada White Wolf publicou um sistema de RPG mecanica, temática e conceitualmente diferente do RPG de fantasia medieval inspirado em Senhor do Anéis: este era "Vampiro: A Máscara".
Inspirado nos romances de Anne Rice, Vampiro era um RPG que se propunha a outra pegada diferente de D&D:sai a aventura épica, entra o horror pessoal. Mas o que é o horror pessoal? Bem, imagine o seguinte: o mundo é um lugar horrível, opressivo e triste, controlado por megacorporações do mal e governos tiranicos. Neste cenário você é um vampiro, uma criatura amaldiçoada a viver para sempre fisicamente incapaz de sentir qualquer prazer que não o de se alimentar de suas vitimas em uma vida eternamente sem prosito maior do que continuar existindo como uma aberração ao ciclo natural das coisas. Você tem a mente de um humano, mas diariamente tenta não ser reduzido a um animal escravo dos seus instintos
Claro que isso deu espetacularmente errado na prática, muito por causa das regras: os vampiros - mesmo um novato - são absurdamente mais poderosos do que os seres humanos de modo que o que você está fazendo é dando para um bando de garotos nerds poderes quase divinos em um mundo que não tem força para impor consequencias pelos seu atos
Verdade que o manual do narrador de Vampiro até diz:
Vampiro se orgulha de ser um espaço maduro para a narrativa; as aventuras de Death Raven, o imortal celta de sobretudo com katanas prateadas que podem transformar seus inimigos em poças de sangue num piscar de olhos (ah, e ele é um vampiro também); mas essa não é a nossa intenção. Se você se diverte com esse tipo de jogo, bom para você, mas nosso objetivo é ir além desses desejos adolescentes.
O conceito central do jogo, por exemplo, não faz nenhum sentido. "A Mascara" é um conjunto de regras pelos quais os vampiros devem viver para ocultar sua existencia da humanidade... por qual motivo mesmo? Para os humanos vencerem os vampiros é necessária uma equipe da SWAT atacar um único vampiro sozinho durante o dia. E ainda sim eu não ponho 100% de fé na polícia.
Ainda sim, sempre achei o conceito bastante interessante.
Felizmente, foi o que os caras da Dontnod acharam também.
Caso você não esteja ligando a produtora ao jogo que os fizeram famosos , tem essa referencia para te ajudar a lembrar |
O ano é 1918, mais conhecido como o ano que Deus disse "AH MULEKE, HOJE TO EU CUA MULÉSTIA!", porque naquele ano ocorreu ao mesmo tempo a Primeira Guerra Mundial e a Gripe Espanhola. Curioso como ninguém hoje dá muita bola para essas coisas, mas se você pensar são eventos terríveis para ocorrerem isoladamente - juntos então, é o apocalipse pintado de verde e amarelo.
Claro que a segunda guerra mundial teve numeros - e cenas - bem mais chocantes, mas não podemos esquecer que a baixa eficiencia das armas, das estratégias de combate. a medicina ser bastante medieval ainda e as baixíssimas condições de higiene da virada do século resultaram em um numero de mutilações e doenças provindas das infecções quase tão grande quanto o de mortos. Dificilmente você voltaria do front de batalha com os dois braços e/ou as duas pernas, e boa sorte com isso em um mundo onde os antibióticos só seriam inventados dali a quinze anos.
"A gente vai lamentar tanto não ter morrido direto hahaha!" |
A gripe espanhola (que é o avô do vírus que hoje nós conhecemos como H1N1 e ainda causa pânico), por sua vez, é a maior pandemia da história da humanidade e 5% da população do planeta inteiro bateu as botas. Isso seria o equivalente hoje a dizer que os Estados Unidos e a Russia juntos inteiros desapareceram em menos de um ano. Adicione a isso que até hoje a gripe é uma doença que não tem cura (sério, o melhor que nós conseguimos fazer a respeito disso é beber agua e esperar pelo melhor), imagine naquela época que lavar as mãos era mal visto. Em 1865 (ou seja, ainda dentro daquela geração de pessoas) o médico hungaro Ignaz Semmelweis propos que lavar as mãos antes dos procedimentos médicos ajudaria a não matar os pacientes, pelo que ele foi ridicularizado por seus colegas ao ponto que teve um colapso nervoso e acabou internado em um manicomio - onde morreu de traumatismo ucraniano alguns anos depois por ser espancado pelos guardas, porque é assim que as coisas eram naquela época. Então você consegue imaginar o nível da coisa, né?
Hoje em dia o pessoal não leva gripe muito a sério, até a hora que você tem que fechar um ginásio para usar como quarentena porque os hospitais lotaram |
Então, é, as coisas estavam bem ferradas em 1918
Nossa história acompanha o médico Jonathan Reed, que miraculosamente sobreviveu a guerra mas não a viagem de volta para casa. Na verdade, ele começa o jogo morto e volta a vida como vampiro, acidentalmente matando sua irmã que o procurava na fome do seu despertar. Uau, não tem como ficar pior que isso.
Felizmente, Jonathan Reid não é um médico qualquer voltando da guerra e sim o maior hematologista da Europa. Graças as suas enormes qualificações técnicas ele consegue abrigo no hospital de Pembroke
Esse ambiente de front de guerra (uma que está sendo perdida) é o Hospital de Pembroke, o último bastião na luta contra a gripe espanhola |
Surpreendentemente, você ser um vampiro não é o foco principal do jogo e sim o aspecto mais importante do Dr. Reid é que ele é um médico em um tempo de lazarentice e doença, ser um vampiro é algo que é adicionado sobre essa base e não o processo contrário. O que se provou uma escolha absurdamente acertada, porque esse é um jogos mais depressivos que eu já joguei na minha vida. Não é nenhum "This War of Mine", mas definitivamente se esforça nesse sentido.
Daqui a pouco eu entro com mais detalhes nas mecanicas do jogo, mas saiba disso: para você poder gastar os pontos de experiencia que você tem e comprar novas skills ou aprimorar as suas, você precisa dormir até a próxima noite (seu personagem sendo um vampiro, obviamente não pode andar durante o dia). Só que quando o dia passa a situação dos habitantes pode ou não piorar, e você tem que dar remédios craftados por você para impedir que a coisa degringole de vez e a situação daquela região vá ladeira abaixo. Agora, pergunte se você tem recursos suficientes para fazer remédios para todo mundo?
Pois é. Você tem que escolher quem tratar, sendo que manter médicos e enfermeiras funcionais costuma ser bastante importante. E fora dos muros do hospital de Pembroke as coisas não estão melhores, na verdade aquilo é um santuário perto de como está o resto da zona quarentenada de Londres. As ruas imundas estão repletas de corpos, ghouls que se refestelam com a abundança de comida largada nas ruas e caçadores de vampiros tentando acabar com os ghouls. Para sua grande infelicidade, nenhum dos dois grupos (tanto os ghouls como os caçadores) gostam muito da sua cara.
Ou seja, Vampyr é um jogo de mundo aberto em que é muito dificil andar pelo mapa e você tem que escolher muito bem as ruas por onde anda já que não é raro uma luta com uma patrulha de um ou dois caçadores se transformar em uma batalha contra um esquadrão inteiro. Então, é, Vampyr é um jogo muito dificil.
Gente, tem que passar uma vassoura nessa casa ae |
Porém, e aqui está o grande truque do jogo, essa dificuldade é intencional e tem um propósito. Para conseguir navegar por Londres e fazer suas quests, você precisa de poder - seja para fugir melhor, seja para lutar melhor. Só que o jogo dá muita pouca experiencia em combate. Tipo realmente pouca, matar um inimigo da 10 xp, as skills endgame custam de 1k a 5k cada
nivel (para maximizar seu ataque de sombras, por exemplo, são quatro niveis que somados precisam de 16k de experiencia). Mesmo fazer quests ajuda um pouco com isso, ainda sim é uma LONGA
estrada.
Então não tem muito o que fazer senão passar horas e horas lentamente grindando, pondo o pé na rua com seu cu de vampiro na mão. Exceto que existe um atalho.
Conforme você conversa com os NPCs, faz quests e aprende mais sobre eles, você vai desbloqueando informações sobre eles e isso aumenta o valor de experiencia que eles dão ao serem "abraçados" por você. Sim, você pode matar qualquer NPC do jogo para ganhar experiencia "fácil" e quanto mais você souber sobre ele e quanto mais importante ele for, mais XP você ganha.
Você pode, por exemplo, beber o sangue de um marginal aleatório que você acabou de conhecer e ganhar 500 de XP. É só um bandidinho, que diferença faz? Mas se você descobrir que ele está nessa vida de crime para sustentar seu filho doente, que alias nem é dele e sim de um caso da sua esposa falecida com seu então melhor amigo mas que ele cria como se fosse com todo amor mesmo assim, você pode ganhar três, quatro vezes mais experiencia do que isso.
A questão é... você faria isso depois de saber todas essas coisas sobre ele? Esse XP grátis não é tão grátis assim... embora seja rápido, essa parte não é mentira. Então a questão é, o quão flexivel sua moral é?
Não se esqueça que esse é um jogo da Dontnod, os criadores de Life is Strange, então se tem algo que eles sabem fazer é escrever bem personagens. Não existe ninguém absolutamente bom ou absolutamente mau, embora todos os NPCs tenham algum tipo de influencia no mundo do jogo.
Um exemplo: a enfermeira Pippa tem um caso secreto com o motorista de ambulancia Milton, o que é altamente problemático. Não apenas porque é contra o regulamento do hospital relacionamentos entre funcionários, mas porque Milton é negro. Se eles forem descobertos eles não vão ser apenas demitidos, como vão ser presos, se não pior (lembre-se que estamos em 1918, relacionamento interracial é crime e a Inglaterra ainda usa enforcamento como punição - o que alias o jogo faz uma boa critica social da époa sem ser panfletário, ter que ouvir que uma enfermeira daria uma boa médica se ela não tivesse nascido mulher dói no osso). Investigando, fazendo quests e ouvindo conversas, você descobre que eles (obviamente) estão pensando em fugir juntos a qualquer momento. Ora, esse é apenas o pior momento possível para Pembroke perder uma enfermeira e sem ela a situação do hospital vai decair muito dado que as que tem até agora já estão sobrecarregadas.
Isso é importante porque se uma região cair para condição geral abaixo de crítico, aquela area deixa de ser segura, ghouls e caçadores começam a andar por ali e sua vida se torna um saco. Então pensar no bem estar da comunidade é mecaniamente interessante para você também.
Isso pode ser resolvido de uma forma bem simples por você, entretanto: se Milton apenas "desaparecer sem explicação", Pippa pode voltar ao trabalho, o hospital não degringola, você embolsa uns 2500 XP, de um ponto de vista mecanico é apenas vitória, certo? Mas a questão é: o que é melhor pra você, é o certo a ser feito?
E, adicionalmente, você sabe quais serão as consequencias de suas ações? Talvez Pippa não apenas se foque no trabalho, talvez ela largue de vez. Talvez ela se suicide. Talvez ela se meta com companhias realmente erradas e em uma cidade repleta de criaturas sobrenaturais, isso pode voltar para acabar mordendo a sua bunda. O ponto é que, assim como na vida real, você não tem como saber quais serão as consequencias das suas ações - o que significa que as suas escolhas não tem apenas efeitos morais em você jogador, mas consequencias práticas e mecanicas no seu mundo de jogo dali para frente.
Seu vampiro, porque você está me hipnotizando para ir para o beco da encoxação? |
Mas as vezes você pode considerar se desvirtuar do caminho dos justos tentando fazer a coisa certa. Por exemplo, quando eu comecei a jogar eu não tinha intenção de abraçar ninguém a menor que o desaparecimento daquela pessoa fosse melhorar a comunidade (existem alguns extremamente tóxicos). Porém em determinado ponto eu estava tendo minha bunda constantemente chutada por um chefe (não esqueça que Vampyr é um jogo muito dificil) e obviamente precisava melhorar minhas skills para aquela luta. E eu não tinha nenhum "indesejavel número 1" a mão para fazer desaparecer.
Claro, eu poderia voltar para as ruas e grindar meu XP para comprar os upgrades que eu queria, mas cada vez que eu morria o jogo dizia através da tela de loading que existia um jeito mais fácil do que aquele que eu estava fazendo. Eu tinha uma necessidade premente e um meio rápido de atingir meus objetivos, então porque eu não estava usando isso mesmo?
Bem, porque é errado, é claro. Sim, certo, é errado... Mas por outro lado, aquela senhora que mora sozinha, está senil e o filho morreu… Ela vai fazer tanta falta assim realmente? Quer dizer, tudo que ela faz da vida é esperar que o filho morto volte para casa (porque ela tem Alzheimer, então não adianta explicar a verdade para ela), tirar ela desse sofrimento por um bem maior (eu realmente vou ajudar aquela comunidade ao derrotar esse chefe) é realmente uma coisa tão errada assim?
O quão errado é depende muito de que lado da mordida você está |
Pois é. É assim que começa. Na primeira vez que vc cede a essa tentação vc ainda se justifica para
si mesmo, de que os seus crimes não são razoáveis, como você está indiretamente fazendo o bem. Depois da primeira vez
fica cada vez mais fácil e seus critérios tendem a serem mais… Flexíveis.
O que é uma metamecanica criada especialmente para reproduzir como um vampiro raciocina. Afinal, o que é um vampiro senão uma pessoa que sobrevive apenas cometendo um ato terrível? Certamente nas primeiras vezes esse ser humano argumenta ou justifica para si mesmo, mas com o passar dos anos - até mesmo dos séculos - você vai apenas se acostumando com a perda sua humanidade.
E esse é o todo o grande ponto que "Vampiro: A Mascara" tentou fazer sobre o horror pessoal de ser um monstro e falhou. Em Vampyr: você realmente sente que está jogando como um vampiro não porque você tem poderes com nomes "of blood" e coisa assim, mas porque você - o jogador - está tendo que raciocinar como um vampiro, fazer escolhas como um vampiro.Você precisa desesperadamente desse poder que vem do sangue dos inocentes para sobreviver (novamente, esse jogo é bem dificil), mas fazer isso tem consequencias. Não tem para onde correr, apenas o horror te aguarda em qualquer caminho que você siga.
Conceitualmente, o jogo da Dontnot é estelar. 10/10. GOTY. É isso que videogames são a respeito, te passar uma experiencia que não tem como reproduzir no cinema ou na literatura: são as suas escolhas, é você que vai ter que se justificar para si mesmo, são as suas consequencias. Não existe caminho certo, porque esse é um mundo sujo, desesperançado e imperfeito.
Na prática, entretanto, esse jogo tem alguns problemas de execução que o impedem de atingir uma avaliação tão alta quanto seu conceito sugeriria. Normalmente eu tento ser leniente com jogos que tentam coisas diferentes, que tentam coisas ousadas para avançar a midia enquanto meio de entretenimento, mas Vampyr tem problemas em coisas fundamentais demais para deixar passar batido.
O que falta nesse jogo é o DLC "Mãe do Chris" para ter o Xarope como item craftavel |
Em primeiro lugar, o combate não é bom. Apenas não é. Faltam quadros de animação, a movimentação é troncha e você não se sente tão no controle do personagem quanto deveria. A sensação que eu tenho me lembra muito The Witchter 2 - especialmente a sensação que a produtora não teve o orçamento e/ou a experiencia necessária para fazer o combate ser tão agradavel quanto ele poderia ser.
Mas tudo bem, o combate ser desconfortavel até pode ser desculpado porque colabora com o clima de que o mundo não é seu playground, mas o próximo ponto não. Veja, a história de Vampyr é muito boa e faz um excelente trabalho em costurar um evento pesado do mundo real com um cenário fantasioso de uma sociedade vampirica. Eu especialmente gosto como a história constrói e integra a sociedade de ricos, pobres, vampiros e ghouls - terminando com uma batalha épica contra uma divindade razoavelmente coerente dentro do cenário proposto.
Isso no papel. Na prática, essa história não é tão bem contada quanto sua estrutura permitiria. O que eu quero dizer com isso? Bem, os dialogos são bem fracos (o protagonista Dr. Reid é especialmente canastrão toda vez que ele abre a boca) e as cenas não possuem o peso que elas deveriam possuir. Tem uma cena, por exemplo, que o Dr. Reid é "convidado" pelo clube Ascalon - a alta corte dos vampiros de Londres. Sua tutora vampirica te avisa o quanto isso é perigoso já que vampiros são criaturas vãs e não-confiaveis, e uma fala errada pode significar a diferença entre a vida e a morte porque é assim que principes vampiros rolam.
Na cena em si... eu não senti nada disso. Eu não senti que o Dr. Reid estava em risco em nenhum momento, que o Clube Ascalon (que supostamente deveria ser quem realmente mandava na Inglaterra por baixo dos panos) tivesse algum real poder ou autoridade, ou mesmo que a missão que eles te dão não fosse algo que eles não poderia ter mandado qualquer lacaio realizar em poucos minutos.
É isso que eu quero dizer: o conceito é muito bom, a execução não é impressionante. Não que eu esperasse algo do nivel de tensão das cenas do Christopher Waltz em Bastardos Inglórios, mas um pouco mais de qualidade na execução faria maravilhas pelo jogo.
Ainda falando da história, a distribuição da narrativa também não é boa. É inaceitavel que um jogo de 20 horas de história tenha que ter um epilogo com um longo dialogo expositivo explicando que diabos aconteceu até ali. Quer dizer, caras, vocês tiveram quase VINTE HORAS e ainda sim tem que um NPC matraquear no final explicando as coisas como se uma página da wikipédia? Desculpe, mas não é bom o suficiente.
Existe um passo muito importante que é transformar o roteiro em um script, e a Dontnod se perdeu feio nesse passo.
Ghoul diva é o melhor ghoul |
Por fim, e talvez menos importante, a versão para PC que está disponível na XBOX Game Pass é um horror de tão bugado. Arceus seja louvado, como esse jogo é quebrado! Por algum motivo ele só rodou em 1920×1080 modo janela pq qualquer coisa
diferente disso a resolução DPI escangalhava toda e o cursor na tela
não corresponde a sua localização no jogo, ficando injogavel. Tela cheia nem fodendo. Além disso
ele veio todo bugado, com coisas bizarras como o controle parando de
responder, queda de framerate e o pacote todo de esquisitices assim acontecendo o tempo todo.
Vampyr tem excelentes ideias, mas uma execução apenas mediana. É um jogo bem legal no que se propõe fazer, mas tinha potencial para ser muito mais. Faltou uma mão de polimento ou duas na entrega do produto final, o que usualmente é sinonimo de falta de dinheiro.