[GAMES] REBEL GALAXY (ou você pode tirar a terceira dimensão de mim)

| domingo, 21 de julho de 2019


Existem algumas feridas nos corações dos nerds que o tempo jamais irá curar. Coisas que se você disser em uma sala repleta de seres da nossa espécie, levantarão um ar generalizado de abatimento e dor ressentida. Estou falando de coisas como o segundo CD de Xenogears jamais ter sido terminado pela Squaresoft, ou o fim absolutamente bosta que a Robin e o Barney tiveram em HIMYM. Coisas assim que fazem qualquer um soltar um "ah, cara, isso realmente foi uma merda".

Nesta categoria existem dois casos bastante especiais, entretanto, dois casos em particular que serão cantados pelos bardos nerdicos por gerações vindouras sobre o que poderia ter sido e jamais será. O primeiro deles é Assassin's Creed IV: Black Flag. Black Flag é o melhor jogo de piratas jamais produzido (não que existam muitos nessa categoria, mas enfim) e que realmente passa a sensação de controlar sua tripulação de cães sarnentos do mar, enxer a cara de rum e quebrar todas as leis da coroa britanica no Caribe. Talvez até ajudar a criar algumas novas apenas pelo prazer de quebra-las.


Infelizmente, Assassin's Creed IV ainda é um Assassin's Creed e toda diversão de ser um simulador naval e administrar sua tripulação de mandriões sarnentos mais frequentemente sim do que não são retiradas para te socar goela abaixo o mesmo gameplay que na época já caminhava para dez anos de idade, uma narrativa escrita em um guardanapo faltando três minutos para fechar o prazo de entregar (como se tornou característico de Assassin's Creed) e NPCs com os quais absolutamente ninguém se importa mesmo que o seu cabelo estivesse em chamas.

Por anos tudo que os gamemaníacos quiseram fosse um jogo assim, apenas sobre ser um pirata no Caribe, cuidar do seu navio, comprar especiarias e revender mais caro - ou saquear de navios derrotados - sem ter um Assassin's Creed te enchendo o saco. E jamais tivemos isso.

Outra grande ferida no coração nerdico que eu quero falar é sobre o dia que Joss Whedon (o criador de Buffy e dos fucking Vingadores) teve a ideia de fazer um faroeste ambientado... NO ESPAÇO!

Firefly, a série concebida por Joss Whedon, tinha tudo: era engraçada, era dramatica, tinha conspirações do governo e canibais espaciais que só eram mencionados, tinha roubos espetaculares e poderes psiquicos. Uma nave carismática que não carregava armas e tinha o Nathan Fillion. O que possivelmente poderia dar errado?


Bem, aparentemente a Fox fez tudo que pode para tornar isso possível. De um horário bizonho mudando frequentemente a tirar os episódios da ordem de exibição, não exibir todos os episódios e não faltando o clássico "os executivos querem mexer nesses personagens porque nossos relatórios de pesquisa dizem que é isso que o publico realmente quer". Eu não sou adamante a respeito da Disney gerenciando as coisas (com exceção da Marvel, que deu certo justamente por manter a sua autonomia porque já estava entregando resultados, a Pixar e a Lucas Films foram só morro abaixo), mas duvido muito que eles consigam fazer um gerenciamento das coisas pior que o da Fox.

Seja como for, Firefly é algo que sempre será lembrado menos pelo que foi e mais pelo que poderia ter sido. Eu poderia continuar essa lista por mais algum tempo (Symbionic Titan, Dollhouse, Sonic e os Guerreiros da Liberdade), mas eu quero focar nesses dois especificamente.

Isso porque em 2015 o ex-funcionario da Blizzard, Erich Schaefer (responsável pelos dois primeiros Diablo e boa parte da arquitetura de mundo de World of Warcraft) pensou: "sabe o que mais? Alguém que faz jogos bem que podia juntar a parte legal de Black Flag com o espirito de Firefly e fazer um jogo disso... não, espera, EU sou alguém que faz jogos!". Dizem as lendas que ele saltou do carro ainda em movimento para ir trabalhar imediatamente no seu projeto.

De qualquer forma, a Double Damage é um estúdio pequeno formado por ex-funcionários da Blizzard North, insatisfeitos com os rumos da empresa depois que a Activision tomou conta (como, por exemplo, lançar apenas UMA IP nova nos últimos VINTE ANOS - Overwatch - sendo o resto apenas reciclagem de nomes já consagrados) e arriscou um dinheiro que eles mal tinham neste simulador de faroeste espacial galático que atende pelo nome de Rebel Galaxy.



De Firefly, Rebel Galaxy herdou a sensação de ser um faroeste espacial e isso é em grande parte devido a sua trilha sonora. Eu não tenho palavras para descrever o quão boa é a trilha sonora desse jogo, apenas que é a coisa mais fácil do mundo se imaginar sentado na janela da Ponte da sua nave, olhando o universo lá fora e mascando feno no canto da boca.

Era para ser uma missão simples de pegar e entregar uma carga. Recolher um container abandonado de um campo de gelo. Simples o suficiente. O poster da missão mencionou que era potencialmente uma armadilha suicida.

Bom. Missões sem chance de retorno sempre pagam melhor. Claro ... ninguém poderia impedir o bom e velho xerife Murphy e sua lei favorita. Sob a forma de uma frota surpresa da milícia.

Eu não estava exatamente do lado bom da Milícia desde aquele incidente de mineração. E eles me pegarem recolhendo contrabando tóxico certamente não pareceu melhorar a opinião deles sobre mim.

Meu último pensamento antes de eu colocar os defletores no talo e acionar os motores a toda em direção a estrela mais próxima, rezando para que o casco aguentassem o bombardeio de dois cruzadores me bombardeando?

"Bem, ferrou ..."

O universo de Rebel Galaxy lembra muito a composição de Firefly, também. É uma galáxia sem muitas leis, onde piratas, canibais degenerados e um governo tão corrupto e perigoso quanto os dois anteriores disputam por espaço e poder. No meio dessa confusão sua lealdade está com quem estiver pagando mais.

Em termos mecânicos, existem três ou quatro barras de relacionamento com facções. Estar no vermelho significa que eles sempre te atacarão ao avistar, o cinza você é ignorado e no azul você pode negociar com eles - embora estar vermelho com uma facção não impeça que você pegue quests para ela.

Espalhadas pela galaxia existem estações espaciais, que são os portos onde você repara sua nave, pega quests e compra equipamento e mercadorias. Alguns são controlados pela milícia, outros por piratas. Isso quer dizer que você efetivamente pode ser um pirata e atacar estações do governo para saquear os destroços, ou pode ser o ultimo bastião de justiça em uma galáxia sem lei.

As missões não possuem grande variedade, no entanto. Basicamente são de limpar area X da presença de uma facção (as vezes seus contratantes te ajudam nisso, gerando em batalhas espaciais enormes, as vezes é só você), escoltar determinada pessoa, matar alguém para conseguir uma recompensa ou proteger determinada base por X tempo. As missões não são ruins (exceto as de escolta, pq a IA do jogo é pavorosamente ruim pilotando), mas realmente não tem muita variedade.


Você realmente me convenceu a te contratar como meu wingman, Steve. Tenho que dizer isso!

Isso é compensado pelo quão interessante o combate é, e é aqui que a comparação com Black Flag entra. Isso porque sua nave na verdade se comporta como um navio: você não pode ir para cima e para baixo, apenas para virar os lados como se o universo fosse 2D. Enquanto isso não pode fazer tanto sentido logicamente, faz maravilhas pelo gameplay!

Como em Black Flag, no combate você pode controlar o canhão de proa ou os canhões laterais - o que na prática significa que você luta como se estivesse controlando um navio mesmo. Quando você quer acabar com um inimigo rápido, por exemplo, o ideal é você manobrar a sua nave e virar a lateral para ele e disparar com toda artilharia - já que os canhões laterais são mais fortes que os de proa.


Tal como navios, a melhor forma de causar dano em naves grandes é encostar do lado delas e disparar todos seus canhões - e torcer para que o seu escudo aguenta mais que dele :)

O interessante é que Rebel Galaxy na verdade melhora o combate de navios de Black Flag, que já era muito bom, devido ao uso dos escudos. Todas as naves tem 4 escudos separados (frente, atrás, esquerda e direita), então existe um elemento de estratégia aqui de manobrar sua nave ao redor dos inimigos para atacar sempre o mesmo escudo - já que os escudos se regeneram lentamente, ficar atacando diferentes lados da nave inimigo tem resultado menos eficientes. Claro que o mesmo vale para os seus escudos, então quando se está lutando contra um dreadnaught lado a lado, vale a pena manobrar para não tomar todo dano no mesmo lado enquanto VOCÊ tenta acertar o mesmo lado dele.

Existe ainda outro elemento que é exclusivo desse jogo, e que melhora muito também o combate naval: conforme você vai upgradeando sua nave, você pode instalar novas torretas e lasers nela - na verdade, aumentar os slots de armas é um dos grandes atrativos de comprar naves novas. O que isso tem de legal é que você obviamente não vai controlar 25 lasers e 14 misseis ao mesmo tempo, então você pode programar as armas para certo nível de inteligencia artificial. Não é uma configuração muito complexa, basicamente você pode escolher se aquela arma vai atacar qualquer coisa, apenas caças pequenos ou naves grandes, mas é visualmente muito gratificante jogar sua nave no meio de um enxame de navezinhas menores e ver os seus lasers e misseis fazerem o trabalho - ESPECIALMENTE porque você já foi uma dessas navezinhas pequenas.



Como eu disse, Eric Schaefer foi um dos principais designers de Diablo, então o que ele faz de melhor na vida é justamente transformar essa corrida de rato de jogar para ganhar equipamento melhor e com o equipamento melhor lutar por equipamento melhor ainda em uma experiência divertida. A sensação de poder conforme sua nave aumenta de tamanho e numero de slot de armas é algo que é uma recompensa em si mesma.

Por exemplo, em uma nave com quatro slots de torre, você pode colocar 3 canhões de pulso (que são fortes mas tem curto alcance) e um canhão flak que pode atacar caças menores, mas é inútil contra naves grandes. Existem lasers de partículas que causam muito dano em naves desprotegidas, mas são fracos para derrubar escudos, ou tem mísseis “Enxame” que disparam automaticamente contra navezinhas irritantes, ou mísseis “sanguessugas” que aleijam o motor e os escudos da vítima. 

Existe ainda um buffet de subsistemas cada vez mais caros que melhoram a sua nave, aumentando a velocidade de mira, manobrabilidade, tempos de recarga dos canhões e escudos, e assim por diante. O meu favorito é o que mostra na tela quais naves tem carga ou recompensa sobre elas, sem que você precise pausar o jogo scanear uma por uma. Novamente, não é uma variedade TÃO infinita assim, mas o suficiente para te fazer querer jogar só mais uma missão para melhorar sua nave. Um exemplo bem divertido é o "Smuggler's hold", que permite que 4 unidades de carga sejam mantidas em um compartimento que não pode ser scanneado - o que ajuda muito a evitar problemas com a milicia, que adora dar um "então como é que a gente vai resolver isso, heim?" quando detecta cargas ilegais na sua nave.

Olha o Data Cube, freguesia, tá na promoção! Pirata sem banho não paga, mas também não leva!

Sim, cargas porque a economia desenvolve um fator bastante importante na experiência do jogo. Isso porque as diversas estações em vários sistemas vendem e compram produtos com diferentes preços. Esses preços são orientados de acordo com o status da estação. Então uma estação que esteja com o status "faminta" paga mais por comida, outra com o status "tech boom" vende produtos de tecnologia por preços super camaradas. O segredo então é ser um mercador espacial, levando produtos de um lado a outro, comprando barato e vendendo caro. Felizmente os menus são amigaveis o suficiente para você conseguir saber para onde ir e o que comprar, e gerenciar o seu estoque não é realmente um pesadelo - algo que muitos jogos falham em fazer.

Alguns produtos também são considerados ilegais em determinados lugares e é aí que as "batidas" da milicia podem te causar problemas. A sua jornada integalactica de mercador espacial não será simples, entretanto, porque sempre tem alguma coisa acontecendo na galaxia entre uma estação e outra - mesmo quando você não está fazendo quests. Existem emboscadas, distress beacons, campos de asteróides e mercadores avulsos, sempre tem alguma coisa para fazer - ou pelo menos para fugir.



Se você reparar, vai ver que eu só falei da sua nave e do combate até aqui, e existe um motivo para isso: sua nave e o combate é tudo que existem no jogo. A história e os personagens beiram o não-existente, ao ponto que ao completar a última missão da "campanha" sequer uma tela de créditos rola. O jogo apenas continua sem as quests da campanha principal e isso é tudo.

Isso é um problema? Bem, sim, mas menor do que provavelmente seria em qualquer outro jogo já que Rebel Galaxy tem mais em comum com os jogos online de farmar equipamento pelo equipamento do que pelo metaplot em si. Existem alguns jogos onde a mecânica é uma experiência zen em si mesma, jogos como Euro Truck Simulator onde você pode apenas desligar o cérebro e fazer missões mundanas de entrega, ou Stardew Valley onde seu objetivo é aquilo que você tiver com vontade de fazer. Nesse sentido, Rebel Galaxy tem mais em comum com esses jogos onde a essencia do jogo é fazer uma missão ou duas, e entregar mercadorias de uma estação para outra.



Pode-se especular se uma narrativa estelar faria de Rebel Galaxy um Battlestar Galaxtica da vida, mas esse apenas não é o jogo que Rebel Galaxy é. O que Rebel Galaxy "é" é um jogo bastabte zen, sobre fazer as suas coisas no seu ritmo, e explodir alguns piratas espaciais no processo com seu dreadnaught que você suou tanto para adquirir.

Como diz a música, you can't take the sky from me. Mesmo que seja um 2D.
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