[GAMES] THE MESSENGER (ou dois pelo preço de um)

| segunda-feira, 1 de julho de 2019
 
A coisa a respeito da nostalgia que tanta gente parece não entender (e muitas delas pessoas envolvidas em criar produtos baseados em nostalgia) é que o objeto em si é o que menos importa realmente. Nostalgia é sobre um contexto de como as coisas eram naquele tempo, quem nos eramos naquele tempo, o que aquilo significou e etc.

Pegue Caça-Fantasmas, por exemplo. Qualquer criança dos anos 80 é louca por esse filme, mas se você mostrar para alguém que que nunca viu em seu contexto tudo que você vai conseguir é um "ok, é legalzinho". Porque, de fato, fora do seu contexto Caça-Fantasmas é apenas legalzinho.

Entender isso é fundamental para entender "The Messenger", que inicialmente é uma grande homenagem a Ninja Gaiden. Para sua época, Ninja Gaiden foi algo de tirar o folego: foi o primeiro jogo a fazer uso pesado de cutscenes para contar uma história (nada mais complexo do que um filme barato de ninjas da época, mas então a outra opção nos games "resgate a princesa), tinha controles surpreendentemente responsivos para sua época e um sistema de escalar/grudar nas paredes que revolucionava o gameplay de diversas formas.


Em 1987, Ninja Gaiden foi uma das coisas mais incriveis que poderia se fazer em um console de 8 bits. Em. Em 2018, isso não é tão incrível assim. Imagine por um minuto que Ninja Gaiden nunca foi lançado em 1987 e o exato mesmo jogo fosse lançado em 2018 sem ser Ninja Gaiden. Ora, apenas não seria bom o suficiente.

Os controles são travados demais para um jogo que exige tanta dificuldade. A história não é algo melhor do que você veria em um "cine kung-fu" da Band e se você vai contar uma história dessas se levando a sério, você está pedindo para ser motivo de piada e por fim, mas não menos importante, a dificuldade perde completamente a linha e atravessa muito parar lá do "apenas dificil" para intencionalmente injusto - porque naquela época os jogos duravam meia hora no máximo e era preciso alongar esse prazo já que jogos de videogames eram muito caros (MUITO mais caros do que hoje, mas MUITO MESMO).

Nessa cena temos um leopardo e uma águia te atacando ao mesmo tempo, e caso você consiga fazer o pulo mesmo assim ainda temos e um mercenário com uma cimitarra para te derrubar no buraco.
Para os padrões de hoje, Ninja Gaiden simplesmente não é bom.

A este ponto você pode estar pensando que eu estou sendo um cuzão por julgar um jogo de 1987 pelos padrões de qualidade modernos, e se não está deveria porque eu estou sendo mesmo. Quando eu analiso os jogos antigos da Ação Games no meu outro blog, isso é algo que eu nunca faço porque é idiota. Um jogo tem que ser julgado pelo ele tenta ser comparando com seus pares da época, não com produtos que foram polidos mais de vinte, trinta anos dentro de um genero. Só que se você é o cara que vai fazer um jogo em 2018 (e, logo, ser julgado como um jogo de 2018 e não um de 1987) inspirado nesse jogo, você é obrigado a ser este cuzão que olha as coisas de forma objetiva.

Em outras palavras, você tem que fazer um jogo baseado em como as pessoas afetuosamente lembram que Ninja Gaiden era (um jogo que só existe na imaginação delas), não como ele era de fato. Muitos jogos "retro" falham justamente nisso, em não saber o que cortar do jogo porque algumas mecanicas, escolhas narrativas ou de design se tornaram dolorosamente ultrapassadas e inaceitaveis.


Embora o jogo seja grandemente inspirado em Ninja Gaiden, as batalhas com os chefes são referencias as batalhas com chefes da série Mega Man

Felizmente este não é o caso dos camaradas canadenses da Sabotage Studio, que maestraram a arte de fazer um jogo que definitivamente parece Ninja Gaiden sem ser um datado jogo de 1987 no processo. Mas como eles fazem isso?

Pensando de forma prática, não é tão diferente do processo que fez Doom de 2016 ser um jogo tão bom. O que você faz é pegar a mecanica da época, disseca-la para entender o que ela pretendia fazer e então refaze-la usando ferramentas modernas.

Por exemplo, Ninja Gaiden é um jogo terrivelmente dificil. Mas o que um "jogo dificil" significava na época? Dar poucas vidas, jogar um bilhão de inimigos em cima do jogador e exigir precisão de pixels em cada tela que é o único lugar que seu personagem poderia sobreviver.

Morreu, COMEÇA DO COMEÇO E TE FODE AE, MAGAL!

Você pode perguntar como você pode acertar o pulo se para sobreviver você tem que cair e levar o hit de um bicho que spawna aleatoriamente para ser jogado para frente. Ao que o jogo apenas te responde "TEU CU" e era isso.

Bem, certo. Mas então o que sigifica um jogo ser dificil em 2018? Você pode manter a coisa de exigir precisão milimétrica dos pulos, desde que dê alguma margem de manobra ao jogador para isso. Dê ferramentas para ele trabalhar. "The Messenger" implementa algumas ferramentas de gameplay, sendo
a mais iconica delas a que te acompanha desde o começo: a light foot techique. Basicamente, ela te da um pulo duplo desde que você acerte alguma coisa no ar (seja um inimigo, seja um item do cenário colocado para isso). 



Enquanto você continuar acertando coisas, você pode continuar saltando infinitamente. Por um lado, isso dá uma ferramenta de controle a mais ao jogador e permite que conserte erros que de outra forma te custariam uma vida. Por outro lado, o jogo te dá essa ferramenta e a partir disso sabe que tem liberdade para exigir ainda mais de você, o que nos dá sessões de fase que seriam impossiveis mesmo com a falta de vergonha em deixar o jogo dificil que o original tinha, como essa:







O jogo pode ter design muito mais dificeis hoje porque ele te dá as ferramentas para lidar com isso, e isso é ok. Não me entenda errado: The Messenger é um dos jogos mais dificeis que eu já joguei na minha vida, nível Cuphead de dificil, mas é um dificil e não injusto - e isso faz toda diferença do mundo.

Ah, e a coisa de numero de vidas também, ninguém mais faz isso hoje. Ter que repetir uma sessão já é punição o suficiente, ter que começar o jogo do começo é apenas para fazer desistir e gastar meu tempo com outra coisa. Por mais dificil que The Messenger seja, eu não acho que você passe mais de 5 minutos sem um checkpoint (se chegar a isso tudo), porque justamente a diversão está em superar o desafio, não refazer a coisa pela milhonésima vez porque você morreu vinte telas para frente. Qualé gente, sério.

Vê o que eles fizeram aqui? Dissecar a mecanica original, entender qual o proposito dela e então refaze-la usando ferramentas modernas. Enxague e repita.


Esse tratamento atencioso foi feito a todos os elementos que compõe o jogo. A história de Ninja Gaiden é impressionante mais pelo fato de haver uma história em primeiro lugar do que pela sua qualidade de escrita que, como eu disse, não é nada estelar. Como The Messenger lida com isso sem descaracterizar Ninja Gaiden mas ao mesmo tempo sem parecer datado e ridiculo?

Ora, muito simples: abraçando inteiramente o quão datado e ridiculo isso é. É aqui que entra o humor no jogo, e essa é uma das poucas vezes que eu lembro do humor não apenas ter funcionado em um jogo (videogames não trabalham muito bem com essa variavel justamente pela questão de timing que não está sob controle do criador) mas como ter uma função estrutural a experiencia.



As piadinhas de quebra de quarta parede não são apenas quebra de quarta parede porque é engraçadalho e todo mundo está fazendo isso hoje, e sim porque são os criadores do jogo te dizendo "olha, a gente sabe o quão ridiculo isso tudo é, então vamos apenas nos divertir, mmmkay?".

E assim como na WWE ou no cinema, o publico consegue sentir quando os criadores de conteúdo estão sendo sinceros. Sure, dudes, esta é uma aventura sobre ninjas enfrentando demonios e viagens no tempo e vocês estão sendo terrivelmente sinceros a respeito disso, é claro que vocês podem contar com a minha melhor boa vontade para me divertir com isso!

Após completar a primeira parte da sua jornada, você retorna a vila onde começou e seu mestre lhe pergunta o que você achou. A resposta é bastante sincera.
Um dos melhores exemplos disso é quando você visita a fase das catacumbas, o lojista te diz "sim, eu sei, catacumbas com esqueletos e morcegos, é. Todo mundo faz isso, eu sei, mas aguente que vai melhorar mais para frente!". Pensando melhor, a mais iconica dessas piadas é justamente logo no começo, quando o lojista misterioso lhe ensina a tecnica de grudar nas paredes.

"Essa tecnica foi inventada por João Gaiden", ele lhe diz.
"Quem?", seu personagem pergunta.
"Não é ninguém importante para a história, mas o pessoal ia ficar chateado com a gente se não déssemos o crédito", o lojista completa.

The Messenger é um jogo de plataforma terrivelmente dificil, mas com ótimos controles, excelente música, chefes criativos (tanto na motivação de cada combate quanto no moveset dos chefes) e personagens carismáticos em sua honestidade de estarem em uma missão que ao mesmo tempo que não é lá muito séria, também é épica sobre a jornada improvavel de um mensageiro tentado salvar o mundo dos demonios.



Ou pelo menos metade dele é.

Isso porque em uma das decisões de design mais corajosas que eu lembro de ter visto em um jogo, na metade do jogo seus criadores decidem simplesmente MUDAR O GENERO DO JOGO. The Messenger apenas para de ser um jogo linear de fases e passa a ser um metroidvania onde você pode explorar qualquer lugar do mapa para conseguir power ups que te permitirão avançar no jogo. O jogo passa de seguir em linha reta para a esquerda para um "onde eu vou agora?!"



Mesmo no cinema, por exemplo, o unico filme que eu consigo lembrar que mudou de genero no meio do caminho e deu certo é "Um Drink no Inferno", que é um filme de investigação policial buddy cops até a metade e la pelo meio se torna um filme trash de zumbis. E só dá certo porque é um filme do Tarantino com o Robert Rodriguez, meio que não tem como dar errado de jeito nenhum.

Acho até que daria um bom topico para outro post porque as audiencias ocidentais tem essa paixão desmedida por colocar as coisas em rotulos (filmes indianos, por exemplo, sambam livremente entre musical, romance, comédia e ação sem que o publico se "sinta enganado pelo que pagou para ver"), mas por hoje o ponto é que isso não é muito comum e menos ainda em jogos. Você pode argumentar que Spore mais ou menos faz isso, mas Spore é uma caixa de gatos que não dá certo ser cutucada levianamente e um dia eu tirarei o tempo necessário para explicar o que Spore quis ser e o que acabou sendo.

De qualquer maneira, metade do jogo e The Messenger era um jogo de plataforma e virou um Metroidvania. A pergunta que realmente importa é: funciona?



E a resposta que realmente importa é: depende de para quem você pergunta. Eis o que eu penso a respeito: a primeira metade do jogo, inspirada em Ninja Gaiden, é o melhor jogo de plataforma desse nicho especifico que se pode fazer. Se dá para fazer melhor que isso, eu não vejo como dá para fazer MUITO melhor que isso.

A segunda parte é um Metroidvania muito bom, mas nem de perto eu diria que é o melhor do seu genero. É muito bom, enfase nisso, mas definitivamente não é topo de piramide na sua categoria. Isso não quer dizer que a Sabotage não tenha guardado alguns truques na manga muito bem elaborados para esse jogo, é claro.

Em primeiro lugar, como esse metroidvania funciona? Bem, alguns mapas novos são adicionados mas são poucos e em sua maior parte você caminha pelas fases que antes eram lineares indo e voltando agora para coletar itens e fazer quests.

ESPERA, ISSO PARECE UMA IDEIA MUITO RUIM. QUER DIZER, ESSE JOGO É LAZARENTAMENTE DIFICIL, ESPERAR QUE VOCÊ FIQUE ZANZANDO PRA LÁ E PRA CA NESSAS FASES QUE JÁ FORAM UM PARTO PASSAR UMA VEZ PARECE APENAS UMA RECEITA DE DOR!

E deveria ser mesmo. Quando eu entendi no que o jogo havia se tornado, essa foi minha primeira motivação também.

COMO 'TAMBÉM"? VOCÊ SOU EU, SEU RETARDADO!

Ah, sim, tem isso. Mas enfim, o ponto é que, felizmente, a Sabotage teve a mesma preocupação que eu e as coisas mudam nessa segunda fase do jogo. A partir desse ponto, por razões narrativas, são inclusos "portais do tempo" e agora seu personagem alterna entre o passado e futuro a um nível de level design nas fases. Se existe um lugar inacessível no passado, se você atravessar para o futuro pode ter uma saída por ali e vice-versa.



Isso quer dizer que a Sabotage fez uma coisa inacreditavelmente dificil aqui: eles desenharam não apenas um jogo de plataforma para extrair o melhor que o genero pode oferecer, mas fizeram de forma a colocar outra camada por cima dele de modo que quando você joga com as viagens no tempo do modo metroivania, os mesmos level design se torna uma coisa completamente diferente!

Em todos estes anos nesta industria vital, nem mesmo nos jogos da fucking Nintendo, eu vi tanta atenção e esforço ser colocado no level design de um jogo e eu não tenho elogios o suficiente a respeito disso. 

E como a Sabotage estava num dia daqueles, essa ideia incrivelmente dificil de executar é pontuada por alguns toques brilhantes: quando você está no "passado", o jogo é todo em 8 bits tal como quando você começou jogando ele e toda a coisa de ser uma homenagem ao Ninja Gaiden do Nintendinho. Quando você vai para o "futuro", os gráficos agora parecem saídos diretamente do Super Nintendo.

Porém não apenas os gráficos, como a trilha sonora do jogo muda e num temos uma música que lembra bastante o chip de som do NES (embora se você for ver tem mais recursos do que o NES era capaz de executar, apenas parece retro mais ou menos como acontece em Undertale), no futuro temos uma rendição da mesma música que parece executada agora por um Super Nintendo.


Para propositos narrativos, a viagem no tempo também é profundamente pertinente as suas quests. Talvez você precise da ajuda de um NPC que já morreu, então você tem que voltar no tempo e salvar ele para ele estar vivo e te ajudar no futuro, talvez você precise de um item que vai levar 500 anos para ficar pronto - nada que dar uma passada no portal mais próximo não resolva.

E, como se não fosse o suficiente, a viagem no tempo ainda amarra todas as pontas do jogo. Quem são os mensageiros, quem são os shopkeepers encapuzados, o que os demonios querem e porque você fica parando para conversar com NPCs e fazer sidequests quando supostamente tem uma missão de salvar o mundo que não pode esperar um momento sequer (sim, o jogo faz piada com essa coisa tão comum nos videogames).



Como jogo de plataforma, The Messenger é um sólido 10/10 e eu não vejo como um jogo pode ser melhor que isso. Ele acerta no humor, na mecanica, na trilha sonora, nas batalhas com os chefes, no level design e por aí vai e vai.

Como metroidvania, eu diria um 9/10. Os itens que você coleciona não modificam tanto suas habilidades a ponto de ter aquela sensação gratificante de ter novos poderes para explorar lugares antes inacessíveis (meio que você já começa a parte metroidvania com todas as habilidades, na verdade), coisas que Super Metroid e Castlevania (daí o nome do genero) fazem tão bem. Ainda sim é bastante bom e se pensar só na reutilização que eles fizeram das fases iniciais com a coisa de viagem no tempo, o quanto eles se esforçam para adicionar mecanicas únicas a cada nova area de modo que o jogo pareça sempre novo e interessante fica impressionante.

E quando você considera que esse é o PRIMEIRO jogo da Sabotage, é até mesmo assustador o quão bom esse jogo é.

É um detalhe pequeno, mas eu gosto de como as plataformas na fase da caixa de música se movem ao ritmo da batida da música. O jogo é repleto de pequenos detalhes assim. Most bodalicious game, dude!

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