[ANIMES] PLANET WITH (ou um garoto do colegial, uma princesa maid e um gato gigante salvando o universo)

| sábado, 13 de julho de 2019


Soya Kuroi, o protagonista de Planet With, tem um problema pouco comum para um protagonista de anime: vencer é o pior cenário possível que pode lhe acontecer. Se ele for derrotado pela facção seladora, então ele viverá para sempre em um mundo de sonhos onde todos os seus desejos serão realizados.

Se ele morrer lutando, segundo as crenças do seu povo ele vai se reencontrar com todas as pessoas que ele já se importou na vida: sua família, seus amigos, seus colegas de escola, até seu cachorro. Todos esses estão mortos, pois Soya é o único sobrevivente do seu planeta.

Agora, se ele vencer... bem, nada particularmente incrível acontece. Apenas as coisas continuam como estão. Ok, certo, ele "fez a coisa certa", ele "se vingou" do Dragão, mas... e aí? No que isso vai mudar qualquer coisa? Todo seu povo continuará morto, seu planeta natal continuará uma rocha estéril, ele vai continuar sendo um alienígina sozinho na Terra.

Alias, sozinho não. Ele tem a companhia de uma princesa maid e de um gato antromorfico psíquico. É, Planet With é um anime muito estranho de descrever...


 Generalíssimo, o cão espacial...
... versus Sensei, o gato espacial. Com seus respectivos mechas temáticos ao fundo;

Se você me perguntar como me sinto sobre Planet With, a única resposta possível que posso te dar é "é complicado". Esse anime faz algumas coisas incrívelmente boas, mas ao mesmo tempo faz outras terrívelmente ruins. Então, assim sendo, vamos começar do começo: o que é Planet With?

Hmm, a melhor descrição que eu posso dar desse anime é: imagine a estrutura básica de Evangelion, com o desenvolvimento (e estilo visual) de Gurren Lagan. Confuso? Vamos lá então: existe uma cidade bucólica japonesa onde aliens muito bizarros spawnam e tentam se dirigir a um ponto especifico. Os heróis então pilotam mechas para impedir que os aliens cheguem onde querem chegar, senão o mundo acaba.

Como eu disse, é a estrutura básica de Evangelion aí.

O herói da história, Soya Kuroi, é o clássico adolescente de 14 anos sem memória que está de boa na lagoa vivendo sua vida típica de colegial quando os aliens atacam. Imediatamente uma elite pilotando mechas é despachado para resolver defender a cidade, mas eles não parecem que vão dar conta. Bem, se você já viu algum anime de mecha na vida sabe como isso termina, né?

Por algum motivo Soya acaba pilotando um mecha especial/protótipo/proibido e salva o dia, certo? Hmm, mais ou menos. De fato, Soya acaba pilotando um mecha especial (que é o gato psiquico gigante depois de engoli-lo), como todo anime de mecha, mas ele o usa para... lutar contra os humanos que estão defendendo a Terra!

Espera, o que?

Melhor transformação de mecha ever

Então, Planet With é um anime que joga suas cartas de forma diferente do esperado. É aqui que a semelhança com Gurren Lagan começa a ecoar forte. Ao invés de criar um sistema sólido para ser explorado (como "derrote o monstro do dia até aparecer o general inimigo"), Planet With trabalha muito mais com a ideia de que as ações tem consequencias e a trama avança a partir dessas consequencias. Agora, enquanto eu não sou o maior fã de Gurren Lagan, tenho que admitir que no papel isso foi algo muito legal que eles fizeram (que eu não acho que funcione tãaaaaaaaao bem assim na prática, ainda sim a ideia é sólida).

O que eu quero dizer com isso é que Soya tentando derrotar os 7 paladinos que protegem a Terra é apenas a ponta do Iceberg e a partir disso a trama vai se desenrolando até chegar no climax que é a consequencia lógica dos eventos sendo construídos. Eu sei que isso pode parecer uma premissa básica para qualquer narrativa, mas não é tão comum assim.

Tentar explicar como as coisas chegaram do ponto A, no começo da série, até o ponto Z, no final, não pode ser descrito como nada menos do que "bem, é complicado e eu provavelmente teria que te contar a história toda para você entender". Eu, pessoalmente, adoro shows assim e é uma das coisas que mais me surpreenderam e me ganharam em The Good Place, por exemplo. Planet With faz isso muito bem, é uma história de ficção cientifica sólida que sabe onde começa e onde termina, e o caminho que vai fazer até lá.

O que não quer dizer que esse caminho seja perfeito, e tem muitas coisas nesse caminho que me incomodam. Em primeiro lugar, as escolhas visuais da série: os aliens em Planet With usam naves e mechas na forma de objetos terrestres cotidianos porque... bem, porque vai ficar visualmente bizarro. E só isso. Não há sequer uma tentativa de desculpa aqui, é só para chamar atenção mesmo e isso é uma dor excruciante na construção de mundo da série.


Essa é a arma dos alieníginas. Um jacaré gigante com cabeça de piramide porque... bem, apenas porque um jacaré gigante com cabeça de piramide é muito legal. E é mesmo. Mas seria mais legal ainda se tivesse um motivo para isso além de bizarro pelo prazer de ser bizarro, a impressão que passa é que os criadores viram os aliens de Evangelion e pensaram "hm, então a garotada curte coisas aleatórias como monstro? Tá na mão!"

Um alien em Evangelion...
... um alien em Planet With
Passa uma sensação de desleixo, de JJ Abrams com o seu bom e velho "taca qualquer coisa que chame a atenção porque FODA-SE!". E FODA-SE não é a ideia que você quer passar para o seu público, acredite.

Outro problema da série é que ela é ambiciosa demais para sua duração. São apenas 12 episódios, mas temos três arcos narrativos distintos dentro dessa duração, o que significa que, enquanto as coisas não são mal feitas devido a direçãõ muito boa, poderiam facilmente serem melhor trabalhadas. Um bom exemplo são os 7 paladinos que protegem a Terra e contra quem nosso herói abre o anime antagonizando. Enquanto seus conceitos de personagens são interessantes, eles nunca evoluem muito a partir disso - e meio que os conceitos são apenas até aonde vamos.

Em determinado episódio um amigo de Soya é selado pelos aliens e ele fica ressentido com isso. Eu sei que esse personagem era amigo de Soya porque o protagonista diz isso algumas vezes, porque no anime mesmo ele viu esse cara em duas cenas. Sim, eu entendo que enquanto o formato de 24 episódios seria ideal, é uma pedida grande demais para um anime original que não veio de um manga ou uma light novel best-seller. Ainda sim, teria sido realmente ótimo mais tempo.

Essa seria uma reclamação mais injusta se o anime não desperdiçasse o pouco tempo que tem, tendo mais de um episódio com sobre as trapalhadas de uma mulher adulta querendo estragar o date de adolescentes porque... bem, porque sim, basicamente.




Então, não, eu não diria que as escolhas visuais de PW ou seu uso do tempo sejam perfeitos. Felizmente, o mesmo não pode ser dito a respeito dos temas abordados no anime e essa é uma das suas maiores, senão melhor qualidade.

Vamos começar do começo: o problema que os aliens tem com a humanidade é um que você não pode dizer que eles estão errados. Em alguns poucos anos no futuro, a humanidade vai começar a desenvolver habilidades psiquicas e se tem uma coisa que não vai dar certo nesse universo é dar esse tipo de poder na mão da nossa espécie.


Nós somos uma espécie inerentemente violenta, e poderes psíquicos vão dar muito ruim.

Por isso, a Nebula (uma organização de povos da via lactea que mantém as coisas em paz) veio com uma solução em que ninguém se fere: os mecanismos de selamento. Basicamente, a ideia é induzir o subconciente das pessoas a um estado de sonho onde, nesse sonho, todos os desejos dela são saciados.



Estando complemente saciados, os humanos pararão de evoluir, não vão desenvolver poderes psiquicos e ninguém se machuca.

Sim, os Sealing Devices não fazem mal, e esse é o problema, a série sugere. As experiências reconfortantes “apagam o fogo” e “roubam a esperança”, segundo um dos personagens. No primeiro milênio, havia um nome para isso: acedia, uma vida de prazer e prazer este que, de alguma forma, empobrecia o eu e o privava de alegria.

Prazer, sem felicidade e sem a sensação de estar vivo. Aqueles que lutaram contra isso dentro de si mesmos (cristãos, estóicos e outros) escolhiam regularmente uma vida de inconveniência (como pobreza voluntária) e até a dor. Dessa filosofia veio a coisa do autoflagelamento como forma de purificação. Ao escolher o desconforto, eles sentiram que estavam escolhendo a vida, a esperança e a alegria.

Fazendo isso os humanos selados estariam felizes e os aliens que não seriam trucidados pela violencia dos humanos estariam felizes; Mas isso pode ser chamado verdadeiramente de felicidade? Bem, para os aliens certamente sim, não ser trucidado sempre é bom, mas para os humanos essa felicidade acediana... é altamente debatível.

Mas ok, suponhamos que os humanos fossem infelizes com isso, ainda sim, nós temos o direito?


Nos primeiros episódios desse anime, tem uma piada recorrente de Soya tentando comer carne mas nunca conseguindo por algum motivo improvavel ou outro. Acontece que mais para frente você percebe que essa piada não é tanto uma piada quanto uma ferramenta de caracterização da filosofia narrativa desse anime budista de não-violência. Planet With tem vários momentos assim.

São perguntas complexas sem uma resposta simples, e o anime não pretende que existam respostas simples para isso. Soya Kuroi, um alien que está refugiado na Terra tem menos razões ainda para se meter nessa discussão. Mas então, se entrometer-se nos problemas da Terra não é a prioridade de Soya... o que é? Depois que ele se vingar daqueles que destruiram seu planeta... e aí? É isso? Só isso? Ou existe algo mais na vida?

São perguntas filosoficas importantes e profundas, e melhor ainda, são perguntas que não são respondidas através de dialogos ou cenas longas e monocromáticas enquanto um piano toca, não. São perguntas respondidas através de mechas gigantes formados por energia psiquica e tamancada de ferro nas fuças. Sim, não pergunte. Se isso não é ficção cientifica da boa, puta merda, então eu não sei mais o que poderia ser.

Existem alguns outros temas que são abordados na série também, incluindo mas não limitado a importancia do perdão e de quebrar o ciclo retroalimentavel de vingança-ódio, vários conceitos budistas sobre a roda da vida, além de uma batalha contra um dragão de 30 km de comprimento. Curiosamente, e até mesmo de forma pouco provavel, todos estes temas e alguns outros são passados em apenas doze episódios sem parecer corrido ou mal feito. Eu disse antes que um pouco mais de tempo para desenvolvimento poderia ser usado, só que isso é diferente de dizer que o anime é corrido.

Para namorar a Terra, antes você você deve derrotar seus 7 paladinos... não, espera, história errada


Como o diretor Satoshi Mizukami conseguiu fazer isso é um mistério, e se você considerar que o anime ainda se dá o luxo de perder tempo com coisas não-importantes então, eu diria que esse anime é um fodendo milagre narrativo. Bem, por outro lado esse é o mesmo cara responsável por mangas como "Lúcifer e o Martelo-Biscoito" (lançado no Brasil com o nome apenas de "Lucifer e o Martelo", provando que a nossa falta de estilo ainda é bem grave, então eu diria que um pouco de genialidade insana é esperada aqui.

Eu verdadeiramente espero que esse anime venda bem e por consequencia maiores orçamentos sejam dados para Mizukami trabalhar, porque está aí um homem que entende pra caralho de direção, edição, gerenciamento de tempo e desenvolvimento de tramas a um nível narrativo e filosofico. Sem exagero, esse cara é o Christopher Nolan dos animes só que sem o hábito irritante de ter um personagem narrando o que está acontecendo ou o que os outros personagens estão sentindo.

Caso você tivesse planos de conseguir dormir essa noite, aí vai essa imagem. Boa sorte com isso agora!

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