[SÉRIES] LUKE CAGE: 2a Temporada (ou there must always be a Harlem King)

| domingo, 23 de junho de 2019


Quando a Netflix iniciou seu universo compartilhado de séries da Marvel, ela tinha um sonho. Um sonho bem específico e um bem dificil de atingir, mas um sonho não menos por conta disso. O que a Netflix queria era contar uma história em que um vilão muito estiloso fosse apresentado... para então no meio da temporada ele ser derrubado por alguém mais foda ainda e todo mundo ficar "uaaaaaaaaat?"

Eu meio que entendo a lógica por detrás disso, fazendo duas meias temporadas as coisas permanecem frescas e interessantes sem parecer que a série se arrasta, o problema é que isso é muito dificil de executar, já que conseguir criar um vilão formidável é muito dificil. Fazer dois na mesma série, e que o segundo seja melhor que o primeiro, então, não é uma tarefa leviana.

Dificil o quanto fosse, a Netflix tentou...


... e tentou ...


... e, quando muitos já teriam desistido a este ponto, tentou mais ainda!


Sabe, o grande filosofo moderno Jão Trão certa vez disse: "Sempre siga seus sonhos, mas não tanto a ponto de fazer ISSO!", um conselho que a Netflix claramente nunca ouviu. Seu M.O. era estabelecer um vilão interessante com bases sólidas, uma boa argumentação e um grande ator com total dominio de cena... para então substituí-lo por um vilão de quadrinhos no sentido mais genérico da palavra.

Bem, a boa noticia é que depois de diversas tentativas (uma delas que jogou pelo ralo a primeira temporada de Luke Cage), eles conseguiram! Por Galactus eles conseguiram! E o resultado deste sonho de uma vida é a série melhor arquitetada das séries de superheróis de Net Feliz!

Mas como isso aconteceu?

Tem uma cena no "Cavaleiro das Trevas" que o Batman está tentando interrogar o Coringa. Para isso ele faz todas as coisas que o Batman pode fazer: grita, vira a mesa, soca ele. Ao que o Coringa apenas ri, e ri mais ainda quanto mais o Batman soca ele.


"Você não tem nada, nada com o que me ameaçar. Nada para fazer com toda sua força", e essa é uma cena brilhante porque realmente o Batman não tem nada o que usar contra o Coringa. Absolutamente nada. A única forma de vencer é jogar o jogo dele, fazer um pacto com o diabo.

Nessa temporada, Luke Cage é ao mesmo tempo o Batman e o Coringa nessa cena.


Antes de começar eu gostaria de falar das duas coisas que mais me incomodaram nessa série, para depois que ir mais a fundo não perder a linha de raciocinio. Luke Cage tem dois problemas estruturais bem sérios, sendo o primeiro que a introdução do cenário demora mais do que deveria na construção do setup inicial, lança nome demais e comete vários outros pecados nesse sentido, fazendo o primeiro ato parecer arrastado e confuso.

Isso não é legal.

O segundo problema com a série é que o arco pessoal de Luke Cage ficou mal executado, provavelmente devido aos problemas de saúde de Reg Cathey - que veio a falecer apenas algumas semans depois do fim das gravações. É mais uma sensação de que você entendeu o que eles quiseram fazer e menos de você efetivamente ter visto isto na tela. Isto sendo dito, vamos falar da série em si.

Ainda nesta temporada: você ouvirá tantas piadinhas com a Misty ter perdido a mão que você jamais encherá o saco de outro deficiente na vida!


Carlos Lucas, Luke Cage para os íntimos e "o poderoso" para os realmente chegados, é um homem não apenas aprova de balas mas com superforça, supervelocidade e uma pele incrivelmente macia (sério, isso é ressaltado pelo menos umas três vezes). Diante de um protagonista assim, a coisa mais desinteressante que você pode fazer é lhe dar como antagonista um brucutu tão forte quanto ele para os dois decidirem quem leva a sagrada armadura de Pegasus para casa.

Existe um motivo para o maior inimigo do Super-Homem não ter nenhum super poder além de ser rico e as vezes ter câncer.


Este sendo um conselho totalmente ignorado na primeira temporada quando um puuuuuuta ator como Kamehameha Ali foi substituído por um brucutu que você esperaria ver no programa do Ratinho, eu temi pelo pior quando o mesmo parecia acontecer nesta temporada.

A história é que a ex-vereadora e herdeira da família dona de todas as bocadas sinistras do Harlém, Maria Dillard...


... Maria Stokes está tentando juntar uma grana para deixar o mundo do crime (cometendo um crime do colarinho branco, suponho que isso seja uma evolução) porém ela recebe um último chamado as armas quando outro cara com nome de cobra aparece aprontando altas confusões e querendo a cabeça dela numa bandeja.

Quando Luke Cage vai tentar parar o menino que estava causando baderna na sua vizinhança, ele apanha mais os caras que ficam segurando os inimigos até o Goku chegar. Ou seja, lá vamos nós para outro super bandido com super poderes que terá um super showdown com o Poderoso no último episódio.

... ou eles podem pegar esse conceito e humanizar o personagem, lhe dar uma boa motivação, ter um ator realmente carismático e contar tudo de uma forma que faça a gente pensar "bem, ele não está realmente errado...". Pode ser feito assim também.

Apenas um dia normal no Harlem

A grande coisa a respeito do Bushmaster é que ele não é o arqui-inimigo de Luke Cage, mas ao invés disso ele quer Mariah e a família Stokes. Bushmaster tem como objetivo uma muito justificável vingança contra ela. Claro, ele luta contra Luke Cage e chuta sua bunda com a ajuda de algumas ervas vudu, mas Cage é mais um obstáculo do que um inimigo.

Bushmaster é essencialmente o Justiceiro jamaicano, um personagem por quem torceriamos em qualquer outra série mas aqui ele é o antagonista do show. Sua história pessoal é trágica e faz com que realmente simpatizemos com a sua causa e, tão importante quanto, seus "poderes" não são ilimitados e tem um custo enorme sobre o seu corpo e mente ao usa-los. Ele consegue ser tão forte quanto o Luke Cage por apenas alguns momentos e a um alto custo, enquanto Luke é apenas poderoso o tempo todo sem pagar nada por isso. Ele é o underdog nessa luta, e isso o torna um personagem interessante.


Do outro lado, Maria faz o curso completo Breaking Bad completo e nós a vemos passar de política corrupta que as vezes passava da linha (como quando ela matou o seu primo) a uma vilã completamente badass e sem coração.

O mais interessante disso, no entanto, é que ela não simplesmente acordou um dia e decidiu "ah, vou ser du mauuuu", não. Ela tentou sair dessa vida, ela tentou encerrar o legado sangrento que a sua família carrega, ela genuinamente tentou deixar tudo isso para trás... e deu errado. Na verdade, quase tudo que podia dar errado deu errado ao ponto que dizer "ah, quer saber? FODA-SE ESSA MERDA TAMBÉM!" e ir full dark side.

Não estou dizendo que ela não teve escolha, ela definitivamente não é uma vítima aqui. Porém, nós entendemos o que a levou chegar ao ponto em que chegou e, mais importante, questionar que nas mesmas condições talvez tivessemos feito o mesmo. Maria não é má apenas pelo prazer de ser má ou por uma única razão que pode ser explicada em uma única frase (como é o caso do Rei do Crime, por exemplo), é toda uma sequencia de coisas que foram dando errado durante toda sua vida.


Black Mariah nos quadrinhos. Achei que você poderia querer saber.

Você, enquanto espectador, entende que o Harlem só poderá ter um futuro depois que a cabeça dela for devidamente esmagada com um tijolo de seis furos. Ninguém está seguro, nada de bom virá enquanto isso não acontecer. Isso não faz dela, contudo, uma personagem menos trágica por conta disso.

Shades estava na 1 ª temporada apenas para parecer descolado, mas eu fiquei profundamente impressionado com a atuação de Theo Rossi na 2 ª temporada. Enquanto você poderia ter imaginado que ele manipularia Mariah para ser full gansta e ser apenas um fantoche para ele mandar no Harlem, o que acontece na verdade é o contrário e Shades que quebrado por Mariah e sua crueldade até o final. 

Ele é forçado a executar seu melhor amigo (e ex-amante) depois de aprender que ele era um informante, e pelo final da série, ele simplesmente não aguenta mais matar inocentes para limpar a bagunça de Mariah, e ele acaba tendo um papel fundamental na conclusão da história toda. Quando um gansta profissional entra em estado de choque por conta das putarias que ele testemunhou, você sabe que as coisas foram longe demais. 

A atuação dos três vilões da série realmente realmente roubaram a temporada.

E já que estamos nisso, eis como é a Tilda Johnson nos quadrinhos (que atende pelo nome de "Deadly Nightshade" também)

O que é o ponto que a Netflix sempre sonhou: nós começamos com Mariah como vilã, surge Bushmaster, a Mariah das trevas ressurge e ao final da série é dificil dizer para qual dos caras maus torcer. Não é apenas uma reviravolta de vilões bem executada, como uma dupla reviravolta carpada! 

They did it! They pulled through! Oh my god they did it!

Enfim, o ponto é que 2 ª temporada faz algumas coisas realmente interessantes com o conceito de vilania. Shades parecia um gansga malvadão, mas ele é o único que encontra redenção no final. Bushmaster parecia um típico vilãozão grande e forte, mas a verdade é que ele está apenas alguns passos de distância de ser um herói, e se você olhar para a situação em uma luz diferente, Mariah se sujeitou a ser fraca e covarde por muito tempo em uma última tentativa desesperada de não ser tudo que um Stokes pode ser.

Ok, eu falei bastante dos vilões até agora, mas onde o herói da historia entra nisso? Bem, é aqui que Luke Cage se encontra na cena do interrogatório do Batman. Por um lado, ele é invencível o tempo todo. Sem pagar preço nenhum por isso, sem fazer esforço, bam, Power Man 24/7.

Por outro lado... no que isso ajuda?

Quando sua mãe diz para não coçar as picadas de mosquito, ela esta´falando sério

Tá, ok, ele é aprova de balas. E daí? Como que isso vai resolver o problema? Como isso vai impedir que a Mariah ou o Bushmaster destruam o Harlem em sua cruzada um contra o outro? Ele vai bater neles e deixa-los amarrados para que a policia os prenda pelos seus crimes de... serem maus? Não é assim que um processo  legal funciona. Na verdade a única coisa que ele vai conseguir com isso é ele mesmo tomar um processo por agressão - o que acontece na série, alias - e aí, o que isso resolveu?

Ou o Luke vai usar os poderes dele para ir full Justiceiro e apenas arrancar a cabeça deles (ou, para esse proposito daria no mesmo cruzar os braços e intencionalmente deixar alguém morrer) e tirar o resto do dia de folga? Ele totalmente pode fazer isso, sem nenhum esforço até, e durante a série ele varias vezes é tentado com essa solução,  mas esse é realmente o caminho que ele quer seguir? É assim que as coisas vão ser daqui pra frente?

A DC, inclusive, tem uma linha de histórias onde exatamente isso acontece. O Superman abre uma exceção e mata o Coringa porque ele foi longe demais dessa vez - no caso, ele detonou uma bomba nuclear em Metropolis. É apenas uma exceção para um cara que realmente foi longe demais, totalmente justificavel, certo?

Exceto que não é assim que funciona e nunca para só na "exceção que realmente fez por merecer" 


Mas se a saída fácil é a errada, qual é a certa então? Bem, a verdade é que Luke Cage não faz a menor ideia da resposta, e não tem nada que ele possa fazer com toda sua enorme força senão ficar com raiva e não ter sequer como descontar. E com isso ele vai afastando as pessoas perto dele, o que o faz ficar com mais raiva ainda.

Por incrível que possa soar, Luke Cage só não surta de vez porque ele recebe ajuda de um amigo que o auxília a colocar seus sentimentos um pouco em ordem. Paz interior, alinhar o seu chi, cara. Sim, esse seria o Punho de Ferro. É, essa série acerta tanta coisa que até o Punho de Ferro parece legal aqui, sendo o monge meio desligado que a gente sempre quis ver!

Só que só um tanto que um monge bilionário pode fazer, e conforme Luke vai se isolando das pessoas por causa da sua raiva. No fim, Luke acaba encontrando um modo de resolver o impasse o Harlem. Porém não é um nada bonito.

Como todas as decisões tomadas quando uma de nossas personas está isolada das outras (se tivesse jogado Persona 5, Luke saberia), Luke acaba tomando uma decisão que resolve o problema... mas será que não ao custo de criar um maior ainda?

A temporada termina com a implicação de que vimos o nascimento de mais um vilão, o próprio Luke Cage. Sem realmente lidar com drogas ou armas, ele essencialmente se torna o chefe da máfia que governa Harlem, a fim de salvá-lo de descer para o caos. Luke assume o papel de Lich King e senta no trono congelado do Harlém Paradise. Se não é possível destruir o flagelo, alguém deve ao menos controlá-lo. Será?

Shades foi outro que melhorou muito dos quadrinhos pra cá

A menos que a Disney decida o contrário no seu serviço de streaming, não teremos uma terceira temporada de Luke Cage, o que é uma pena porque eu realmente gostaria de ver para onde as coisas vão daí. Dependendo de como as coisas forem, ele poderia até mesmo se tornar um vilão para os outros Defensores enfrentarem. Provavelmente jamais saberemos. 

O que sabemos é essa história está completa, mesmo sendo uma tragica. Essa é uma temporada que tem o melhor desenvolvimento de personagens que eu já vi em uma série da Netflix, não apenas um mas dois vilões interessantes e complexos, arcos de personagens magnificamente executados e um final que corrobora todas os alertas que foram dados ao herói por praticamente todo mundo (principalmente a Claire, sempre ouça a Claire) desde o começo.

Mas o Harlem deve possuir um rei.
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