[PERSONA ] PARTE II: Sobre mascaras, Jung e sombras

| quinta-feira, 6 de junho de 2019


A série Persona nasceu como um spin-off de outra série bem mais antiga: Shin Megami Tensei. Ambas são feitas pela mesma empresa, então o que diferente as duas ao ponto que seus fandoms sequer se misturam?

Bem, SMT é uma série de RPGs sobre... bem... digamos que seria o tipo de jogo que você escreveria depois de olhar um Birdbox nos olhos. É sobre insanidade e destruíção da realidade como a conhecemos a um ponto que o Guilermo Del Toro diria "amiga, seje menas".

Shin Megami Tensei é o jogo onde surgiu pela primeira vez ESSE CARA como inimigo.



Shin Megami Tensei, na verdade, deu origem a duas séries separadas, na verdade. Persona e Digital Devil Saga. DDS é, digamos assim, o irmão dark hardcore de Persona e seus temas normalmente envolvem coisas como canibalismo e mutilação.

Ele não está falando sobre Mclanches Felizes, acredite


Persona, por outro lado, é uma série bem mais intimista e é, em ultima instância mais sobre o que se passa dentro das pessoas mais do que fora. Mesmo que use os mesmos monstros (inclusive esse cara aí de cima) e alguma coisa dos sistemas de combate, Persona geralmente é bem menos opressivo e lovecraftiano do que Shin Megami Tensei. De certa forma, são como o ying e yang da mesma moeda.

A grande influencia que moldou Persona foi o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, até mesmo o termo "persona" foi cunhado por ele. Basicamente, a psicologia jungiana é o principal ramo da psicologia moderna que se desvinculou de Freud e se foca bastante no quanto a nossa mente subconsciente tenta se comunicar conosco através de simbolismo e metáforas enraizadas.

E enquanto o valor como psicoterapia para problemas de saúde mental é... questionável... ainda sim é uma ferramenta muito útil para analisar literatura, filmes e jogos. Mas o que a psicologia jungiana diz?

PERSONA

Bem, Jung diz que todo mundo usa algum tipo de mascara - seja consciente ou inconscientemente. - para melhor nos encaixarmos na sociedade. A pessoa que você se mostra quando esta no almoço de domingo com os seus pais não é a mesma que você se mostra na rave as da manhã de quinta-feira, que por sua vez não é a mesma que você mostra quando falhou pela décima oitava vez em conseguir as quatro estrelas em Overcooked 2 eu já disse que é para deixar os pratos na pia que eu lavo!!!

... e, onde eu estava? Ah sim, mascaras. Essas mascaras são várias facetas da nossa personalidade, e as mostramos conforme for necessário ou conveniente. Jung chamava essas mascaras de "personas". Enquanto são ferramentas muito uteis para funcionarmos como sociedade, elas também vem com o risco de se tornarem prisões e em algum ponto nós acabarmos nos perdendo sobre quem realmente somos por trás dessas mascaras.

A série Persona é basicamente sobre isso.


Não por coincidência, os Phanton Thieves despertam seus poderes arrancando as mascaras de seus rostos, não sem arrancar sangue porque essas mascaras são algo profundamente cravado na nossa carne. Isso é o que dá poder a sua verdadeira persona vir a tona.

Nossos heróis arrancam a mascara de baderneiro que não liga para nada (Ryuji), a boa aluna que faz tudo para agradar os adultos (Makoto), a filha obediente que segue os designeos do pai sem questionar (Haru), o pupilo que obedece ao seu mestre porque acha que nunca será tão bom quanto (Yusuke) e por aí vai. Apenas quando eles arrancam essa mascara metafórica que usavam é que seus verdadeiros poderes despertam.


Não é por coincidência que o pacto com a sua verdadeira persona é selado com a frase "Eu sou tu, tu sois eu".

SOMBRAS

No vocabulário jungiano, "sombra" é a parte da psique que contém tudo que uma pessoa tem reprimido a respeito de si mesmo. Pensamentos e sentimentos que não são trazidos a superfície porque são socialmente inadequado, ou porque o seu proprietário não compreende muito bem o que sente. Isso pode ser muito tóxico, claro, mas também é uma coisa boa.

Nem todos os homens que sentem atração por crianças são pedófilos. Eu diria que a grande maioria deles reprime isso de si mesmo, principalmente, e isso é uma coisa muito boa. Da mesma forma que a maioria das pessoas não abre a cabeça de quem elas odeiam com um paralelepípedo, e os jornalistas agradecem que seja assim porque eles iam ter que escrever essa desgraça de palavra no jornal depois.


Por outro lado, reprimir a sua sombra e só tranca-la em um quartinho escuro só vai fazer a abominação se transformar em um monstro de pura insanidade e desejos distorcidos. Como lidar com a sua sombra sem negligencia-la totalmente é o maior desafio da natureza

Em Persona 5, algumas pessoas tem a sua sombra tão distorcida, tão superalimentada - seja por repressão ou por atendimento ao seus caprichos - que para algumas pessoas ela pode se tornar um palácio inteiro de desejos distorcidos.

Para fins metalinguísticos, os Phantom Thieves enfrentam sete palácios representando as psiques distorcidas de sete indivíduos, representando os sete pecados capitais.



Kamoshida representa a luxuria, acho que isso é muito auto-explicativo.



Madarame é o palácio da inveja. Eu ouvi algumas pessoas dizerem que ele é vaidade, mas a vaidade não é considerada um dos sete pecados (atualmente, aparentemente foi um em algum momento). Além do mais, Madarame não é vaidoso. Ele não é muito orgulhoso de seu próprio trabalho, ele rouba o trabalho de pessoas mais talentosas do que ele e depois acaba com a carreira delas (em alguns casos, como com a mãe do Yusuke, com a vida delas). Isso parece inveja para mim.



Kaneshiro é o palácio da gula. Neste caso, a gula se aplica ao dinheiro e não à comida, mas para ser justo, originalmente a gula nunca foi exclusivamente destinada a ser apenas comer demais. Embora esse seja o sentido que se use essa palavra hoje, ela era sobre o desejo além do necessário por alguma coisa.



Futaba tem o palácio da preguiça. Ela escolheu se trancar no seu quarto e nunca mais sair, onde ela se pede aos Phantom Thieves que roubem seu coração para que ela nunca mais sinta nada. Ou seja, ela literalmente quer que alguém resolva magicamente os problemas dela sem ela precisar fazer nada, e eu não consigo imaginar uma metafora para preguiça maior que essa. A preguiça dela é, de certa forma, física no sentido que ela fisicamente não vai a lugar nenhum, mas principalmente emocional onde ela evita a confrontar a culpa que sente pela sua mãe ter se suicidado.


  Okumura é ganância. Mais uma vez, bastante óbvio.



Sae Nijima é mais complicado do que isso. Embora o calling card que ela receba fale de inveja, eu diria que não é bem esse o caso. Ela não tem inveja de ninguém em particular, ela se sente é frustrada e com raiva pelo jeito que as coisas são. Ela sente raiva por ter que criar a irmã como se fosse filha dela, ela sente raiva por levar porta na cara todo dia sendo uma mulher trabalhando em um ambiente predominantemente masculino, ela sente raiva de que todo o sistema legal seja tão falho e fácil de ser contornado quando você tem mais dinheiro que bom senso.

O pecado da ira também não é apenas ficar com raiva, é sobre agir com raiva e/ou com determinação cega de uma forma que afeta negativamente pessoas inocentes. Sae está constantemente fazendo isso. Ela ameaça tirar a custódia da Futaba de Sojiro apenas para conseguir uma pista para o seu caso (o que é uma causa justa, mas não os meios), ela acusa Akechi de roubar arquivos de seu laptop sem nenhum motivo, e toda a razão pela qual você rouba seu coração é que ela está liderando um projeto que pretende falsificar provas para incriminar pessoas inocentes (para que haja uma resposta ao assassinato de Okumura e não haja panico nas ruas, novamente é uma causa boa mas feita da maneira errada porque ela está irada).

Isso de direcionar sua frustração e determinação para ter sucesso, mesmo ao custo de prejudicar pessoas inocentes, o que é a ira de manual. Mas este em particular é o menos direto dos pecados representados, então está aberto a debate.



Shido é o orgulho. Este deve ser bastante incontroverso, eu acho. O orgulho é considerado o pior dos pecados mortais, então fazer dele o palácio final faz sentido a esse respeito, assim como toda a coisa de "dirigir o país como um navio". O simbolismo de Shido está cheio de orgulho, de como ele é o único habilitado em saber o que é melhor para o país - e em última instância, para o mundo. Adicionalmente, a única pessoa que o Shido ama é o próprio Shido - e isso é o prefácio do Grande Manual do Orgulho.

 INCONSCIENTE COLETIVO

A existencia do Metaverso, o mundo de fantasia onde os Phantom Thieves e as sombras tem poder, nasce do incoenciente coletivo - que é a soma dos simbolismos e crenças que os seres humanos de determinada sociedade compartilham. Este também é um conceito jungiano.

É o lugar da onde o inconsciente tira os simbolismos para se comunicar com a mente consciente. É uma ideia bastante comum, por exemplo, a noção de que as coisas estão tão ruins que precisamos urgentemente de um salvador da pátria mágico que vai surgir e sozinho resolver todos os problemas com o poder de sua fodonice. Se você parar qualquer pessoa nas grandes cidades - ou mesmo no interior mas que consome o que a imprensa produz - é muito provável que ela te dar uma forma ou outra disso.

Mementos, o "palácio cognitivo do publico geral" no jogo é a representação do inconsciente coletivo

Se eu propor que um cara tenha poder para fazer o que lhe der na telha, desde que ele resolva esse problema muito especifico da sociedade,isso vai ressoar verdadeiro em variados niveis para variadas pessoas em variadas culturas. Esse "conjunto de coisas que todo mundo mais ou menos sabe mas ninguém diz" é o inconsciente coletivo.

Outro exemplo, dado pelo próprio Jung, ele sugeriu que uma onda de avistamentos de OVNIs em forma de disco foi relacionada a um arquétipo de deus – ele acreditava que o forma de disco foi um arquétipo da forma divina e perfeição, e a erupção de avistamentos era uma expressão por pessoas que queriam ser salvas da destruição por alguma força sobre-humana.


O inimigo final do jogo, Yaldabaoth, é justamente uma entidade que nasceu desse desejo no inconsciente coletivo de "por favor, alguém assume aí porque tá foda!"

Os inimigos contra quem você luta dentro dos palácios cognitivos também vem do inconsicente coletivo. As entidades que existem no metaverso acabam assumindo a forma de deuses, mitos e monstros mitologicos quando dentro dos palacios justamente porque é algo que existe no inconsciente coletivo. Ao longo de toda história da humanidade bilhões de pessoas aceitaram em maior  ou menor grau em suas vidas, conceitos recorrentes como a rainha-fada Titania, o demonio Balphegor ou Budda, e é essa energia psiquica coletiva que faz as criaturas do metaverso assumirem essas formas contra quem você luta.

Reprodução de Belphegor no "Dictionnaire Infernal", de 1818


Mas o inconsciente coletivo não é só para coisas ruins, afinal em dado momento, Morgana diz que ela consegue se transformar em um ônibus porque "gatos virando ônibus" é uma ideia recorrente no inconsciente coletivo japonês, então ela pode faze-lo.

Não sei da onde eles tirram essa ideia...
Se fosse no Brasil, Morgana poderia virar um bichinho de pelúcia que pode ser usado com arma porque isso totalmente é uma coisa por aqui.

ARQUETIPOS

Jung percebeu que havia uma grande sabedoria no baralho de Tarot, porém não o mumbo-jumbo exotérmico que as pessoas associam. Ele se referia a outro muito mais profundo: as 22 cartas do baralho principal do Tarot (chamado de "major arcana") são representações dos 22 aspectos fundamentais da natureza humana, aos quais ele chamou de "arquétipos"

Essa é a tradução de uma cara de Jung, onde ele fala sobre as majors arcanas representam a natureza humana
Por uma obrigação contratual, não podemos citar 'The World" sem dizer ZA WARUUUUUUDOOOOOO!!!

Obviamente, um ser humano é composto por vários arquétipos diferentes - mesmo que ele tenha maior afinidade por alguns do que por outros. 

Ok, mas e onde Persona entra com isso? Bem, durante o jogo você encontra personagens que correspondem aos 22 arquétipos do tarot jungiano, sendo que o protagonista corresponde ao taro do Trickster porque, como Jung disse, é o exilado mais propenso a se rebelar contra a autoridade, para o melhor e para o pior. As vezes suas ações forçam mudanças necessárias em uma sociedade, as vezes ele é só um cuzão desajustado que está esculhambando um sistema bom e que funcionava.
Isso é transposto na linguagem do jogo que, enquanto você como protagonista Trickster está fazendo algo de bom - enfrentando pessoas que abusaram e muito da sua autoridade - por outro lado o jogo começa a te questionar o quão direito você tem realmente de mexer com a cabeça das pessoas.

Enquanto você está, no grande esquema das coisas, você enquanto jogador vai tomando ciência do quão realmente pouco o seu personagem sabe sobre a Sala de Veludo, o app do metaverso e qual o preço desses poderes - ou mesmo as consequências de utiliza-los. Se deixado sozinho, o Trickster apenas tocaria terror e é aí onde entram os outros personagens, complementando as relações do protagonista. 

Você, enquanto ser humano, não é apenas um trickster, um fool ou um hanged man (metaforicamente, algumas pessoas se tornaram enforcados ao longo da sua vida). Tal qual em uma pessoa de verdade os outros arquétipos complementam qualquer que seja o arquétipo que você evidencie mais na sua personalidade. Nenhum homem é uma ilha, e nenhuma pessoa é uma coisa só.



Algumas destas arcanas são quase literais, outras mais metafóricas. Caroline e Justine, por exemplo, são o relacionamento da arcana da Força. O simbolo dessa arcana é uma mulher domando um leão. Quando você considera que as habilidades que elas desbloqueiam são relacionadas a aprimorar os seus poderes de invocar e controlar personas, a relação é bastante óbvia.


Já Makoto Niijima é a arcana da Sacerdotisa, que representa o arquétipo da sabedoria feminina e paciencia. Não apenas isso é uma boa associação com a personalidade dela, como é o que ela contribui com o grupo sendo a membro mais inteligente dos Phantom Thieves. Evoluir seu relacionamento com ela também vai desbloquear novas habilidades para analisar as sombras que você encontra nos palácios.

Agora o mais interessante disso é que o protagonista tem o poder de coletar diversas personas - ao contrário das outras pessoas, que só possuem uma - e cada  persona tem uma arcana. Se você falar com uma pessoa cuja arcana corresponda a uma que você tem dentro de você (tipo falar com a Makoto, cuja arcana é a Sacerdotiza) e você tiver uma persona com arcana sacerdotisa dentro de você (digamos, a persona Kikure-Hime), seu relacionamento vai evoluir mais rápido


Em outras palavras, as pessoas vão gostar mais de você se você for um espelho para elas se verem. Como na vida real. Não é tão legal que as pessoas sejam dessa forma, mas em última instancia é exatamente como as pessoas são.




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