A minha corrida de Formula 1 favorita de todos os tempos é o GP do
Brasil de 1991. Esse foi um daqueles momentos mágicos do esporte que
provavelmente jamais vai acontecer novamente quando Ayrton Senna venceu a
corrida com o carro desmanchando aos pedaços, com apenas uma marcha
funcionando e o volante travado. E chovendo, ainda por cima. Foi uma
coisa tão improvavel, tão inumanamente inacreditavel que no pódio Senna
não tinha forças nem para levantar o troféu. Quando ele cruzou a linha
de chegada a torcida invadiu a pista antes mesmo dos outros pilotos
terminarem a corrida, foi um momento completamente insano e surreal.
De
tempos em tempos, quando as estrelas estão certas, coisas assim
acontecem. Quando o universo inteiro conspira contra você, quando tudo
que pode dar errado dá errado e mais algumas coisas que não podiam
também dão errado. E então, no momento mais crítico, na hora mais
dificil, você apenas resiste e faz o seu trabalho bem feito, quer o
universo queira, quer não.
Essa é uma história dessas, a
história do homem que foi o Doutor no dia em que era impossível
acertar. E isso não o impediu de fazer seu trabalho mesmo assim.
Mas para ententeder o que aconteceu aqui, é importante entender a história dos bastidores da produção do show nos anos 80. Dificilmente você conseguirá mencionar que o (então) showrunner do programa, John Nathan-Turner, morreu de alcoolismo aos 54 anos de idade diante de um whovian sem que este cuspa no chão e resmungue: "E foi tarde!".
Isso porque, em uma decada marcada por decisões pavorosadas de mal gosto (estamos falando da época de ouro dos mullets e ombreiras, pelo amor de Rava), a BBC decidiu que a forma de manter Doctor Who interessante para sua audiencia era colocar um ... executivo no comando do show. Sabe, executivos de Hollywood, aqueles caras que não sabem nada sobre porra nenhuma e tomam decisões amplamente idiotas apenas olhando gráficos e pesquisas de opinião?
Pois bem, John Nathan-Turner era a mãe de todos os executivos. E assim, sem saber absolutamente passoca de bosta nenhuma sobre roteiro, narrativa ou mesmo porque o publico gostava do programa, ele decidiu que iria "modernizar" o show. Mas o que "modernizar", exatamente significa?
Uau, que coisa mais... anos 80... puta merda...
Enfim, JNT era esse cara. Ele queria deixar Doctor Who mais descolado, mais vibrante, mais radical porque estamos nos anos 80 e ele tudo tem que super maneiro, seu coroa! Ou ao menos foi isso que ele leu nos relatórios do que os jovens querem, não é como se ele proprio entendesse alguma coisa de qualquer coisa.
A ideia foi dele, por exemplo, de que o show seria mais leve e family friendly se o Doutor se vestisse como um cosplay da Emilia do Sitio do Pica-Pau amarelo porque isso seria totalmente cool, certo?
Que, claro, não estaria completo sem sua companion parecendo uma paquita |
Em 2009 a BBC lançou um boneco inspirado na visão de Colin Baker para o personagem, de azul a direita, e que parece bem menos... é, menos. |
E se as escolhas estéticas eram ruins, o gerenciamento de roteiros era calamitoso. JNT, como dito, não entendia patavinas de narrativa e tinha a capacidade criativa de uma porta de zinco - algo que ele mesmo admitia abertamente com certo orgulho, que ele era um homem de números e não de ideias. E isso tornava sua relação com os roteiristas um tanto... dificil.
Obsecado por controle, JNT não raramente tirava o roteiro da mão dos roteiristas e dava para outra pessoa escrever o ultimo ou os dois ultimos episódios do arco por algum critério que fazia sentido na cabeça dele. Ele temia, por exemplo, que os autores tentassem passar mensagens políticas através do programa e isso tornaria a coisa um pesadelo de relações publicas para ele gerenciar (oh boy, como ele teria gostado de trabalhar no tempo da internet). Algumas versões são menos generosas e dizem que ele fazia isso para favorecer quem... lhe dava algo em troca, se é que você me entende.
Essa é uma narrativa bastante complicada de se seguir. Por um lado, JNT era gay e muita gente inventava coisas pelas costas dele porque... né, é assim que funciona até hoje. Por outro lado, qualquer um que já tenha conversado com ele garante que não é nada fora da sua personalidade usar sua posição de poder para... se dar bem, de alguma forma. É famoso o caso em que, mais de uma vez ele interrompeu o ensaio dos atores para fazer algo mais "útil" com eles como publicidade em shoppings em coisas assim. É complicado.
Bom, qualquer que fosse o motivo real, o fato é que a escrita dos episódios era caótica na melhor das hipoteses culminando na obra prima da mambembice que foi o arco "O julgamento de um Time Lord". A ideia desse arco é realmente boa: o Doutor está sendo acusado de ter quebrado as regras de não intereferencia dos Time Lords (oh really?) e durante o julgamento são exibidos videos pela defesa e a acusação que são os episódios de verdade daquela temporada. É realmente uma ideia muito boa...
... e seria melhor ainda se os roteiristas tivessem sido avisados disso antes. O que JNT fez foi pegar episódios comuns que haviam sido escritos para a série e destincha-los em cenas para serem utilizadas no julgamento. Isso flui tão bem quanto a descrição soa, é claro. Isso quando coisas não eram alteradas nos episódios apenas pelo choque de se-los. Em determinado episódio, por exemplo, o Doutor se torna mau e começa a colaborar com os vilões. Colin Baker, obviamente, perguntou qual era a razão daquilo e a resposta que ele teve foi que eles não tinham pensado em nenhuma ainda, apenas que seria chocante e ia dar audiencia.
Esse é o nível de profissionalismo que estamos lidando aqui, a época que o show foi gerenciado pelo J.J. Abrams britânico.
Entretanto, o coup'de grace, o cream de la cream foi quando, ao final da temporada 23, os indices de audiência haviam despencado porque qualquer criança via que aquela coisa estava sendo feita na moda louca e sem nenhuma ideia maior por trás (ou seja, é praticamente Star Wars de hoje). JNT, entretanto, estava convencido que ele não fez absolutamente nada de errado e que obviamente a culpa só podia ser do protagonista, Colin Baker.
E assim, Colin Baker foi demitido. E eu quero dizer, literalmente demitido:
Ele sequer teve direito a uma cena de regeneração. Quando muito passar no RH e acertar suas contas - algo sem precedentes na história de Doctor Who, e que felizmente jamais voltou a acontecer. Ainda sim, é criminoso que as coisas tenham terminado desse jeito. MEU DEUS BBC! Como que o Doutor não tem uma cena de regeneração, vocês estão bebendo insufilme banhado em agrotoxicos?!
E ele ainda teve mais sorte do que Nicola Bryant (a Peri), que ninguém se deu ao trabalho de lhe dizer diretamente que ela estava demitida. Um estagiario ligou para a casa dela e deixou um recado.
Verdade seja dita, a este ponto a BBC estava de saco cheio de uma série que tinha mais drama acontecendo por trás das cameras do que na frente delas, e considerou seriamente cancelar a série a esse ponto. Ao que os ingleses reagiram muito cordialmente, como se pode imaginar:
Obviamente que você não pode cancelar Doctor Who e esperar conseguir ir comprar pão no dia seguinte sem ser vaiado por todas as velhinhas alimentando pombos na escadaria da igreja. Desculpem, quase tudo que eu sei sobre a Inglaterra vem de Mary Poppins. Enfim, a série acabou renovada mas com um novo Doutor e um makeover completo em toda sua estrutura.
Os ingleses dizem que essa era de Doctor Who terminou com um homem muito chateado por ter sido demitido de Doctor Who (Colin Baker) e outro muito chateado por não ter sido demitido, já que JNT abertametne sempre viu ficção cientifica como algo menor e esperava que a BBC empregasse seus talentos em algo mais prestigioso.
E agora que você tem uma ideia do pandemonio que rolava por trás das cameras, então você está pronto para que possamos falar sobre o homem que estava diante das cameras enquanto a bagunça desandava: o sexto Doutor, de Colin Baker
Enquanto o mundo se esfalpelava a sua volta, Colin Baker interpretou o Doutor da única forma que poderia ser interpretado: sendo absolutamente fabuloso. E quando eu digo fabuloso, obviamente que eu estou me referindo a alguma coisa entre a Rarity e Dio Brando - que é a única forma correta de usar essa palavra, obviamente.
Em um episódio, por exemplo, a TARDIS simplesmente parou de funcionar no meio do espaço. Enquanto sua companion Pery fica preocupada com a possibilidade deles ficarem ali para sempre, o Doutor fica absolutamente desconsolado, se jogando sobre a cadeira com a mão na testa.
"Eu não sei porque VOCÊ está preocupada", ele diz para a companion, "Você só vai ficar aqui até definhar e morrer uma única vez, isso é praticamente uma benção. Pobre é DE MIM, que gastarei todo o restante do meu ciclo de regenerações neste mesmo lugar por sabe-se lá quantos anos?".
Sério, Pery, você devia parar de pensar só sobre você. Tem uma graphic novel do Batman chamada "Asilo Arkham" (na qual o jogo da Rocksteady é mais ou menos baseada) em que um psiquiatra sugere para o Batman que o Coringa não é louco, e sim que ele sofre de um caso de supersanidade: em um mundo tão caótico e sem valores como o nosso, agir como ele age é a única resposta realmente sã que alguém pode apresentar.
Na situação caótica que eram os bastidores de Doctor Who naquela época, a atuação over-the-top, larger-than-life do Colin Baker parece ser a única resposta razoavel para ser apresentada em tela, e Colin parece plenamente ciente do absurdo da sua situação. Em um dos melhores momentos dessa era, o Doutor grita com Peri: "Se eu estou bem? Eu pareço bem? Olhe como eu estou vestido, isso é claramente um pedido de ajuda!"
Então o Doutor foi dramatico, flamboiante, espalhafatoso e absolutamente divonico tanto quanto Colin pode salvar de roteiros que, honestamente, nem seus escritores sabiam muito bem o que estavam colocando no papel.
A audacia do bofe! |
No seu melhor, o sexto doutor tem um toque delicioso de arrogancia e superioridade que acabaram se tornando caracteristicas marcantes de alguns Doutores do reboot. O sexto Doutor tinha uma filosofia de se desesperar com coisas questionaveis e aceitar coisas horríveis (Colin Baker explicou certa vez como "cry over a dead butterfly, laugh at a dead human"), que você nunca tem realmente certeza se ele é apenas um cuzão ou ele realmente tem uma compreensão maior sobre a vida, o universo e tudo mais onde nenhuma das coisas que nós achamos importantes realmente importam no grande esquema das coisas.
Um pouco de ambos, provavelmente.
No seu pior, esse é um dos Doutores piores escritos que eu já vi na minha vida. Quer dizer, o quinto Doutor tinha o problema de frequentemente você esquecer que ele estava em tela, mas pelo menos ele não era mau ou violento sem motivo nenhum senão que chocar pelo prazer de chocar. Pelo amor da TARDIS como essa era tem momentos terríveis e gratuitos assim. Por melhor que seja o ator, é realmente dificil trabalhar quando seu texto é curatelado pelo JJ Abrams dos anos 80.
O sexto Doutor tem um pouco da adoravel canastrice do terceiro Doutor, o feeling de ser um idiota que pode ou não saber o que está fazendo do quarto e a arrogancia (muitas vezes, hilariamente, sem fundamento) do primeiro. Tudo isso misturado em uma combinação que não é copia de nenhum em particular e sim uma coisa totalmente sua, totalmente fabulosa durante um dos piores - se não o pior - momento da série.
Quer dizer, sério, como não amar um cara que tem um plano bastante simples sobre como derrotar cybermens:
THE DOCTOR: I shall beat them into submission…with my charm. |
O que, para grande diversão de todos, termina tão bem quanto a proposta soa em voz alta.
Eu frequentemente digo que de todas as coisas que a BBC pode ser acusada, escalar mal o Doutor não é uma delas e até este momento eu não me senti desapontado com nenhum dos atores (embora tenha discordado sobre varias escolhas feitas pela produção sobre como usar esses atores, como o quinto Doutor ou a primeira temporada da 13a Doutora). Isso sendo dito, apenas o fato do Colin Baker conseguir fazer a série ser assistivel na situação caótica em que estava já torna uma injustiça que ele não tenha uma estátua na porta da BBC. Ou um pouco mais para o lado, se ficasse bem na porta ia atrapalhar o transito também, né?
Enfim, como eu disse no começo, é nos momentos de maior necessidade, quando tudo conspira contra você e nada parecer ter como dar certo, é que os verdadeiros heróis se revelam. Mesmo a série clássica tendo vários ótimos atores como o Doutor, o que Colin Baker fez, nas condições que ele teve que trabalhar, o colocam um patamar acima. Quer você goste, ou não.