[LIVROS] DOCTOR WHO: SHADA (resenha)

| sábado, 25 de maio de 2019




Quando eu escrevi sobre as razões para amar o Doutor, eu disse que a melhor forma de entender Doctor Who era imaginar como se Jornada nas Estrelas fosse escrito por Douglas Adams (autor da série Guia do Mochileiro das Galáxias, a propósito).


O que talvez você não saiba é que o Doutor já foi de fato escrito por Douglas Adams. Entre os anos de 78 e 79, Douglas Adams foi roteirista para a BBC, e escreveu alguns episódios de Doctor Who. Um destes episódios jamais veio a ser filmado na época, e este roteiro inacabado de Douglas Adams veio posteriormente a ser completado por Gareth Roberts, que é atualmente roteirista da série, tendo escrito episódios como “The unicorn and the wasp” e “Planet of the Dead“.


EU NÃO FAÇO IDEIA DE QUEM SEJA ESSE “DOUTOR QUEM”, E AGORA?

Obviamente eu não preciso pregar aos convertidos. Você, amigo whoviano, sabe que PRECISA ler esse livro. Mas e você, que nunca assistiu nem meio episódio dessas parada loka ae, comofas\\\\
A coisa é, o que você precisa saber de Doctor Who para ler o livro é… absolutamente nada!

O livro é inteiramente autossuficiente, e todos os termos, expressões e nomes usados são explicados no próprio livro. Claro que apressa as coisas bastante saber o conceito básico da série, mas nem isso é realmente obrigatório.

Vários nomes aleatórios e citações são jogadas, porque esse é o estilo do Douglas Adams escrever, e metade deles são referencias à série, e outra metade Douglas Adams inventou na hora – mas o fato é que isso não faz realmente diferença. Sabe no “Guia do Mochileiro” quando ele inventava um planeta ou raça do nada, e fazia um parágrafo engraçado sobre eles? Tipo isso, nesse sentido lembra bastante o “Guia do Mochileiro“.

De qualquer forma, aí vai: o Doutor é um alien do planeta Gallifrey, pertencente a uma raça conhecido como “Senhores do Tempo”. Os Senhores do Tempo possuem uma tecnologia que os permite viajar para qualquer lugar do tempo e do espaço (naves conhecidas como TARDIS, que são muito maiores por dentro), mas usualmente não o fazem, porque têm uma politica de não se envolver (tipo os Vigias da Marvel, saca?).

Com exceção deste jovenzinho rebelde aqui, o Doutor, que roubou uma TARDIS para dar umas bandas no universo, e acabou se engraçando por este planetinha azul. Ao chegar na Terra, o Doutor acabou parando na Londres dos anos 60, onde a TARDIS se disfarçou como uma cabine de policia azul – o mecanismo de camuflagem deu defeito, e ela continua com essa aparência (externa, porque ela é praticamente infinita por dentro) até hoje.

De igual forma, como o livro foi escrito para ser um episódio dos anos 70, se você ainda estiver assistindo a série, não precisa se preocupar com spoilers também.

O QUARTO DOUTOR E SUA COMPANION


Na época, o Doutor estava em sua quarta regeneração e era interpretado por Tom Baker – que muitos dizem ser o melhor Doutor de todos os tempos. Eu mesmo nunca tinha assistido um episódio do quarto Doutor antes de ler o livro, mas fiquei absolutamente fascinado. Claramente dá pra ver que ele é o paragon que fundou as bases da personalidade central que vemos no Doutor até hoje, mesmo em suas mais diferentes encarnações.

Este Doutor é bastante alien, e tem uma lógica nonsense que parece muito, oras, um personagem de Douglas Adams. Mas, melhor do que explicar, vou dar um exemplo de diálogo do Doutor:
Chris diz:
-É tão difícil acreditar que viajamos por centenas de anos-luz.
– Por quê? – perguntou o Doutor.
-Sempre aprendi que não era possível viajar mais rápido que a velocidade da luz.
-Segundo quem?
-Segundo Einstein.
– O quê? – O Doutor parou e passou um braço ao redor dos ombros de Chris – Você entende de Einstein?
Chris não estava muito certo de para onde aquilo estava indo.
– Entendo.
– O quê? – espantou-se o Doutor – E de teoria quântica?
– Entendo – respondeu Chris. Ele se deleitou diante do espanto do Doutor.
– O quê? – espantou-se o Doutor – E de Planck?
– Sim.
– O quê? – espantou-se o Doutor – E de Newton?
– Sim!
– O quê? – espantou-se o Doutor – E de Schoenberg?
Chris fez uma pausa. Era uma pegadinha? Ele se lembrava de ler sobre a crise da tonalidade. Achava que tinha uma ideia geral da coisa, então respondeu, orgulhoso:
– Sim, claro.
O Doutor assobiou, aparentemente impressionado. Por fim, disse:
– Você tem muito o que desaprender, Bristol.
Detalhe: Bristol não é o nome dele. Apenas o Doutor decidiu que era e não deu a mínima para as correções do personagem até o ponto que o próprio Bristol, digo, Chris Parson acabou se conformando.

Senhoras e senhores, esse é o Doutor em uma casca de noz.


O Doutor normalmente é acompanhado por uma mocinha, porque viajar sozinho pelo universo sem ter para quem mostrar o quanto você é foda é muito chato, que é chamada de “companion“. Normalmente a companion é uma mocinha da Terra que é maravilhada pelo universo e por coisas que são maiores por dentro (ui), mas especificamente nesta época sua companion era uma Senhora do Tempo como ele, só que muito mais jovem (nem deveria ter uns duzentos anos, se tanto) chamada Romanadvoratrelundar (Romana, para os íntimos).

Romana estava em sua segunda regeneração e era interpretada por Lalla Ward. Isso é importante saber, apenas porque Lalla Ward é uma das mulheres mais lindas que você vai ver na sua vida. Sem brincadeira, são níveis de uau que não podem ser medidos.

Tente não se apaixonar. Falhe miseravelmente.


Algumas cenas de Shada chegaram a ser filmadas na época, mas o episódio nunca foi ao ar

A HISTÓRIA

Eu poderia me alongar mais para explicar a história, mas na real, apenas a orelha do livro já é o suficiente para fazer isso por mim de uma forma que você sabe que precisa ler esse livro:
“Aos 5 anos, Skagra concluiu sem sombra de dúvidas que Deus não existia. A maioria das pessoas que chegam a tal constatação reage de uma das seguintes formas – com alívio ou desespero. Somente Skagra reagiu pensando: “Peraí. Isso significa que existe uma vaga disponível.”
Apenas Douglas Adams sendo Douglas Adams, né?


Como de costume, seu enredo é desconexo mas se conecta de uma forma inesperada, a história é engraçada, e as lógicas apresentadas no livro desafiam a mente de qualquer um. De certa forma, o enredo parece muito essa versão do Doutor: parece apenas zoeira e galhofa, mas por dentro ele está cozinhando algo realmente sério.

De um lado temos o vilão Skagra querendo um artefato proibido dos Senhores do Tempo que o levará a Shada (seja lá o que isso for, nem o Doutor ouviu falar desse lugar), e veio parar na Terra através de um Senhor do Tempo aposentado – o professor Chronotis, que é absolutamente genial como um Senhor do Tempo gagá!


ROMANA: O professor vai morrer?
K9: Prognóstico físico estável, prognóstico mental incerto.

PARSONS: É um robô.
ROMANA: Mas é claro.
PARSONS: Um robô cachorro.
ROMANA: Sim.
PARSONS: Maneiro!
Do outro temos o Doutor sem muita noção do que está acontecendo, mas que aconteceu de estar passando, e no meio humanos comuns mais perdidos ainda com viagens no espaço e no tempo (pobre Bristol…), e tem que ajudar a salvar o universo (quando sua maior preocupação até o momento anterior eram questões absolutamente banais do cotidiano).

Os personagens são muito bem construídos e cativantes, e em poucas páginas você sente como se conhecesse Bristol e sua turma de longa data. Skagra é um vilão extremamente carismático (e totalmente deveria ser interpretado pelo Benedict Cumberbatch) que consegue ser tão gostoso de ler quanto o Doutor:


“Ainda estava usando o prático macacão branco do Think Tank, as acrescentara uma capa prateada e comprida e um chapéu também prateado e de abas largas; nessa civilização remota e não civilizada, o melhor era passar despercebido. E, em seu itinerário a pé nesta pequena conturbação conhecida como Cambrigde, logo notou que tinha tomado a decisão certa. Enquanto andava pelas ruas, vários primitivos chegaram até a exclamar palavras de saudação em sua direção, usando coloquialismos intraduzíveis tai como: “Ei, Disco-Tex, cadê as Sex-o-Letter?” e “Vai, bonitão” e “E aí, belezura!”. Sim, estava obviamente passando por nativo em meio a esses animais”.
O livro é divertido, inteligente e bem escrito. Se eu tivesse que juntar um dream team de sci-fi, eu escolheria o autor de ficção mais divertido (Douglas Adams) escrevendo sobre o personagem de ficção mais divertido (o Doutor) em sua encarnação mais alien e nonsense (o quarto). Shada é basicamente isso.

É como a Romana diz: “Clare, é que o universo é cheio de coisas maravilhosas e oportunidades fantásticas. E você tem que agarrá-las com ambas as mãos. E torcer para que nunca acabem.”

Este livro é uma delas.
Next Prev
▲Top▲