[GTA V] Parte II: a pior obra-prima da história dos videogames

| domingo, 12 de maio de 2019
 

Diz o ditado que dinheiro não trás felicidade, mas se em algum lugar o multiverso isso esta errado, esse lugar é a produção de videojogos. Isso porque dinheiro compra talvez a coisa mais importante para se fazer quando se produz um jogo: tempo.

Nesse exato momento, por exemplo, a Rockstar esta trabalhando em GTA 6. Quando esse jogo vai ser lançado? Resposta simples: quando ele estiver pronto. Não neste natal, não junto com o PS5, não quando o STF mandar. O jogo vai estar pronto quando ele estiver pronto e acabou. E a Rockstar só pode se dar esse luxo preciosissimo de poder dar aos seus desenvolvedores o tempo para fazer o que eles sentem que devem fazer porque eles tem dinheiro para isso.

GTA V é a o produto de entretenimento mais lucrativo de TODOS OS TEMPOS da história da humanidade. Até o final de 2018 o jogo já tinha levantado, sozinho, SEIS BILHÕES DE DOLARES em vendas. Seis bilhões. Seis. Em comparação, o filme mais lucrativo de todos os tempos - "E o Vento Levou", se você ajustar a inflação - levantou alguma coisa em torno de 3 bilhões de dolares somando bilheteria, DVDs, direitos para TV e etc. Ou seja, GTA V, sozinho, vendeu mais que o dobro do segundo colocado. Isso é muito dinheiro.

E dinheiro compra tempo.



Isso é importante porque é assim que a Rockstar trabalha, GTA IV havia sido um sucesso enorme (não tão grande quanto esse, claro) que comprou todo tempo do mundo para que GTA V fosse feito da forma que devesse ser feito. E você consegue sentir o nível de polimento, atenção e cuidado que foi colocado nesse jogo.

A maioria dos jogos constrói seu cenário pensando no gameplay primeiro e só depois tenta transformar aquela fase de videogame em um cenário. Quando você joga Assassin's Creed, você consegue ver como o layout da cidade é convenientemente construído para permitir todas as perseguições, fugas e assassinatos espetaculares que o jogo se propõe a fazer - assim como depois coloca uma camada para dar um feeling da cidade que eles estão tentando emular.

Não me entenda errado, é realmente impressionante como a Ubisoft é boa em converter cidades históricas em fases de videogame sem que você perca a sensação de estar naquela cidade. Isso é realmente incrível e certamente uma coisa que eu não posso reclamar da qualidade dos seus jogos (em muitos deles, é a ÚNICA coisa que eu não posso reclamar, mas enfim).

GTA V, no entanto, tenta algo bem mais profundo que isso.



A ilha de Los Santos e a região da grande San Andreas não é uma fase de videogame, ela tenta ser - no melhor das suas habilidades - uma cidade de verdade. Ela não passa a sensação de ser um mundo construído para o jogador, ele é um mundo construído onde pessoas trabalham, moram e criam seus filhos.

Apenas andando pela cidade você consegue ter um feel da ambientação daquela cidade. Sabe quando você viaja e passa alguns dias em uma cidade e começa a ter uma sensação de como as coisas são por ali, de que tipo de pessoa mora ali? GTA V faz isso.

Andar pelas ruas de São Paulo passa uma sensação completamente diferente de andar no Rio de Janeiro, ou em Porto Alegre, ou em Manaus. A forma com que a cidade se formou esta tatuada na sua arquitetura, como o transito funciona, como o comércio interage com os espaços urbanos, como as pessoas se vestem, cada cidade tem um DNA único que apenas visitando você consegue senti-lo. 



Los Santos tem isso. Eu nunca estive em Los Angeles, a cidade que é parodiada em GTA V (que é uma coisa da série, em GTA IV Nova York é parodiada como Liberty City e em GTA III Miami vira Vice City), então não posso dizer como é a comparação com a cidade verdadeira, mas posso dizer que definitivamente parece uma cidade com sua história, sua população e suas peculiaridades únicas.

E isso é muito devido a quantidade de esforço e atenção que os criadores colocam na construção de cenário - um cuidado que rivaliza com o nível da atenção da Naughty Dog em The Last of Us, porém é aplicado a uma area centena de vezes maior. É absolutamente impressionante, e é uma obra prima.

Se você entrar em um mini-mart, por exemplo, e for até a sala dos fundos vai encontrar tabelas com a escala de turnos dos funcionarios! A Rockstar não tinha a menor necessidade de fazer isso, certamente esse detalhe em especifico não vai vender um único jogo a mais, mas o fato que alguém se deu ao trabalho de pensar nisso passa uma sensação de qualidade impressionante.


Quando você entra em um túnel, o sinal do seu GPS é perdido. Algumas estações de rádio param de funcionar quando você dirige em direção ao interior, se afastando da capital (e vice-versa). Você encontra trabalhadores fumando atrás da loja em seus horários de pausa. Existem 21 rádios e 3 canais de televisão com tanto conteúdo que em mais de 60 horas de jogo eu não lembro de ter visto conteúdo original se repetir uma única vez (não me refiro a músicas, mas sim a entrevistas e programas de radialistas).

É um trabalho enorme, feito com muita dedicação, esforço e mais orçamento do que se pode sonhar (até esta data GTA V ainda é o jogo mais caro já produzido, com um orçamento de mais de 265 milhões de dolares) e por qualquer angulo que se olhe, é um dos maiores e mais complexos trabalhos já feito em uma única obra de entretenimento individual e por si só o mundo de GTA V é algo absolutamente notável.

Em noites de chuva o transito fica uma merda para dirigir, exatamente como acontece na vida real
Infelizmente, no entanto, não existem almoços grátis nesse mundo e tudo tem um preço. GTA V é a Capella Sistina do game designing... só que ao invés de ter sido encomendada pelo papa, ela foi projetada para ser vendida a garotos adolescentes de 14 anos de idade.

Todo esse esforço, todo esse prodigio tecnologico é investido como o que eu apenas posso descrever como um sandbox de American Pie.

NÃO TEM NADA ERRADO COM AMERICAN PIE, AS VEZES APENAS PIADAS ADOLESCENTES SOBRE SEXO E COCÔ SÃO TUDO QUE PRECISA! NEM TUDO TEM QUE SER UMA VERSÃO EXTENDIDA EM PRETO E BRANCO DE OITO HORAS DA MORTE DO CAIXEIRO VIAJANTE, SEU IDIOTA!

Verdade. Eu não poderia concordar mais. Se GTA quer ser apenas toilet humor sobre como o 4chan e o 9gag descrevem o modo de vida americano, por todos os méritos, que seja. Não é a minha coisa, mas bom para eles e desejo o melhor dos destinos.

Não é isso que me incomoda.



O problema, o que realmente me incomoda em GTA V é que a forma que o jogo é escrito passa a sensação que os produtores realmente queriam fazer algo mais profundo do que American Pie... só que a cada 15 minutos os chefes deles batiam na porta para lembra-los que quem iria comprar esse jogo é o público de American Pie.

A sensação que o jogo passa é que ele quer fazer uma crítica social a alguma coisa no modo americano de vida (e como qualquer lugar do mundo, talvez exceto o Canada e a Islandia, tem muito que pode ser criticado na sociedade americana) mas é contratualmente impedido de usar qualquer coisa mais complexa do que "heh hehe hehe BICHA!". São adultos escrevendo para (pré) adolescentes quando eles claramente não queriam estar escrevendo para crianças, eles queriam estar escrevendo coisas de adultos!

... mas "coisas de adultos" não paga uma conta de 6 bilhões de dolares. Não em videojogos.

A cada momento genuinamente sincero ou profundo sobre qualquer coisa que o jogo tenta abordar, ele necessariamente tem que acabar com uma piadinha sobre sexo, escatologia ou drogas. É tipo Guardiões da Galaxia 2 em que um momento profundo e importante para um personagem tem que ser interrompido por alguém falando "bem, vou dar uma mijada!" porque o filme acredita que seu publico ficará entediado se tiver um momento que não termine com algo explodindo ou alguém falando algo engraçadalho. GTA V é Guardiões da Galaxia 2 mil vezes piorado nisso, e definitivamente não precisava ser!



Toda vez que o jogo ameaça tocar em um tom sério ou emocionalmente denso, ele se defende quebrando o clima com alguma piadoca de 6a série.

E talvez em nenhum momento isso seja mais evidente do que na cena de tortura, em que o FBI usa Trevor para conseguir informações através de tortura de um cara só porque ele é paquistanês e, hey, esses arabes todos se conhecem, então ele deve conhecer o terrorista, certo?

Por um momento, por um genuíno momento, o jogo mostra o que a última consequencia da filosofia nacionalista idiota (todo nacionalismo é idiota, mas enfim) vigente na América de "nós contra eles" (e de uns anos para cá no Brasil também, embora esteja no começo ainda). De certa forma me lembrou filmes como Estrelas Através do Tempo ou Infiltrado na Klan, em que o filme está te dizendo "olha onde dá esse modo de pensar, é isso que você realmente quer defender?". GTA V faz isso nessa cena com vários pontos relevantes da realidade americana. A missão inclusive se chama "By the Book", como em "procedimento padrão do FBI".

Logo no começo da cena o torturado diz que você não precisa fazer nada daquilo, que ele estaria mais do que disposto a colaborar com as autoridades se a policia sequer tivesse perguntado qualquer coisa para ele antes dele ser sequestrado pelo FBI e torturado. E ele esta falando a verdade, não é como se ele estivesse escondendo informações ou trabalhando para os terroristas nem nada, ele está disposto a falar desde o primeiro momento. Ainda sim, procedimento padrão, sacumé, né?



Se você acha que Dick Chenmey não fez nada que ele não deveria fazer, se você acha que é "nós contra eles", se você acha que é America acima de tudo, Deus acima de todos... então é ISSO que você está realmente defendendo. E não é bonito.

É uma mensagem relevante e poderosa. E como o jogo lida com isso? Tratando o cara torturado como piada da cena, olha como é engraçado ele andando por aí como um bebado porque bebados são engraçados e sempre podemos tirar sarro deles, certo?


Ah, esses bebus, deixarão eles de serem hilários algum dia?

Espera, o que? Porque TUDO tem que terminar em uma piadinha de humor barato o tempo todo quando claramente você tem algo mais que quer dizer a respeito. Sério, Rockstar, vocês tem 14 anos de idade ou algo assim?

Não. Mas eles querem vender para garotos de 14 anos de idade, então humor de banheiro é tudo que a casa oferece. Mesmo que eles quisessem fazer algo mais. 



Como eu disse no texto passado, as fundações dos personagens são sólidas e dariam um grande filme. Trever, em toda sua loucura, tem momentos genuinamente tocantes sobre como no fundo ele sabe o quão triste sua vida. Michael sabe que sua família está cagando para ele. Franklin tem que aceitar que ele jamais receberá uma gota de agradecimento por todas as vezes que salva seus próximos das próprias burrices. Mas eles tem que engolir isso e seguir em frente. Temos ação, temos drama, temos personagens com motivação tendo que trabalhar com pessoas que eles odeiam e para pessoa que eles odeiam, todos os ingredientes para uma grande história estão lá.

E, mais importante, eles não estão lá por acaso ou porque as palavras do roteiro se alinharam magicamente por conta própria: os escritores as colocaram lá. Eles criaram esses conceitos de personagens que dariam uma ótima história em um cenário cuidadosamente construído. Está tudo lá, e muita gente se esforçou muito para colocar essas coisas lá. E não apenas os personagens, o jogo claramente tem ambições de questionar o "sonho americano", a visão americana do capitalismo como uma fundação moral e toda relação estranha que os americanos tem com o seu goveno (o que me leva a imaginar que não veremos alguma obra sobre a realidade brasileira tão cedo, já que explicar o que efetivamente acontece no Brasil sem parecer ficção mal escrita é bem dificil).

Mas então o que o jogo faz com isso?



Como tudo mais, algumas piadas de 14 anos mas para antes de chegar a algum ponto emocionalmente complexo da forma mais lame que se possa imaginar. Então, como exatamente o jogo resolve os conflitos de seus protagonistas?

Bastante simples: não resolve. 

E por "não resolve" eu não estou dizendo "resolve de uma forma insatisfatória", e sim que é totalmente "Nah, sentimentos são para mariquinhas e você não é um mariquinhas, não é? Apenas não vamos falar sobre isso e ja eras."

Michael nunca tem um closure de que fim leva o relacionamento com a sua família. Trevor não chega a lugar nenhum com suas diferenças com Michael ou tem um fim adequado a ser maluco generado solitário que todo mundo abandona porque ele é um maluco degenerado (deus, se alguma coisa eu jurava que ia ter um final ao estilo Scarface, totalmente combina com o personagem e é muito a cara da Rockstar parodiar Scarface) e Franklin nunca chega a conclusão nenhuma sobre tentar ser alguém na vida ou ser arrastado para baixo pelas más companhias com quem ele cresceu.

No começo do jogo, Michael abre tendo uma consulta com seu psicologo - algo claramente tirado de Os Sopranos. Só que a cena não faz nenhuma referencia a série, nem parodia os psicologos em geral. O que ela faz é fazer a piada contra psicologos mais rasteira que alguém que só ouviu falar sobre o tema (mas nunca teve uma consulta de verdade ou estudou mais a fundo) pode pensar. O tipo de "opinião" que você veria como "piada" no "Facebook".


Nada de nada. Você mata uns caras do FBI e o jogo termina. Trevor e Michael sequer tem um acerto de contas nem nada. Apenas fim. Porque contar história é para coroas quadrados, mora? (ou seja lá qual expressão de desdem os jovens de hoje usem).

E isso é realmente uma pena.

Veja, eu entendo o jogo não querer contar histórias porque sente que esse não é o ponto aqui. Tudo bem com isso, de verdade. Watch Dogs 2 faz isso magnificamente bem, alias. Ele deixa claro desde o começo que isso é só uma caixa de ferramentas para você brincar e era isso. Eles não tentam contar histórias, tudo bem.

Mas não é isso que GTA V faz. GTA coloca os alicerces de ótimos personagens, questões relevantes, sátira de temas importantes... e então não faz nada com isso. Absolutamente nada. Tão nada ao ponto que sequer se dá ao trabalho de terminar o que começou.

Esse não é um jogo que despertou raiva, ou ódio, nem nada disso. Eu não odeio GTA V. Eu tenho pena dele.

Assim que somos apresentado ao Trevor, ele esmaga a cabeça de um cara chamado Johnny por razão nenhuma além de "esse Trevor, hahaha". Eu não sabia que na época, mas esse cara (e a namorada dele) são os protagonista do DLC de GTA IV: Lost and Damned.

GTA V claramente se importa com a San Andreas que construiu e se importa com os personagens que construiu - mesmo que tenha medo de dizer isso abertamente. Se não se importasse eles não gastariam tanto esforço em detalhes - como as tatuagens que você pode fazer em cada personagem são diferentes entre os três protagonistas, de acordo com a personalidade deles - para definir quem esses personagens são. Ele se importa com a cultura americana e quer dizer algo sobre isso.

Mas apesar de se importar com todas essas coisas, o jogo tem medo de ser aberto sobre elas. O jogo não quer ser rotulado como politico ou inteligente ou desafiador, ele quer apenas vender para meninos adolescentes de 14 anos de idade. E a forma que ele faz isso é afastando todas as coisas "adultas" com grosseria e piadas sobre peitos.



GTA V tinha o talento humano, os recursos e o tempo para ser um dos maiores e mais influentes de todos os tempos e apenas escolheu não ser. Enquanto eu verdadeiramente entendo porque eles escolheram isso (seis bilhões de dolares é argumento mais que suficiente), mas enquanto gamemaníaco (e, mais importante, alguém que não recebeu nenhuma parte desses 6 bilhões) eu não posso deixar de olhar o que GTA V é e pensar no que poderia ter sido.
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