[GAMES] THIEF (ou o rio mais fedorento do universo)

| quarta-feira, 29 de maio de 2019
Algo errado não está certo...
Abrimos já com um grande spoiler: em Thief você joga com um ladino. Oh.  Brutal. E isso, é claro significa guerra que você encontrará dezenas de guardas patrulhando a Cidade (esse é o nome dela mesmo). Alias a Cidade é a cidade (?) mais segura do  universo já que até onde eu pude contabilizar a proporção de guardas para civis é de algo como 10 guardas para cada pessoa comum. Apesar disso o jogo insiste que a Cidade é um lugar perigoso e sem leis, vai entender...

Seja como for, eu dizia que a Cidade é o lugar mais policiado do universo. Infelizmente tem o rio mais fedegoso do cosmos também.

Você sabe disso porque quando os guardas patrulham (e 90% da população da cidade são guardas) eles usualmente falam uma de suas quatro frases aleatórias de dialogo. Thief tem poucas frases de dialogo, mas as mesmas frases foram gravadas diversas vezes pela mesma pessoa e distribuídas a diferentes guardas em diferentes áreas da cidade Cidade.

Você ficaria surpreso em quantas maneiras diferentes existem para se dizer "Dá pra sentir o cheiro do rio daqui". "Dá pra SENTIR O CHEIRO do rio daqui", diz um guarda parecendo surpreso que você possa fazer do que provar e tocar. "Dá pra sentir o cheiro do RIO daqui", aparentemente impressionado que de que todas as coisas que você pode sentir o cheiro daqui, o rio é uma delas. "Dá pra sentir o cheiro do rio DAQUI", diz um terceiro, refletindo sobre o quão longe se consegue sentir o cheiro desse rio.

Eventualmente eles se cruzam e você ouve diálogos como:
- Dá pra sentir o cheiro do RIO daqui.
- Dá pra sentir o cheiro do rio DAQUI.

Imagino que falar sobre o cheiro do rio é o equivalente local a comentar sobre o clima.

Adicionalmente, você ouve esse dialogo em todas as áreas do jogo. Absolutamente todas mesmo, porque o jogo tem um pequeno problema de áudio: o som sempre sai como se a pessoa que falou estivesse no mesmo comodo que você. Mesmo que ela esteja na rua. A três andares abaixo. E que o jogo tenha carregado duas telas de loading para abrir aquele mapa - imagine o quanto isso ajuda na imersão em um jogo de furtividade, pois é.

Então não existe lugar nessa cidade, literalmente, que o cheiro do rio não te alcance. Você pode correr e pode tentar se esconder, pode ir as profundezas dos esgotos ou ao topo da torre mais alta da cidade, SEMPRE vai ter uma voz como se estivesse a menos de dois metros de você dizendo o quanto esse rio é fedorento.

Puta merda, esse rio deve feder pra caralho mesmo. Mas nem de perto tanto quanto esse jogo, como você pode deduzir por essa minúscula amostra.


DOS CRIADORES DE DEUS EX, VOS APRESENTO LIXO EX

Deus Ex: Human Revolution, como eu havia comentado, é um ótimo jogo. Perdeu uma oportunidade de ouro para ser imortal e lendário mas isso não o faz ser um jogo menos do que bom. E uma coisa que li muito pesquisando sobre o jogo é que ele se inspirava muito no clássico Thief.

Thief é um jogo de 1998 com uma proposta muito diferente: você joga com um gatuno e deve se comportar como tal. O sistema de combate é propositalmente hediondo para não incentivar tal tratativa, em compensação o sistema de iluminação, movimentação e ruído é muito trabalhado para ser o jogo definitivo de ladinagem. Em 1998 isso realmente era muita coisa.

Para felicidade geral da nação a Eidos, a mesma empresa que lançou Deus Ex, resolveu fazer um reboot moderno de Thief em 2014. Como a trilogia original não foi feita com suporte joystick em mente (e eu não jogo com mouse e teclado), parecia a oportunidade perfeita para conhecer essa franquia com uma proposta tão diferente.

E o prologo do jogo não é ruim realmente. Apesar de ser chato como todo tutorial, mostrava que Thief tinha potencial para ser uma experiência muito divertida - ainda mais se aprendesse com os erros de Dishonored.

No tutorial você conhece seu personagem (jura?), Garret, que está correndo com sua aprendiz de roubarias impaciente. Garret diz que roubar é uma arte e matar é apenas um último recurso, sua assecla novinha não quer esses papos ultrapassados não, tá ligado, coroa? Ela quer é ser fodona e matar tudo, chegar chegando mesmo, morou?

Parece uma dinâmica interessante para uma história.

Mecanicamente o prologo parece uma mistura de Assassin's Creed  com Mirror's Edge. Isso quer dizer que é em primeira pessoa e envolve muito parkour, mas os telhados da cidade tem um design de fase bons para uma movimentação fluída.

Se isso é uma amostra do que vai ser o jogo, ok, eu posso gostar disso.

E então o prologo termina de uma forma misteriosa, e nosso protagonista acorda um ano depois sem memória do que aconteceu. Ok, protagonista sem memória, lá vamos nós né...

Mas pior do que o roteiro do jogo descambar para algo tão desinteressante que eu até parei de conferir se estava lá mesmo (se os diálogos do jogo a partir de 20 minutos no game foram todos substituídos por "blablabla whiskas sache blablabla" é algo impossível determinar, embora muito provável), em nenhum momento o jogo conseguiu ser tão fluído nos minutos iniciais do tutorial, que é o único momento em que Thief funciona de alguma forma.

Dali para frente o horror, apenas o horror.

Eu nem vou tentar...
BLABLABLA WHISKAS SACHÊ - THE GAME

A única coisa realmente extraordinária sobre o plot do jogo é o quanto ele é sem graça. Parece muito simplista dizer que nada interessante acontece em Thief, mas eu juro que sentei lá, forcei meus miolos o máximo que eu pude para achar um elemento da história que se destacasse minimamente que fosse e eu não consegui.

A narrativa de Thief varia entre o lento até o "considerado crime pela convenção de Genebra", e em nenhum momento consegue criar um personagem ou situação com a qual é possível se importar. A própria dublagem de Garrett soa apenas vagamente interessada no que ele tem a dizer, e o script nunca destaca alguém o suficiente para chamar sua atenção. Isso torna mmentos que deveriam ser satisfação, como a mal desenvolvida rivalidade dele com o melhor policial corrupto da cidade, ou a súbita revelação das motivações do vilão em algo maçante e tedioso.

No papel o jogo tenta misturar Akira e F.E.A.R. em um cenário steampunk. Como eles conseguem fazer isso ser chato e sem sentido é digno de uma tese.


LADRÃO. LADRÃO. SEU LADRÃOZINHO. LADRÃO!

A história ruim não seria um problema se o jogo fosse bom de se jogar. Deus Ex, por exemplo, tem uma história mais fraca que somaliano com anemia mas é um jogo gostoso. Esse não é o caso aqui.

Não ajuda muito que o próprio jogo não pareça muito interessado nas habilidades ladineiras de Garret. Claro, o design das fases foi (mal) projetado com furtividade em mente mas definitivamente o jogo não é o que você pode esperar.

Quando apresentamos a proposta de jogar com um mestre ladino imaginamos algumas coisas. Roubos impossíveis em locais inacessíveis passando por desafios que testam sua inteligência, preparação e acrobacias

Entre na mansão do Conde Pilafius, protegida 24 horas por dia por cães que disparam abelhas assassinas das suas bocas quando latem, roube o último ovo Faberger Belga e saia sem ser percebido, esse tipo de coisa é o que esperamos ao poder jogar com um MASTER THIEF.

Ao invés disso, nosso MASTER THIEF é só um ladrãozinho cracudo com cleptomania que coleta objetos brilhantes por onde passa. Sério, é só isso. Não tem nada de épico ou desafiador nos "roubos", você apenas anda por uma série de corredores sem vida e de vez em quando algo brilha na tela, você pega apenas porque sim. É tão emocionante quanto entrar na casa das pessoas em Skyrim e roubar a comida delas, afinal é por carregar 156 tomates e 237 fatias de queijo que jogamos Skyrim, afinal.

Nada de tesouros lendários, itens mágicos ou roubar de um filho da puta apenas para lhe ensinar uma lição. Não, nada disso. Você apenas rouba porque está no seu caminho e "Oooh, SHINY!". Aparentemente roubar 15724 porta-retratos (cada um valendo 1G) de pessoas miseráveis deve ser mesmo mais interessante que roubar o lendário ovo Alpino (sério, sabe quanto custa essa coisa?) do Lord Heartstonesson, o que eu sei sobre game desing afinal?

Eu talvez conseguisse imaginar uma abordagem mais brochante para o jogo, mas teria que me esforçar muito.
- A gente avisa pra ele que a cabeça ta aparecendo?
- Não dá, temos ordens de ignorar o cara até que ele pise nesse circulo de
luz com menos de 1m a nossa volta.

ISSO, MERGULHA NAS SOMBRAS, BOM, BOM...

O esqueleto de um grande jogo de furtividade está lá. A mecanica é sólida, o sistema de iluminação e som (tem garrafas no chão que fazem barulho se você chutar elas, por exemplo) dão indícios que era esse o caminho que o jogo queria seguir. O arsenal de movimentos de Garret é interessante, ele tem um em particular chamado "Swoop" que é meio como que se ele mergulhasse para a frente e te dá uma sensação muito gostosa de ser um predador nas sombras.

Está tudo lá... só o jogo não usa isso.

Não bastasse Garret ser um ladrão de galinha Zé Droguinha (eu não sei mais quem iria entrar na casa das pessoas para roubar seus talheres), o jogo se esforça o máximo que pode para ser o mais genérico possível no design de suas fases.

Em dado momento temos que invadir um bordel para roubar um livro valioso - bom. Momentos depois, o bordel se revela uma série de ruinas subterrâneas sem inimigos - péssimo. E isso que essa é uma das poucas missões de ladinagem mesmo, na maior parte das missões você tem que reunir pistas (no sentido de coletar do chão mesmo) para resolver o grande plot sobrenatural do jogo com o qual ninguém se importa.

Em algumas missões secundárias o jogo quase lembra do que deveria ser: você tem que invadir uma casa, desativar armadilhas e roubar um quadro. Em outra você tem que seguir um bêbado furtivamente para descobrir onde ele guardou uma coisa importante, mas essas missões são incidentais e certamente a pessoa que as escreveu foi sumariamente demitida (foi provavelmente o mesmo cara que escreveu os e-mails em Deus Ex). Em raros momentos o jogo te pede para usar as habilidades de Garret, e cada um desses momentos é seguido horas maciças e maçantes de gameplay ruim de ir do ponto A ao ponto B em um dos piores design de fase que eu já vi na minha vida.

Lembra quando eu disse que o prologo do jogo era fluído? Pois é tudo que o resto das fases de Thief não é. Olhe, apenas olhe, o mapa de uma das sessões da Cidade:


O mundo de Thief é uma série de corredores que não se conectam uns aos outros de forma intuitiva, ir do ponto A ao ponto B na Cidade não é uma aventura: é uma tarefa que seu chefe lhe passou as 17:45 de sexta-feira.

Eu não posso estressar o suficiente o quanto é burocrático e chato andar por estes mapas. O jogo tem uma fixação muito grande em fechar coisas atrás de você. Para abrir uma porta ou uma janela você tem que fazer um QTE e assim que você abre a maldita ela logo se fecha automaticamente. Então para sair você tem que faze ro QTE denovo. Na quinta casa "entravel" que eu passei eu já deixei pra lá, não valia tanta burocracia para roubar um par de abotoaduras e um isqueiro,

Como em Deus Ex, existem algumas maneiras diferentes de entrar em algum lugar. Diferente de Deus Ex, você não sente que nenhuma delas é realmente diferente. Garret entra no lugar (e a porta/janela/portinhola/alçapão fecha atrás dele, claro), ele anda por algumas salas, embosca alguns guardas (que tem a inteligência artificial de um crocodilo empalhado), as vezes tem um puzzle que se resolve sozinho - sim, o personagem te diz o que fazer antes que você tenha tempo para pensar - e é isso jogo.

Não há nada vagamente satisfatório ou divertido em Thief.

- Kylo Ren, você toma 86 de dano
- Eu sou um MASTER THIEF, eu sempre ando esperando
armadilhas!
O QUARTETO FANTÁSTICO DOS VIDEOGAMES

Esse reboot de Thief tem uma história de desenvolvimento medonha e quando você lê sobre ela entende porque não deveria ter esperado grandes coisas em primeiro lugar. O jogo mudou de mãos, de equipe criativa, de foco e de data de lançamento tantas vezes que você não poderia esperar que qualquer equipe fizesse um trabalho sério com esse jogo.

Assim como Quarteto Fantastíco é um filme interessante até o momento que você percebe que acabou o tempo e o orçamento (e dá para apontar exatamente no filme que momento é esse), Thief tem uma base sólida mas é coberto por infelicidade e dor.

Não apenas os bugs de áudio que eu descrevi no começo (que já serviriam para arruinar o jogo), mas existem tantas pontas mal polidas nesse jogo que é uma surpresa que ele sequer tenha sido lançado.

Apenas falando dos guardas eu poderia fazer um capitulo inteiro sobre eles. A IA dos guardas consegue ser pior do que Dishonored, não há consistência alguma. Os guardas não se importam se você salte e derrube metade do mundo na frente deles, mas vão investigar (sempre sozinhos) se você jogar o "item que faz barulho". Eu também recomendaria que a Cidade parasse de contratar guardas com déficit de atenção, levou apenas 15 segundos para um guarda desistir de me procurar depois de o corpo inconciente de seu colega (talvez ela deva ter aulas com o Coringa de como se contrata capangas). E eu ainda não descobri o que tem de tão interessante em ficar olhando paredes por vários minutos a fio, parece que todos os guardas tiveram uma infância muito similar a do Rei do Crime.

Todos os dois tipos de guardas, alias. Só existem dois tipos de inimigo nesse jogo (o guarda da espada e o guarda da besta).

E como eu disse, isso é só sobre os guardas. Cada aspecto do jogo tem uma lista tão longa quanto de coisas que faz errado.

Sim, Garret diz que o botão é praticamente invisível.


O que mais eu posso dizer? Thief é um péssimo jogo que sequer tenta ser sobre "ser um ladrão" já que a única coisa que Garret consegue realmente roubar é o seu tempo.



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