[GAMES] THE SONG OF SAYA (ou como eu aprendi a parar de me preocupar e amar a abominação cósmica)

| sábado, 11 de maio de 2019


Se você sabe alguma coisa ao meu respeito, sabe que se tem um roteirista que eu admiro é Gen Uroboshi. Esse cara é verdadeiramente uma das pessoas das quais podemos dizer que o mundo é um lugar mais legal por te-lo a bordo. Apaixonado por pactos faustianos e personagens tendo colapsos mentais totais, muito provavelmente você conheça o seu trabalho pelos excelentes animes Madoka Magika ou Fate/Zero.

Então um dia alguém chegou para esse japa que já tem as ideias totalmente fora da curva e disse: "E aí Gegê, cê já ouviu falar desse tal de Lovecraft?", ao que ele prontamente respondeu: "Depende, ele escreveu algum romance envolvendo lolis?".

Surpreso ao descobrir que a resposta era negativa, Uroboshi soube naquele momento que tinha um novo propósito na vida. E foi assim que nasceu a visual novel Saya no Uta.



O estudante de medicina Sakisaka Fuminori sobreviveu miraculosamente a um acidente de carro que matou toda sua família, mas não sem sequelas. Na verdade, o acidente que o deixou no limite da morte foi tão grave que exigiu que os médicos realizassem uma cirurgia cerebral complexa porém experimental. Enquanto o procedimento corre bem o suficiente, pelo Fuminori sobrevive, algo não estava certo quando eles fecham a cabeça do rapaz. Como resultado da operação invasiva, nosso herói teve danos permanentes no seu sistema neurológico, alterando efetivamente sua percepção do mundo ao seu redor.

Então, o que aconteceu exatamente? Bem, nosso bom amigo agora foi amaldiçoado a ver o mundo como se esse fosse o inferno. As paredes estão cobertas de entranhas asquerosas, as pessoas não são mais seres humanos, em vez disso, são manchas asquerosas de carne grotesca contorcida escorrendo pus e excrementos, e que falam em tons indescritivelmente doentios que são parte animal sendo abatido e parte demônios sendo estuprados. Fuminori tem que se esforçar para sequer entender o que eles dizem, e a experiência nunca é agradavel.

Com efeito, todos seus sentidos foram alterados. O mundo tem permanentemente cheiro de um lixão construído dentro do esgoto e deixado fechado durante cinquenta anos, o tato tem a sensação de estar pegando em um punhado de vermes, a comida tem gosto de guaraná Tuchaua. Você pegou a ideia.

Enquanto as coisas não são realmente assim, para Fuminori é assim que os seus sentidos registram o mundo.

Fuminori deitado em sua cama coberto com um lençol comum, do ponto de vista que ele vê as coisas.

 Sendo estudante de medicina, tão logo conseguiu entender o que estava acontecendo (sem desmaiar de pânico, o que levou alguns meses) Fuminori tinha uma boa ideia de que se contasse para alguém como ele realmente via o mundo passaria o resto da sua vida em uma ala psiquiátrica sendo estudado. Diante da sua situação, ele divisou o plano que qualquer um teria pensado no lugar dele: ficar quieto, e se suicidar tão logo tivesse a oportunidade.

E foi o que ele teria feito, não fosse o fato que enquanto estava no hospital ele encontrou uma garotinha bonitinha e limpinha que parecia, cheirava e soava completamente normal: Saya. De fato, ela era a ÚNICA coisa que parecia normal no mundo para ele.

Essa é Saya, porém apesar do nome do jogo ela não canta em nenhum momento. Me sinto enganado.


Tão logo sai do hospital, Fuminori e Saya vão morar juntos, e é nesse ponto onde a história começa.

OK, BIZARRO, MAS O JAPÃO PODE FAZER PIOR QUE ISSO...

... onde descobrimos que Saya também é uma loli ninfomaníaca obcecada com sêmen e o lepo-lepo rola solto.

É... EU ME SENTIRIA CONFORTÁVEL SE ELA TIVESSE UNS ... SEI LÁ... DEZ ANOS MAIS... MAS, NOVAMENTE, O JAPÃO REALMENTE JÁ ME JOGOU OSSOS PIORES QUE ESSE... EU ACHO...

Eventualmente, entretanto, lendo o texto e pegando deixas de dicas, uma pergunta relevante começa a surgir na cabeça do leitor: se o Fuminori vê tudo asqueroso e vê a Saya como normal... então como é a aparência real dela?

AH... É... ESPERA, EU ACHO QUE É ... 
EEEEEEEEEEEEEEWWWWWWWWWWWWWWWWWW! 
DEUS ESSA PORRA É MUITO FODIDA DA CABEÇA! QUAL É O TEU PROBLEMA, URUBOSHI?!? O QUE TEM DE ERRADO CONTIGO?

Pois é. Agora você está começando a entender o quão fodido. E esse é só o começo da viagem, as coisas só pioram daí pra frente.

Nas mãos de um escritor menos habilidoso, The Song of Saya seria um prato cheio para adolescentes revolts que adoram chocar por chocar (com efeito, um dos meus pesadelos recorrentes se tornou imaginar esse jogo escrito pelo Zack Snyder) já que ele aborda temas como canibalismo, mutilação, estupro, escravidão sexual, além da já citada questão que nossa sexualizada protagonista ter o corpo de uma menina de dez anos. The Song of Saya não é para os fracos de estômago ou pessoas que não tem um certo jogo de cintura com a sua moralidade, isso é certo.

Porém, como eu disse, Song of Saya não é um Mirai Nikki ou um Elfen Lied que empilha shock value apenas pq saporra não vai se vender sozinha. Não. Gen Uroboshi sabe o que está fazendo (na maior parte do tempo, alguma parte do conteúdo sexual é meio desnecessário sim).

Eu digo isso por vários motivos. Em primeiro lugar, o jogo nunca é graficamente explicito com nada (bem, exceto com o sexo pq saporra não vai se vender sozinha, né?), deixando as piores cenas a cargo da imaginação do leitor com descrições vagas que evocam um sentimento de "não, espera... ewww...", mas nunca é realmente grosseiro ou vulgar.

Por exemplo, honestamente eu não posso enfatizar o suficiente o quanto é boa a cena de abertura de Saya No Uta. A escrita é concisa e eficaz, e é um exemplo inquietante do que novelas visuais podem realizar que livros comuns não podem. A distorção de áudio, a faixa de fundo lamentável e a arte que imita uma fotografia sobreposta que me cegam de manchas de branco puro, se combinam para criar uma sensação palpável de náusea.

E então, em seguida, essa mesma cena que parece saída de um pesadelo que um demônio teria, é mostrada novamente pelo ponto de vista das pessoas comuns... e eles estão apenas conversando sobre o que vão fazer nas próximas férias. É lindo. Bem, na verdade é horrível, mas você entendeu a ideia.




 Como é o cenário do jogo quando mostrado pelo ponto de vista de Fuminori.

 Como é o mesmo cenário quando mostrado pelo ponto de vista dos outros personagens

Grande parte do mérito disso vem por conta da trilha sonora do jogo. A trilha sonora de The Song of Saya desempenha um papel fundamental na forma como a narrativa é experimentada. Os efeitos sonoros acentuam os sons repulsivos da carne humana sendo retorcida, os sons de gosma ou os guinchos distorcidos na forma como Fuminori vê o mundo. Mais importante que isso, no entanto, em quase todas as faixas da música, há uma sensação profunda de tristeza ouvida no fluxo suave e sedoso de instrumentos lamentadores que brincam com clareza e precisão meticulosa. O OST torna toda a provação ainda mais opressiva e desconcertante, tornando os momentos tensos todos os incidentes tensos e trágicos ainda mais dolorosos.

E essa é a chave aqui.

Eu falei sobre o acerto da trilha sonora ser triste porque o que realmente faz essa visual novel digna de nota é o quanto você consegue sentir empatia pelos personagens. Não me me entenda errado, a espiral de loucura na qual a saga de Fuminori e Saya é revoltante e errada em todos os níveis que uma coisa pode ser errada. Na verdade, tenho certeza que Uroboshi acabou de inventar dois ou três níveis novos. MAS... mas eu consigo entender porque eles fazem o que fazem, porque as coisas acontecem dessa forma.

Diabos, eu realmente não posso dizer que no lugar deles não teria feito da mesma maneira.



Me deixe colocar de outra forma: da forma como o jogo conta a história, ela é muito mais uma tragédia do que uma história de terror mesmo que se você ler as coisas que acontecem na história fora de contexto até o Djeizu diria "ai nega, para!".

O que Saya No Uta desempenha com mais eficácia é justamente a noção de inocência. Nós nos identificarmos com Fuminori porque ele é inocente, ele não tem controle sobre a situação em que se encontra. Nós sentimos por Saya porque, enquanto ela pode ser um monstro (é fortemente implícito que ela literalmente come bebês) ela é a única da sua espécie e não quer ficar sozinha. A solidão que ela sente é genuína, e dadas as circunstâncias Fuminori é a única pessoa que pode aceita-la pelo que ela é devido a condição dele, e isso é completamente compreensível.

Tanto que é apenas sob a influência de Fuminori que ela realmente se torna mal-intencionada. Ela é uma predadora amoral no começo da história, mas ao final ela se tornou verdadeiramente imoral, machucando e retorcendo seres humanos por ciúmes ou apenas por crueldade porque isso é o que faz Fuminori feliz. E mais uma vez, dado como ele enxerga os seres humanos é completamente compreensível o nível de ojeriza que as pilhas guinchadoras de merda, pus e órgãos expostos causam nele.

Mesmo o eventual antagonista da história parece mais irritado com Fuminori por ele tirar sua inocência sobre o quão perverso o mundo realmente é do que por toda a coisa de assassinar e comer.

O que nos leva ao ato final da história, onde se mostra uma obra inteiramente Lovecraftiana em sua essencia. Sim, eu sei, "Lovecraftiano" é uma palavra que é usada demais, e muitas vezes é usado para descrever qualquer trabalho que tenha tentáculos e um pouco de limo, mas Saya No Uta é verdadeiramente Lovecraftiano em um nível estético, temático e em sua estrutura narrativa.



O ato final, EXATAMENTE como nas obras de Lovecraft é sobre pessoas comuns investigando verdades que podem destruir a sanidade de alguém apenas ao serem compreendidas. As referencias a obra de Lovecraft são bastante presentes na construção da história, e o "que é" a Saya e como os personagens humanos tentam resolver o problema que Saya e Fuminori se tornaram remete a muita coisa de O Caso de Charles Dexter Ward', 'O Chamado de Cthulhu', 'A Tumba', e - principalmente - 'A Cor que Caiu do Espaço'. Então quando eu digo que é um conto lovecraftiano não é apenas preguiça de descrever (como dizer que um jogo "É o Dark Souls do genero X", que raiva eu tenho disso). Eu digo isso porque essa realmente é uma história sobre a fragilidade da sanidade, da pequenez do nosso mundo em comparação com o cosmos e, claro, daquele velho ditado: a ignorância é uma benção.

Na parte de gameplay, existem apenas duas escolhas a serem feitas durante o decorrer da história de modo que isso é mais uma leitura do que qualquer outra coisa. Se eu tenho alguma reclamação sobre o jogo, é que ela é uma daquelas VN que o texto ocupa a tela inteira ao invés de só a parte de baixo, prefiro o estilo mais tradicional que permite ver as imagens sem precisar pausar o texto para ver a tela.



Gen Uruboshi é famoso por  suas obras que terminam de forma pesada como Fate / Zero, Psycho Pass e até mesmo Kamen Rider Gaim, porém é em Saya no Uta, que mostra suas totais habilidades de escrita. Saya no Uta tem, obviamente, classificação 18+ por suas cenas de gore e sexo, e não é recomendado para pessoas impressionáveis ou sensíveis. No entanto, é um jogo obrigatório para qualquer fã de novelas visuais de horror / tragédia / mistério, pois mantém sua audiência na ponta da cadeira durante todo o jogo. O jogo contém conteúdos muito pesados incluindo, entre outros: psicose, assassinato, canibalismo, sexo com monstros, estupro, pedofilia, tortura, tentáculos, muito e muito gore e sangue. Mas com elegancia. Mais ou menos.
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