É muito fácil olhar para os animes e mais frequentemente sim do que não pensar que esses japoneses doidos não tem limitação alguma e que eles podem colocar qualquer merda que vier na cabeça deles em uma animação - ao contrário das animações ocidentais que tem que cortar um dobrado para não ofender os valores da família tradicional bolsominion.
Obrigado por ilustrar meu ponto (e me traumatizar para a vida toda), Eromanga-sensei |
Enquanto PARECE que os animes podem fazer absolutamente qualquer merda e se safar com isso...
Obrigado por arruinar meu ponto (e minha fé na humanidade), Eromanga-sensei |
... na verdade os animes tem que trabalhar dentro de limites muito bem definidos de nicho. Mesmo que esses limites sejam "minha irmã de 9 anos é isolada do mundo e se tranca no quarto e eu vou fazer tudo que eu puder para que ela continue assim para sempre só para ela ser minha waifu e só minha"... deus esse anime é tão errado... tão errado... mas enfim, os limites estão lá codificados, tipificados, especificados.
Um anime tem que lidar com as limitações muito especificas do seu nicho particular e as limitações da sociedade japonesa. Pode parecer que não tem nenhuma, mas pense nisso: se for julgar só pelos animes, adolescentes japoneses não namoram (no máximo gostam de alguém mas não é como se fossem admitir nem nada, baka!), não tem problemas de gravidez na adolescencia ou nenhuma duvida muito complexa sobre seu lugar na sociedade. Talvez você não querer apenas ir direto do colegial para a faculdade e daí para trabalhar na mesma empresa a vida inteira (provavelmente a mesma que seu pai trabalha) não seja um problema para os adolescentes japoneses? Talvez eles não sintam solidão, duvida ou uma crise profunda de niilismo neste mundo sem valores definidos?
Não tem NADA sobre o que os artistas queiram falar?
Não tem NADA sobre o que os artistas queiram falar?
De alguma forma, eu acho isso bem pouco provável.
Não existe rap no Japão? Sabe, a coisa de jovens que querem transformar as mazelas que eles veem todo dia em música? Não existem punks? Não existe gente tão perdida que se perde nas drogas? Então porque não vemos animes sobre isso nenhuma dessas coisas, afinal?
Pois é, quando você pensa sobre isso, percebe que os criadores de animes não tem liberdade para fazer o que eles bem entenderem. Mesmo que eles possam fazer meninas de 9 anos que gostam de baixar a calcinha de outras meninas de 9 e lamber suas partes apenas porque sim.
Mas... e se eles pudessem? E se eles tivessem a liberdade de fazer um anime tão subversivo, tão questionador que coloque o dedo na ferida da sociedade e questione porque nós fazemos o que nós fazemos? Da onde vem as "verdades" que "todo mundo" sabe? O que nos define como seres inteligentes e o que é necessário para perder isso?
Um anime que fosse sobre o verdadeiro espirito do Hip Hop e de fazer as perguntas que realmente importam. Um anime que pudesse usar toda violencia, sexo e poder de choque que só uma animação pode oferecer para provar seu ponto. Em outras palavras, um anime que fosse arte.
Não que os japoneses não queiram fazer isso (muita da gente que trabalha com animes são artistas em sua definição da palavra), mas eles apenas não podem. Se eles fizessem algo tão pesado, tão visceral, profundo, não venderia DVDs o suficiente, (certamente) não passaria na TV e certamente não venderia mangas ou light novels.
Mais facil apenas continuar com a boa e velha industria de lolis mesmo, todo mundo tem boleto para pagar no fim do mes - mesmo os japoneses.
Ok, acho que essa não é uma cena de Eromanga-sensei... |
Mas... e se eles não tivessem que se preocupar com isso? E se uma empresa completamente de fora dessa cultura lhes dessem um cheque em branco para eles fazerem o que bem entenderem, serem tão artisticos quanto quiserem ser, serem tão crus quanto puderem ser? E se alguém pagasse por um anime para maiores não porque tem violencia ou sexo (embora tenha isso também), mas fosse sobre temas verdadeiramente adultos?
Você pode argumentar que, em uma industria que dá tão pouco dinheiro em um país em recessão a mais de 30 anos graças ao seu maravilhoso governo, ninguém é louco de investir dinheiro nisso. O que é verdade. Animes assim não existem não porque os japoneses não querem, mas porque o negócio não funciona assim. Quando seu publico é basicamente composto por adolescentes e adultos com mentalidade de adolescentes, você não pode ir tão mais longe de peitos e poder de luta do que Steven Universe pode ir com não heteronormatividade. Existe limites de até onde você pode ir.
A não ser que alguém completamente de fora pague a conta.
E é aqui onde a Netflix entra. A Netflix, em seu departamento de animações, tem o melhor dos dois mundos: animações japonesas são extremamente baratas de fazer comparadas com animações ocidentais, então para os padrões japoneses a Netflix gasta um dinheiro com animes que eles não poderiam sonhar em seus sonhos mais loucos. Para a Netflix, por outro lado, uma temporada inteira de anime é tão barato que dá 2 ou três episódios de Castlevania ou Volton. Todo mundo ganha.
Com um diferencial: a Netflix não segue as regras da sociedade japonesa. Ou dos otakus. Ou de ninguém. Eles literalmente tem que ter conteúdo para todo mundo, então eles não tem regra a não ser que seja algo relevante, seja bom, seja algo que faça diferença.
Então eles literalmente ofereceram um saco de dinheiro para animadores japoneses (ou troco de pinga, da perpectiva ocidental) fazerem basicamente aquilo que eles sentiam que precisavam falar.
E a escolha de adaptar Devilman não foi nem um pouco aleatória. Devilman é um manga de 1972, e não apenas qualquer manga: é um dos mangas mais importantes de todos os tempos e que nunca tinha tido um adaptação em anime a altura. E porque Devilman é um manga tão importante? Porque ele é um dos primeiros mangas (se não o primeiro, certamente o primeiro a ser relevante) sobre desconstrução de genero.
Dude, é anos 60, pega leve |
A história é sobre um garoto chamado Akira Fudou que descobre um demonio preso no gelo e, para salvar a Terra dos outros demonios, se funde a ele e ganha poderes de Devilman para combater o mal. Como todos os manga shounen na face da Terra, não? Bem, é isso que seu autor Go Nagai quer que você pense inicialmente... para então abordar isso de uma forma diferente.
Fudou ganha poderes para derrotar o mal... o que é o mal? Ele ganha poderes de um demonio para enfrentar outros demonios e proteger a humanidade, mas porque exatamente a humanidade tem mais direito a existir do que os demonios? Se eles são seres inteligentes e capazes de sentimentos (embora diferentes dos nossos) ao invés de ser apenas uma poça de maldade encarnada, porque eles são tão maus assim? Porque nós somos tão bons? E só não somos, então o que nos dá mais direito?
Adicionalmente, Akira não é seu tipico herói shonen que luta pela amizade e pelos discursos. Ele é um humano lutando contra um demonio dentro do seu corpo que tenta tomar o controle o tempo todo, então isso acaba influenciando sua personalidade de formas não-bonitas as vezes.
Go Nagai usa de violência e gore PRA CARALHO no seu manga (sério, não é para os de estomago fraco), mas não porque ele é um safadão que quer chocar por chocar. Ele quer provar um ponto. Ele quer contar uma história que só pode ser contada usando violencia e sexo PRA CARALHO. É tipo Clube da Luta dirigido pelo Tarantino.
Pra um manga dos anos 60, Go Nagai explodiu cabeças. Tanto que quando a Toei adaptou para anime, nos anos 70, eles tiveram que fazer uma versão beeeeeem family friendly com Devilman sendo só um cara que se transforma e derrota o monstro do dia.
Pois é. Aí está o seu "ai anime pode tudo".
Go Nagai precisou esperar cinquenta anos para ver sua obra animada fielmente. E, pelas coxas de Rikka depois de um dia de academia, valeu cada segundo da espera.
Se tem alguma coisa com que eu posso comparar Devilman Crybaby, é com Nier Automata. Não, não tem nenhuma androide de lingerie, embora tenha mais sexo do que você verá em qualquer anime não-hentão na sua vida. Não, o meu ponto não é esse e sim que Devilman Crybaby é um anime sobre o que nos faz ser humanos, sobre o nosso melhor e nosso pior.
Nenhuma outra espécie nesse planeta é capaz de ir a extremos tão diferentes. De alguma forma os seres que conseguem fazer um telescópio do tamanho de um planeta para tirar uma foto de um buraco negro, que inventaram os cachorros, são a mesma espécie que inventou religiões e formas desnecessariamente elaboradas (e lentas) de tortura. Nós podemos a coisa mais incrível do universo e ao mesmo tempo a mais abjeta. E Devilman Crybaby, assim como Nier Automata, é um anime sobre isso.
Sobre homens que são como demonios, e demonios que são como homens. E Deus que é sempre um cuzão porque essa é a única conclusão moral lógica da existencia de um Deus. Sobre porque as pessoas são como são e como a sociedade REALMENTE funciona. É um anime sobre música eletronica sem sentido e rap que vem do fundo da alma mas ninguém ouve. Isso tudo em uma animação que não está preocupada com nada senão ser apenas arte e com toda dose de violencia e sexo que essa história VERDADEIRAMENTE PRECISA para ser contada (e não apenas porque vai atrair otakus punheteiros).
Devilman Crybaby é tudo aquilo que os animes não podem ser.
Apenas para encerrar, eu gostaria de falar dessa cena em particular. Normalmente eu não faço isso, mas esse em particular - a cena pós créditos do penúltimo episódio - é um dos momentos os mais pungentes dos animes de todos os tempos, e um que verdadeiramente me fez chorar como um bebê (o título do anime faz sentido agora) e eu gostaria de expressar porque. Spoilers adiante.
A parte mais bonita a respeito dessa cena é que, como todos os sonhos, ela é uma mentira. A composição eletronica interpolada, o fundo dourado sedutor, a letra retitiva que parece uma canção de ninar, esta cena não é nada senão um sonho.
Logo antes dessa cena o episódio termina com Miki sendo brutalmente assassinada por humanos (não demônios), toda essa sequencia é apenas um sonho de Akira que jamais vai se tornar realidade. E essa, paralelamente, também é a reprodução mais fiel possível da condição humana.
A parte mais bonita a respeito dessa cena é que, como todos os sonhos, ela é uma mentira. A composição eletronica interpolada, o fundo dourado sedutor, a letra retitiva que parece uma canção de ninar, esta cena não é nada senão um sonho.
Logo antes dessa cena o episódio termina com Miki sendo brutalmente assassinada por humanos (não demônios), toda essa sequencia é apenas um sonho de Akira que jamais vai se tornar realidade. E essa, paralelamente, também é a reprodução mais fiel possível da condição humana.
Vivemos em um mundo onde a paz é literalmente impossível. Existimos em uma realidade cruel de recursos limitados onde cada forma de vida só consegue existir tirando algo muito importante de outra. Seja alimentos, seja atenção, seja liberdade, a natureza é um grande jogo de soma zero. Ergo, se Deus existe ele é um cuzão incomensurável. A paz é impossível, já que a violência é a única forma de existência possível nesta realidade.
Porém... isso não nos impede de tentar. Mesmo que seja temporário, mesmo que seja apenas durante alguns anos, mesmo que seja apenas por uma noite. A paz é um sonho impossível, mas é um sonho agradável, e a luta por uma paz temporária é uma luta digna de sacrifício. Essa cena representa justamente isso, com Akira sonhando com um mundo onde ele e Miki podem ficar juntos. É só um sonho, claro, mas por essa noite terá que servir.
Como a letra da música diz "apenas essa noite, me permita dançar". Amanhã será um dia terrívelmente dificil, mas esta noite, apenas esta noite me deixe sonhar. Lá fora o mundo é um lugar horrível e cruel, onde os fracos são estraçalhados e seus nomes esquecidos. Mas isso não nos impede de tentar fazer com que a vida seja agradável, não importa se seja apenas por uma noite, não importa se seja apenas por algumas horas. É uma mentira, claro. Nós fazemos o melhor que podemos, mas no grande esquema das coisas a bondade e o amor são apenas uma mentira que dura tanto quanto um sonho.
Mas esta noite, apenas por esta noite, este sonho é tudo que temos.