[SÉRIES] DOCTOR WHO: o 5º Doutor (ou aquela vez em que o Doutor meio que mais ou menos estava lá)

| domingo, 3 de março de 2019


Quando o Doutor regenera, o universo sempre se torna um lugar um pouco menos iluminado por conta disso. Ali termina uma história totalmente única que jamais se repetirá novamente em todo contínuo do tempo e do espaço. Isso porque o Doutor, em cada uma das suas catorze encarnações, é uma composição bastante única que nasce de um dialogo entre o ator, o showrunner da série e a recepção do público.

Mesmo que seu substituto seja brilhante, mesmo que seja a hora de partir ("Doctor, i let you go"), a despedida sempre é um momento triste.

Esse é o problema imediato da regeneração e todos os fãs de Doctor Who estão mais ou menos cientes disso. Existe um outro, entretanto, que é bem menos falado a respeito porém é tão sério quanto: até o novo ator encontrar o tom de como será o "SEU" Doutor, bem, é um saco. Isso porque Doctor Who sem o Doutor é tão interessante quanto Star Trek sem o Spock - enquanto tecnicamente "pode" funcionar, e algumas vezes eles fazem isso acontecer, na prática não é desse jeito que a série foi pensada.

Então logo após a regeneração leva alguns episódios (na melhor das hipóteses) ou mesmo uma temporada inteira até acertarem a mão no que faz o Doutor funcionar. O que eu queria aproveitar a oportunidade para fazer um parenteses dizer que a Jodie Whitaker está fazendo um trabalho espetacular, poucos atores em quase 60 anos da série se viraram tão bem para montar as fundações de como será o seu Doutor em tão pouco tempo. Mas divago.


Eu dizia que existe um caso, entretanto, que é diferente de qualquer coisa que eu já tinha visto até então. Houve uma vez que o Doutor não levou alguns episódios para encontrar o seu tom, nem mesmo algumas temporadas: foram necessários ANOS até eles acertarem a mão. Com efeito, eles só realmente conseguiram fazer  algo digno do que o Doutor deve ser faltando três ou quatro arcos para terminar o ciclo do Doutor.

Essa é a (trágica) história dos anos de Peter Davidson como o Quinto Doutor.

Mas vamos começar do começo: Peter Davidson tinha em suas mãos a missão mais dificil da história da televisão dos anos 80. Porque ele não tinha que substituir alguém tão carismático, poderoso e  com um controle de cena tão absoluto quanto Tom Baker, não, era muito pior que isso. Ele tinha que substituir um Doutor interpretado por este Tom Baker e com roteiros escolhidos, editados e muitas vezes até escritos por Douglas Adams. Fucking Douglas Adams foi o showrunner de Doctor no final dos anos 70, como diabos você pode ser o cara que substitui um combo desse tamanho?


Então eu sou o primeiro a reconhecer que essa tarefa era dificil pra caralho, imagino que deve ter sido como os jogadores da seleção brasileira de 74 tendo que substituir Pelé e sua turma depois da copa de 70. E, em defesa da BBC, eu realmente acho que eles tiveram as ideias certas a respeito disso.

Ao contrário do Quarto Doutor, que era um tanto quanto egocentrico em seu charme flamboiante e que, quando sua paciencia esgotava, não hesitava em levantar a voz para informar como as coisas iriam funcionar dali para frente, o Quinto Doutor tinha uma composição de personagem bem mais... britânica.

Ok, claro, a roupa dele é basicamente um uniforme de críquete, então dã, no shit Sherlock.



Sim, mas não é só disso que eu estou falando. Se eu fechar meus olhos agora e imaginar a figura do Tom Baker, eu vou pensar nele no centro da tela, com os braços abertos, um sorriso maniaco e dizendo algo que pode ser muito imbecil ou muito inteligente (não raramente, ambos ao mesmo tempo). Certo, agora se eu fizer o mesmo e pensar no Quinto Doutor... provavelmente ele estará no canto da tela, de perfil, sem saber o que fazer com as mãos e provavelmente pensando em uma forma de resolver o problema sem precisar as coisas para os primitivos (o que, para um Time Lord, é basicamente 98% do universo). Percebe meu ponto aqui?

Eu realmente tenho muita dificuldade em lembrar do Quinto Doutor discutindo com alguém. Quando ele estava certo e os outros errados, e os outros mostravam os argumentos (frequentemente errados, crueis ou apenas mal informados) ele apenas davam um sorriso sem graça de "aham, Claudia, senta lá" e concordava o suficiente para a pessoa deixa-lo em paz - para então ele ir sozinho resolver as coisas do seu jeito.

"The Five Doctors" é um especial de uma hora preparado em comemoração aos 20 anos da série, que conta com a participação dos cinco Doutores (embora Tom Baker apareça apenas em cenas não utilizadas de Shada e o já falecido William Hartnell tenha sido substituido por alguém que completamente não entendeu o personagem - ou seja, igual ao especial de 2017) e a participação especial de vários companions... e é impressionante quanto o Quinto Doutor é deixado de lado nessa história

Sabe, esse tom do Quinto Doutor é mais dificil de descrever do que eu pensei inicialmente que seria. Não é bem desprezo, porque ele ainda é o Doutor, ele se importa e ele genuinamente tenta ajudar todo mundo. Eu diria que é arrogancia, mas essa palavra tem uma interpretação diferente do que eu quero transmitir.

Vamos ver se eu consigo colocar as coisas assim: quando você dá ordens para o seu cachorro (sair de cima do sofá, ou não fazer xixi em determinado lugar, por exemplo), você não explica para ele porque você está dando a ordem. Seria idiota, e ele biologicamente não tem capacidade entender a explicação, apenas o cérebro dele não é desenvolvido o suficiente para isso. Isso não quer dizer que você não o ame, ou mesmo que considere que cachorros são, para todos os efeitos, melhores do que seres humanos (o que é o meu caso). Quer dizer apenas que é assim que as coisas são.



Não é desprezo (talvez seja, mas novamente, não no sentimento que o adjetivo evoca ao ser aplicado a alguém), não é se importar, é apenas... qual o ponto de discutir esses primitivos que acham que já sabem todas as respostas do mundo (que normalmente envolve usar objetos sólidos projetados em alta velocidade contra o corpo de alguém) quando eles sequer conseguem entender que o tempo não é uma rígida progressão de causa para efeito, mas na verdade de um ponto de vista não linear, não relativo, ele é mais como uma grande bola de uma grande coisa Espaço/Tempo... Coisada.

Então, teoricamente, eu consigo imaginar onde eles queriam chegar aqui. O problema é que, na pratica, a diferença entre um Doutor quieto porque ele não sente que precisa discutir e um Doutor completamente apático na tela é muito pequena. Dependendo de como o episódio é escrito, nenhuma, na verdade.

Na maior parte dos episódios a sensação que você tem que é Doctor Who tem um Doutor tanto quanto a WWE tem um campeão universal com o Brock Lesnar usando o cinturão: ele está lá no papel (e certamente no contracheque), mas para efeitos práticos o cargo está vago.

É apenas nos últimos arcos desse Doutor que eles conseguiram encontrar um ponto de equilibrio. No arco. A cena que define esse momento para mim é no arco Frontios (a quatro arcos do final deste Doutor) quando um cientista não quer ajudar pessoas feridas por uma questão de escassez de recursos.

Quando sua ex manda um "oi sumido" no Facebook e, bem, não é como se você estivesse pegando ninguém mesmo...


O Doutor então apenas explica em poucas palavras porque a linha de racicionio dele estava cientificamente errada. Honestamente, eu não que tenha entendido nada do que ele disse, mas ele falando pareceu bastante cientifico e bastante simples (pelo menos do ponto de vista do Doutor). Ao que o cientista responde apenas com um "oh... eu... eu apenas nunca tinha pensado nisso...".

Nesse mesmo arco, o Doutor está puto da cara (tanto quanto um britanico pode ficar irritado, isso é) com um militar que está tomando decisões idiotas, então na enfermaria ele dispensa cuidados médicos com a frase: "If anyone asks if I was here, you can tell them I came and went like a summer cloud."

Elegante, genial, muito Doutor! Quer dizer, eu não tenho certeza mas acho que isso foi uma queimada... mas é isso! O Doutor não precisa levantar a voz, ele não precisa de um bordão, ele não precisa nem de sacadas inteligentes boladas pelo Douglas Adams, mas ele precisa interagir com as pessoas (ou aliens, ou androides, ou pedaços de plástico sentientes porque isso é Doctor Who) e se ele vai resolver as coisas sendo tecnicamente preciso, tudo bem por mim! Isso funciona também! Apenas pelo amor da Matrix de Gallyfrey, homem, faça alguma coisa!

Porém essa mudança de atitude veio, literalmente, tarde demais. Isso não quer dizer, contudo, que o período do Quinto Doutor não tenha boas coisas ocorridas sob sua vigencia, pelo contrário na verdade.

 Tegan é a principal companion desta era, e honestamente uma das melhores. Quer dizer, considerando como ela lida com o fato que TUDO que pode dar errado pode e potencialmente vai acontecer com ela ou ao redor dela. Ô mulher azarada!

Se o Doutor por si só não era a grande atração da série, o mesmo não pode ser dito do roteiro dos episódios. Foi nesta fase entre 1982 e 1984 que Doctor Who mergulhou de cabeça em ser uma série sci-fi hardcore. Não que não existissem episódios complicados de entender antes, mas eles sempre foram sempre exceção ou produto de escrita ruim por parte dos autores. Neste período, no entanto, era pratica comum que os dois primeiros episódios do arco fossem apenas dedicados a entender o que estava acontecendo, e apenas nos dois ultimos o Doutor poderia fazer alguma coisa a respeito.

Um exemplo perfeito disso é o arco "Snakedance", um arco que se passa em um planeta com um lore tão rico entre o que é superstição e o que foram fatos históricos que você pode achar que algo tão bem trabalhado foi pego emprestado de alguma outra midia onde teve anos sendo desenvolvido. Nesse mesmo arco temos uma serpente gigante sendo explodida através de uma bola de cristal, algo que eu sempre posso encontrar tempo para apreciar.

Ou então "Enlightment", que começa com a TARDIS saindo dentro de um navio do século XVIII, mas que é um ambiente fechado e  a tripulação precisa de trajes espaciais para ir até o deck, então também pode ser um submarino, ou mesmo estar no espaço. What da fuck is going on? Castrovalva é sobre um planeta-spa que acontece de ter as leis da física de um quadro de Escher.

Turlough foi um companion estranho. Inicialmente ele começou como um humano que fez um pacto com o Black Guardian, se infiltrando na TARDIS como companion para matar o Doutor. Eventualmente ele se livrou disso e... então sofreu um retcon e ele do nada passou a ser na verdade um alien que estava exilado na Terra... mas oi?

Então, de certa forma, os roteiros de Doctor Who nunca foram tão interessantes - infelizmente, na mesma medida que o Doutor não foi.

Que conste que eu não estou culpando o Peter Davidson por isso, foi claramente um problema de roteiro já que em seus últimos arcos ele entrega uma atuação totalmente no nível esperado do Doutor, em destaque especial para o último arco, The Caves of Androzanni. Esse arco, em especial, é um daqueles em que tudo é quase perfeito: temos um planeta com uma trama política interessante (sem ser desnecessariamente complexo) envolvendo corporações, revolucionarios, traficantes de drogas e armas. Temos monstros em fantasia de borracha, temos coisas esquisitas acontecendo, temos um vilão trágico (inspirado no Fantasma da Ópera) e no fim o Doutor se sacrifica para salvar uma garota que ele mal conhecia. Enfim, temos Doctor Who como Doctor Whi pode ser em seu melhor.

O Quinto Doutor foi o Doutor que mais perdeu muitas pessoas até então. O Doutor mais gentil sempre cercado de tanta morte. Em seu último episódio, o 5º Doctor decide que basta e que ele não vai perder mais ninguém; ele não vai perder a Peri. Mesmo que ele não a conheça, mesmo que ela seja apenas uma humana. Porque é o certo a ser feito.  Então ele luta para salvá-la, dando sua vida no processo.

Eu diria que é o meu arco favorito desse Doutor, e realmente me fez imaginar que tipo de histórias incríveis nós teriamos tido se eles tivessem encontrado esse tipo de tom desde o começo. Quando você pensa sobre o período do Quinto Doutor, chega a estranha conclusão que todos os ingredientes estão lá para a era ser melhor, mas eles simplesmente não funcionam juntos como deveriam.

O orçamentos é decentemente administrado e o show parece razoavelmente bem feito na maior parte do tempo. As tramas dos episódios eram interessantes e o ator principal era capaz de obter um bom desempenho quando tentando na direção correta, e ainda assim, apesar de tudo isso, a era como um todo passa uma sensação de que não funcionou

Existe uma lenda urbana que durante a cena de regeneração do Quarto Doctor no Quinto, ela teve que ser re-filmada várias vezes porque Tom Baker, em vez de entregar a frase “It’s the end, but the moment has been prepared for", Ficava dizendo: "Adric, you’re a cunt and always will be". Enquanto isso, obviamente, não é verdade, a existencia desse mito mostra como o fandom se sentia a respeito do garoto companion... o que é totalmente justificado. Imagine o Wesley de Star Trek: A Nova Geração, porém com o diferencial que ele sempre passa para o lado dos vilões na primeira oportunidade que tem. Adric, you’re a cunt and always will be.

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No geral, eu dificilmente diria que a era do Quinto Doutor poderia ser chamada de um desastre. É só que, na maior parte, meio que apenas está lá. Eu simpatizo com as ideias tentadas, mas não com a execução. Por isso mesmo eu fiquei genuinamente triste quando este Doutor se foi. Ele poderia ter sido tão melhor, e mesmo que três anos já tenham se passado eu sinto que nós estavamos apenas começando a nos conhecer de verdade. Meu Doutor foi embora e eu mal o conheci, não é justo.

E bem, quando o Doutor regenera, o universo sempre se torna um lugar um tantinho menos iluminado por conta disso.
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