[GAMES] ORWELL: Keeping an Eye on You (ou Dick Cheney Simulator 2018)

| segunda-feira, 25 de março de 2019


Em novembro de 2016, o governo britânico aprovou o Regulation of Investigatory Powers Act (RIPA) que, resumidamente, é uma série de poderes intrusivos de espionagem que vão muito além de colocar cameras das ruas monitorar os cidadões. Resumidamente, o governo britanico se deu carta branca para grampear, seguir, hackear, fazer vigilancia policial em qualquer um que eles considerassem ameaça nacional. E os termos do que constituem uma "ameaça nacional" são beeeeeem vagos. Pouco surpreendentemente, por exemplo, o governo usou isso para rastrear e identificar fontes dos jornalistas que tinham opiniões... pouco amigaveis ao governo. Reviravolta inesperada, huh?

Essa lei passou logo depois da série de ataques terroristas em Nova York, Madri, Londres e em outros lugares no começo dos anos 2000, como parte de uma onda em que muitos países usaram os atentados terroristas como desculpa para se dar carta branca para fazer o que bem entendessem. Claro, o ato executivo de Tony Blair ainda é brincadeira de criança perto do Patriot Act de Dick Chenney, que foi o mestre em usar o terrorismo a seu favor, mas ainda sim foi uma grande coisa para a população britanica.

Orwell é um jogo fortemente inspirado na RIPA e nesse admirável mundo novo em que governos podem tudo e ninguém liga mesmo. Os nomes dos lugares, o diálogo e as estruturas governamentais em Orwell são uma clara sensação de que o jogo se passa na Inglaterra (no jogo o país é chamado apenas de "The Nation") - inclusive o líder do país é um homem chamado "Blaine" (referencia ao primeiro ministro Tony Blair).


Neste jogo você é o operador do programa experimental do governo chamado "Orwell", um sistema operacional capaz de acessar qualquer coisa que o governo possa legalmente por as mãos - o que vai desde o seu perfil no Facebook a sua conta bancária, ou mesmo sua conta no Par Perfeito se o governo estiver se sentindo com vontade. Todo o jogo se passa operando o sistema Orwell, então como jogo ele é um simulador de sistema operacional.

Mas como isso funciona?

Se ouvindo uma conversa de Whatsapp de duas pessoas, uma dela menciona que a outra usava o nick "batatinhadoida2013", você pode mandar o sistema Orwell varrer a rede em busca de referencias a esse nick e achar uma pagina dela no MSN Space de 2003 em que ela disse (quando tinha 14 anos) que odiava o governo e que todos os politicos tinham que ir para o inferno. Se você quiser, isso pode ser uploadado no sistema como uma "prova que possui sentimentos antigovernamentais".

Só pode dar bom, né?



Entretanto, a pegadinha aqui é que você precisa usar essa ferramenta maligna para o bem (ou não, se você não quiser não é obrigado). O jogo abre com um atentado a bomba no meio de uma praça e é sua missão investigar a célula terrorista que causou isso e evitar possiveis mais mortes.

Sua única pista inicial é que na cena do crime foi filmada pelas cameras de segurança uma mulher com ficha policial de protestos contra o governo. Investigar a ficha policial dela leva ao perfil dela nas redes sociais, seu histórico de emprego e por aí vai. Cada uma dessas pesquisas vai abrindo mais perfis para serem investigados, que podem ou não estar ligados ao atentado.

Em pouco tempo você vai estar o Orwell para ouvir suas conversas telefônicas e mensagens de texto. Eu descobri que ela está ligada a um grupo de ativistas chamado Pensamento, que estão preocupados com a erosão das liberdades representadas pelos governos que espionam as pessoas que deveriam servir.  Mas eles estão tão preocupados a ponto de explodir pessoas?

Tudo isso é apresentado como uma série telas nas quais os principais snippets são destacados. Seu trabalho é decidir quais trechos de dados serão enviados para Orwell. Por exemplo, o advogado (e namorado) da nossa primeira suspeita possui uma conta bancária que registra doações frequentes. Dependendo de quais informações eu uploado ao sistema, eu posso fazer o governo pensar que essas doações são para pessoas suspeitas... ou eu posso fazer upload do certificado de doações a causas humanitárias que eu achei hackeando o computador dele.

Obviamente ele é um cara legal... mas por outro lado mete-lo em cana vai abalar emocionalmente nossa suspeita numero um e talvez ela se torne mais "cooperativa" no interrogatório. Pode não ser justo (e não é), mas fazer isso pode fazer a diferença entre uma bomba ser detonada em um shopping lotado ou não. Não são escolhas tão faceis assim. Como Dick Chenney diz ao fim de "O Vice", meus metodos "anti-éticos" salvaram a bunda da família de todos vocês. De nada.

Vamos hackear esse Par Perfeito para ver com quem essa novinha anda tretando...


Nesse jogo você vasculha muitos dados, le e-mails, ouve telefonemas, lê blogs, comentários de redes sociais, comentários em paginas de jornais (sim, tem até a versão britanica dos comentaristas de G1). Se você quiser, pode ser pulado muito do texto. Os dados relevantes são sempre fáceis de acessar, desbloqueando novos documentos e novos caminhos. Mas ajuda muito que isso não seja necessário, porque bisbilhotar a vida dessas pessoas é uma tarefa gratificante enquanto narrativa. Felizmente, Orwell é um dos jogos mais bem escritos que eu joguei. Seu texto é interessante, envolvente e realista. Parece um thriller de espionagem cativante e complexo, no qual você nunca tem plena certeza de em quem você pode confiar - você não pode sequer desconsiderar a possibilidade que o governo armou os atentados para ter uma desculpa para se dar poderes ilimitados.

Todas as conversas e pistas oferecem pistas narrativas em potencial que me levaram a teorias e conspirações sobre o que realmente esta acontecendo aqui.


Mas chega de falar de flores, vamos falar de uma coisa que me incomodou bastante e o principal defeito de Orwell é um bem estranho. Tão incomum que eu achei que fosse só burrice minha, mas lendo a respeito percebi que é um problema bem recorrente: o jogo não explica direito a sua mecanica.

Inicialmente o jogo passa a sensação que seu trabalho é só fazer upload de todos os datachunks que puder encontrar e ver onde a história vai, como um tipo de walking simulator só que com um sistema operacional. Foi só bem mais tarde que eu percebi que você não apenas não precisa fazer upload de tudo, como o que você faz upload faz diferença.

Pode parecer idiota, mas para quem joga o jogo sem se informar antes a respeito (como eu normalmente faço, eu prefiro julgar o jogo pelo que ele se propõe e como ele me ensina a jogar), é fácil passar da metade do jogo antes de perceber que você não está seguindo um trilho e sim fazendo escolhas.

O que é uma pena, porque as escolhas que você faz são muito inteligentes. Quando eu descobri que o alvo inicial das investigações tomava remédios para a ansiedade, eu uploadei essa informação no sentido de que essa pessoa não seria muito interessada em se envolver em tretas na vida real, certo? Bem, o governo interpretou minha informação como o fato que essa pessoa é mentalmente instável.

Esse jogo de equilibrio entre atropelar as liberdades civis e a decência básica e fazer o seu trabalho como investigador do governo tentando evitar um ataque terrorista é o que torna o gameplay interessante, e é realmente um crime que o jogo não explique muito bem isso.



Durante o meu jogo, eu descobri uma conspiração terrorista e fui laureado como herói. Mas também tomei uma série de decisões que causaram a morte de uma pessoa inocente. Você não controla como o governo vai interpretar suas ação e, como na vida real a respeito de tudo que envolve o governo, você só pode trincar os dentes e esperar pelo pior. Sistemas como Orwell são uma panela de pressão repleta de merda esperando para estourar.

O cerne do problema moral é que a escolha entre intrusão e liberdade não é simples. Se fosse, o tema central do jogo não seria nem de perto tão interessante. Os escritores da Osmotic Studios são obviamente hostis aos níveis crescentes de vigilância e aos argumentos usados ​​para apoiar essas intrusões, mas eles não são cegos aos resultados desses sistemas - acredite, nunca mais aconteceu um atentado terrorista em solo americano não foi porque os terroristas pensaram "ah, ta bom assim, deixa pra lá...".

Funcionar o sistema funciona... mas a que preço?



Na vida real, os governos insistem que a bisbilhotagem nos protege, que não temos nada a temer enquanto não tivermos nada a esconder e este é um argumento que muitas pessoas acreditam ser verdade. Eles estão abertamente dispostos a aceitar a possibilidade de suas mensagens no Facebook serem assistidas, se isso ajudar a pegar os bandidos ou evitar apenas uma atrocidade. O que parece fazer muito sentido... até pessoas começarem a perder empregos, serem despejadas ou simplesmente desaparecerem no meio da noite por expressar sua opinião discordante do que o governo entende como "dos interesses da nação".

Teoria conspiratória demais? Parece mesmo. Exceto que foi exatamente o que aconteceu nos Estados Unidos, aconteceu na fucking SUÉCIA e é o que esta acontecendo hoje na Venezuela. Foi o que aconteceu no Brasil nos anos 70 e esta sempre apenas a uma eleição infeliz de voltar a acontecer. Porque a fome do camarada Estado nunca diminui, e você é um prato delicioso.
Next Prev
▲Top▲