[ANIMES] Meu anime ideal (ou SHINSEKAI YORI)

| segunda-feira, 18 de março de 2024

Um corpo artificial sendo cuidadosamente esculpido com uma perfeição mecânica é a cena dos créditos iniciais de Ghost in the Shell (ou o “Fantasma do Futuro” no Brasil because huehuehue br). Uma das cenas mais icônicas de todos os tempos na história da animação. Isso toda a malta sabe. O que talvez menos gajos saibam é que a música que toca nessa cena tão definidora é uma música se chama “Making of a Cyborg“.




A década de ’10 será lembrada como a época em que as pessoas reclamaram de ver essa cena interpretada pela Scarlett Johansson. É. Eu sei. Vai ser difícil explicar para as gerações futuras.

Coloquei essa introdução para jogar um jogo com vocês, vamos chamar de “Making of an Anime”. Se você pudesse montar peça por peça, na fria precisão que só um tanque de pele sintética pode oferecer, o seu anime ideal, como ele seria?

Eu começo: meu anime ideal, em primeiro lugar, teria uma ideia assaz genial, a qual eu nunca tinha pensado antes. Não precisa ser algo inédito na história da humanidade, basta apenas ser algo que me surpreenda e eu diga “tae, pior que eu nunca vi nada sobre isso mesmo”. Digamos, por exemplo, uma história que se passa em um mundo pós-apocalíptico em que o apocalipse não foi trazido por aliens, nem robôs ou mesmo armas nucleares, e sim poderes psíquicos.


CONTEMPLEM O APOCALIPSE PSÍQUICO!

Digamos que, por exemplo, quinta-feira que vem pessoas com poderes psíquicos nível TETSUO comecem a aparecer por aí. Uma, duas, dez, mil ao redor do Globo. Não precisa ser tantas assim, apenas um pequeno punhado dessas mentes MA-RA-VI-LHO-SAS já seria suficiente para esfacelar a nossa frágil estrutura social, e a seleção natural as transformar na espécie dominante do planeta. Se está difícil de imaginar, assista Akira novamente, e veja o quanto a sociedade não consegue fazer nada contra o Tetsuo. Agora imagine acontecendo em diversos pontos do globo pelo próximo século. ISSO é um apocalipse psíquico.

Mas não para por aí: o psiquismo humano se expandiu de tal forma que começou a deformar o mundo ao seu redor, e o DNA dos seres vivos próximos de si com o “resíduo” psíquico, ou seja, criando mutações. Manja aquela hora que o efeito das dorgas acaba e o Tetsuo começa a perder o controle dos seus poderes? Tipo isso, aplicado ao mundo.

Agora imagine o mundo onde isso aconteceu, mil anos depois. Sim, imagine que louco seria uma mistura de Akira e Fallout na construção de cenário. Apenas imagine que doido seria.





ADMIRÁVEL MUNDO NOVO QUE ENCERRA CRIATURAS TAIS


Em seguida eu gostaria que meu anime ideal mostrasse essa sociedade nesse admirável mundo novo através da vida de um protagonista. Mas, tipo, a vida toda mesmo, desde a infância até a idade adulta, não a putaria de anime que pré-adolescentes salvam o mundo com o poder da amizade, não. Um anime que acompanhasse o herói da história desde criança até sua fase adulta, e com isso víssemos todos os aspectos dessa nova sociedade.

Uma nova sociedade mil anos no futuro tem, é claro, valores de mil anos no futuro. Parece óbvio, mas não é. Por favor, nada de pegar os nossos valores atuais (que sequer são os mesmos de trinta anos atrás) e fingir que somos nós em um cenário diferente. Não, eu quero outra sociedade moldada por outras necessidades históricas ou causalidades. Eu quero que essa sociedade lide com valores como vida, sexualidade, liberdade e comunidade pelos seus próprios meios, não pelos meus. Em outras palavras, eu quero que um japa sente a bunda na cadeira e faça FICÇÃO ESPECULATIVA DE VERDADE.

Em outras palavras, eu quero Admirável Mundo Novo no meu cenário de Akira/Fallout. Parece bom até agora, não?


E TIRE SUAS OTAKISSES DAQUI!

Falando sobre isso, eu não me incomodaria se meu anime ideal fosse muito econômico nos clichés de anime. Eu não me incomodo que eles pareçam japoneses como os japoneses são realmente, mas me incomodaria muito se eu pudesse defini-los simplesmente como tsundere, protagonista banana genérico, rival do herói, alivio cômico, melhor amiga de infância do herói que é apaixonada por ele. Menina tomboy atlética que no fundo só quer ser tratada como uma princesinha? FORA DAQUI!

Só dessa vez eu gostaria disso. E só dessa vez eu quero uma história em que as crianças dessa nova sociedade se comportem como crianças, os adolescentes como adolescentes e os adultos como adultos. Cada um com personalidades distintas e marcantes, ainda que críveis – todos moldados, é claro, pelas verdades e necessidades desta nova sociedade.

Se não for pedir demais, talvez um anime que nem abertura tivesse, e o tempo desperdiçado com isso fosse usado para CONTAR A HISTÓRIA. Talvez seria interessante ainda que o anime não fosse adaptado de um mangá, nem de uma visual novel, nem até de uma light novel (que é mais ou menos o equivalente a “literatura infanto-juvenil” no Japão), e sim de um fucking livro de verdade. Sabe, um romancezão veiudo de 600 páginas mesmo, escrito por um adulto e para adultos.

Não, não tem irmãos que na verdade não são irmãos de sangue e se apaixonam. Te garanto que no meu anime ideal não tem isso.



SOLTA A BATIDA, NEE-SAN!

Muito dificilmente alguém fará um anime assim algum dia, então, já que estou sonhando alto, por que não pedir uma trilha sonora onírica, que lembra um hibrido entre Akira e Ghost in the Shell? Eu sei que é pedir demais, mas hey, esse é o MEU anime ideal. Ah, já que estamos nisso, também não me incomodaria um traço leve, quase infantil, porém, conceitualmente artístico, como um meio termo entre o estilo do estúdio Ghibli e o primeiro filme do Digimon.



AGORA O QUE ACONTECE NESSA HISTÓRIA, HM, VAMOS VER…

Meu anime ideal seria dividido em três arcos distintos, cada um representando uma fase da vida do protagonista. O primeiro, a infância, seria marcado pelo mistério e pelo misticismo, enquanto o meu cérebro fica completamente viciado em entender o que diabos está acontecendo ali. Claro que não seria interessante apenas fazer um “senta que lá vem a história” e contar como o mundo chegou aquele ponto absurdo, repleto de termos que parecem místicos, mas têm uma explicação lógica e cientifica.

Não, teria isso claro, mas apenas isso não seria o bastante. Eu quero uma cadeia de eventos que seria posta em movimento na infância do nosso herói, e que vai evoluir de uma forma orgânica para, quando chegar na fase adulta, essa sociedade com a qual eu já me familiarizei tenha uma resolução que passe uma sensação de realização. Nada de “acabou esse arco, agora surge uma nova história sem relação nenhuma” (como é muito comum nos animes), não no meu anime ideal. Não, a história seria toda conectada, e os eventos persistiriam não apenas nas motivações iniciais dos personagens (“vou lutar com ele porque ele matou meus pais” ou algo assim), mas em toda grande roda de engrenagens que move o anime.

Ao longo de sua exibição, haveriam mudanças radicais e guerras, claro, mas, como o anime mostrou as raízes que colocam essas engrenagens em movimento lá no começo, tudo seria emocionalmente amplificado. As guerras teriam significado, porque eu saberia exatamente quem estava lutando, por que e o que estaria em jogo.

Conhecendo os personagens desde a infância, e sendo bons personagens críveis e complexos, eu me sentiria à vontade para me sensibilizar com suas necessidades, dores, suas escolhas e anseios. Seria um olhar microscópico na esfera dessa sociedade e seus personagens, o que tornaria o anime bastante pesado.

Em outras palavras, eu quero um anime que, para explicar como as coisas chegaram ao ponto que chegaram no final, não possa ser descrito com nada mais simples do que “bem, é uma longa história…”.


Imagem tirada da cerimonia de posse do Bolsonaro em 2018

É ASSIM QUE O MUNDO TERMINA, NÃO COM UM ESTRONDO MAS COM UM LAMENTO

Eu não exijo que o final seja feliz, embora me desagrado com finais deprimentes em que tudo dá errado e “todo mundo é infeliz para sempre, fim” (pessoalmente já acho o mundo real amargo o bastante para me rejubilar com isso nas minhas ficções). Não, seria alguma coisa no meio termo disso (“algumas coisas boas, algumas coisas ruins, um pouco de cada” como disse o Senhor das Estrelas), mas, mais importante que isso, uma sensação gratificante de que algo aconteceu, e apenas a catarse que uma história bem contada, com inicio, meio e fim, pode proporcionar.

E apenas porque é o meu anime ideal, quando tudo estivesse dito e feito, quando eu achasse que o anime estava apenas terminando, e que só estavam enrolando para dar o tempo de exibição… bum, alguém viria e soltaria um plot twist que mudaria inteiramente toda minha percepção da coisa toda! Faria minha mente explodir e rever toda a experiência através de uma informação que estava lá desde o começo, para então ser revelada uma verdade perturbadora.

É uma ideia ousada e difícil de executar, eu sei, mas esse é o MEU anime ideal.

SINTA, PENSE, REFLITA

Existem muitos poucos animes que conseguem embaçar a linha entre o que é certo e errado, e menos ainda os que te fazem mudar de opinião nesses assuntos várias vezes ao longo do caminho. Meu anime ideal seria um destes raros casos.

Talvez algumas pessoas achem o ritmo um tanto lento demais, mas, para mim, o ritmo seria perfeito. Eu realmente não me importaria se o começo fosse um pouco devagar, já que o meu cérebro estaria ocupado correndo atrás e tentando entender o que diabos eu estou olhando. O anime teria seus próprios termos, por exemplo, e alguns deles não seriam adequadamente explicados até que eu já tivesse entendido por conta própria a maior parte deles. Sabe, um anime que não subestime a minha inteligencia, pelo contrário, que contasse com ela!


Eu já disse isso, mas esse anime seria pesado. Pesado não no sentido de gore gratuito ou fan service descarado (que é como se entende “maturidade” em animes), mas sim por temas emocionalmente pesados que ecoam em você, mesmo depois que você terminou de assistir. Ele poria o dedo na ferida em vários assuntos desconfortáveis e arrastaria para a luz a depravação da raça humana. Em nossas atitudes, nossa necessidade de controlar tudo, e nossa arrogância de achar que sequer somos parte da natureza: nos vemos como algo complemente alienígena e ao mesmo tempo infinitamente superior.

Isso sem pintar ninguém como mocinho ou bandido. Quão má é realmente uma sociedade que, sistemicamente, mata indivíduos para salvar o resto da população? Quão mau é um individuo que arrisca o destino da raça inteira para proteger seus amigos? Podemos realmente culpar alguém que está lutando por sua sobrevivência? O quão bom você é para alegar que o que o outro está fazendo é mau? Este anime surpreenderia mostrando um “estudo de caso” que, na verdade, questiona a própria essência do que é ser humano.

E a parte mais perturbadora desse anime é que a reação dos personagens, provavelmente seria o que a maioria das pessoas faria nas mesmas circunstancias. Diabos, de certa forma é o que a maioria das pessoas está fazendo nesse exato momento. Ninguém luta por suas crenças ou confronta o sistema, no máximo tenta sair da frente dele para não ser esmagado. Exatamente como nós faríamos, seriamos apenas engrenagens em uma máquina que continua funcionando.

A forma com que eles se conformariam com um sistema abusivamente cruel seria revoltante, e mesmo após descobrir como as coisas funcionam, ao não fazerem nada para mudar só nos lembraria de que é exatamente o que estamos fazendo nesse exato momento. Ou você esqueceu em que país você vive?

Como em 1984 (meu livro favorito, btw), o sistema sempre vence. E por mais que você sinta que o sistema é errado, desumanizador e essencialmente cruel, não teria uma ideia melhor a propor dentro da realidade proposta. Tal qual nós sabemos, no nosso mundo a democracia é uma aberração desumanizante e fadada a dar errado… Mas nós somos covardemente convenientes com ela porque ainda é o sistema menos pior que conseguimos fazer funcionar – como Churchill já disse uma vez. Ou senão o lagarto errado pode assumir o poder.

ESSE é o tipo de ferida incômoda que está lá – mas que absolutamente ninguém quer falar sobre ela – que o meu anime ideal apontaria.


E ESSE SERIA O  MEU ANIME IDEAL

Talvez o seu anime ideal seja radicalmente diferente. Se eu tivesse que apostar, diria que seria muito diferente, porque, afinal, eu sou apenas eu. Talvez você não concorde comigo, e honestamente eu nem recomendo muito que concorde. O que eu verdadeiramente recomendo é que você assista Shinsekai Yori (From The New World, no ocidente), um anime pouco popular que é um dos melhores animes que eu já vi na minha vida. Senão o melhor.

De verdade.
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