[ANIMES] YURI ON ICE (ou escorregando na queerbaitagem)

| quinta-feira, 4 de maio de 2017

Da forma como eu vejo as coisas, existem dois tipos de esportes: os que eu conseguiria praticar (mesmo que mal) e os que eu fisicamente não sou capaz de faze-los. Por exemplo, eu consigo jogar futebol. Terrivelmente, mas consigo. Agora salto com vara, nem que os portões do inferno se abram e todas as todas as almas saiam de lá cantando tumbalacatumbatumbata.

Para surpresa de absolutamente ninguém, patinação artística se enquadra no segundo grupo. Adicione a isso que eu sabia tanto sobre o esporte quanto o grupo de whatsapp da sua família sabe sobre os tramites jurídicos do STF, e temos em Yuri on Ice um anime que eu não fazia a mais remota ideia do que esperar.

Como resultado eu aprendi o que “queerbaiting” significa. Louco, né?



VICTOR NIKIFOROV: O HOMEM, A LENDA, O MITO

Em Yuri on Ice temos Victor Nikiforov, a lenda viva da patinação. Cinco vezes campeão do mundo, detentor de todos os recordes imagináveis e ícone absoluto entre os patinadores do Carrefour, Victor é um daqueles personagens que fazem o mundo orbitar ao seu redor com seu carisma. É tipo o The Rock, se o cara pesasse 150kg a menos e fosse pansexual.

O estereótipo do gênio artístico já foi usado muitas vezes na história do entretenimento, e Victor é sua mais perfeita expressão. Nunca dá para saber exatamente o que ele está pensando ou o que ele vai fazer em seguida. Para ser sincero, nem o próprio Victor parece saber muito bem, ele apenas vai e faz. Nesse aspecto ele é tratado mais como uma fada (no sentido céltico de uma força da natureza) do que como uma pessoa, mas é meio que assim que os “gênios” fazem na  cultura pop.

Basta um momento de inspiração e bam, milagre. Só que ele não é o protagonista do anime.

 ENQUANTO ISSO, NO CANTO MENOS GLORIOSO DO RINGUE…
 
… temos Yuri Katsuki. O melhor patinador do Japão, o que em termos mundiais não quer dizer grande coisa realmente. A história começa com Yuri tendo um ano muito, muito ruim. Ele ficou em um humilhante último lugar no campeonato mundial, e daí sua carreira tem ido ladeira abaixo.

Ao ponto que, alguns meses, depois ele está completamente fora de forma e não consegue mais ganhar nem teste de seleção para Timão e Pumba on Ice. Seria a deprimente história do equivalente esportivo a um ex-BBB, não fosse que, um dia, Yuri estava patinando imitando seu grande ídolo Victor, só de zoas. Só que foi realmente bom, inspirado e tal. E alguém filmou aquilo e colocou na internet.

Ao ver aquilo, Victor decidiu imediatamente que não ia comprar uma nova estante para pendurar mais troféus, e sim embarcar para o Japão para ajudar nosso rechonchudinho patinador como treinador. Por quê? Sei lá, coisa de gênio, você não entenderia (mais uma vez, não parece que ele próprio tenha entendido também).

E assim começa a premissa de Yuri on Ice, quando o melhor do mundo decide tirar um ano sabático para bancar o técnico de alguém que não é tão melhor assim.

 UM ANIME DE ESPORTES. EM PARTES…
 
Apesar da grande atração do anime para o público ser o relacionamento entre o divante Victor e o timido Yuri, o anime realmente é um anime de esportes. Segurem seus navios yaoi, meninos e meninas, porque o grande destaque aqui é a patinação em si. Já falo do relacionamento, primeiro me permitam tecer alguns comentários sobre a parte do esporte.

Ao contrário do que normalmente acontece em animes de esportes, nosso protagonista não é  novato ou ruim no seu esporte. Ele pode não ser um “gênio” como Victor, mas está muito longe de ser medíocre também. Apesar do que sua narrativa pessoal pode nos levar a acreditar, ele é essencialmente o melhor patinador do Japão, e talentoso o suficiente para chegar à final do Grand Prix do mundo sozinho. Ele não está aprendendo patinação artística do zero – ele está aprendendo o que ele ama sobre isso, e porque ele patina.

É uma mudança bem vinda.

PATINAÇÃO ARTÍSTICA: EXPECTATIVA


PATINAÇÃO ARTÍSTICA: REALIDADE


A maior parte dos episódios é sobre as competições de patinação, e tem algumas coisas interessantes sobre isso. Em primeiro lugar o anime transmite bem a ideia de como isso é filhadaputamente difícil. Sério. Patinação artística é tão difícil que um patinador com 25 anos já é considerado veterano, porque não é como se os joelhos de um ser humano aguentassem muito mais do que isso. Só de lembrar a sequencia de treinamento do Yuri eu já fico cansado.

Agora, o mais interessante desse mundinho é que ele não é exatamente o que você poderia esperar de um esporte individual de alto nível. Como se pode imaginar, o mundo da patinação profissional é um circuito bastante seleto de indivíduos, e eles meio que se conhecem. Com efeito, eles até mesmo assistem as apresentações uns dos outros, e até torcem por seus colegas.

Muitos animes de esporte se focam na rivalidade e nas tretas entre os atletas. Yuri on Ice tem uma pegada diferente disso. Se eu tivesse que resumir em uma palavra, seria “comunidade”. Diabos, eles até saem para jantar juntos entre um dia de competição e outro.

Muitos patinadores profissionais ao redor do mundo que assistiram Yuri on Ice se identificam com a atmosfera e o cenário representado ali.

Aliás, uma coisa que o anime faz muito bem nesse sentido é retratar o processo mental de um atleta profissional. Ainda mais que patinação artística é um esporte muito único porque é um hibrido entre arte e esporte. Ou seja, você tem que ter controle absoluto das técnicas para conseguir fazer um quadruplo toe-loop carpado of doom, e como se isso não fosse difícil o bastante, você ainda tem que fazer isso enquanto apresenta uma performance.

Não é a toa que, quando um atleta termina sua performance, ele está com dois palmos de língua de fora, porque é um processo física e mentalmente exaustivo.

Infelizmente, no entanto, o anime faz melhor em contar isso do que mostrar. Porque, louvado seja o Soma de Vishnu, a animação desse anime é pavorosa. Sim, eu sei que animes usualmente são mãos de vaca no que tange a animação, mas isso normalmente não é problema.

Só que aqui é, e é um grande. Porque, ao contrário do futebol ou basquete, patinação é um esporte onde a precisão de cada mínimo detalhe importa para poder sequer ser avaliado como esporte. Se o cara deu quatro voltas ou três, qual era a posição da mão dele, como foi o percurso do seu movimento de pernas, tudo isso importa muito para que o público possa ver por si mesmo quem é um bom patinador e quem não é. Seria necessário uma animação de altíssima qualidade para transmitir isso, e o que nós temos é isso:


As únicas referencias para você, como espectador, acompanhar o desempenho do patinador são as reações do narrador da competição (nos meus sonhos, a dublagem brasileira contará com Galvão Bueno narrando o anime), e os monólogos do patinador enquanto ele apresenta.

Isso é muito abaixo do que você precisaria para um anime assim funcionar. Quando você precisa explicar ao espectador o que ele acabou de ver, é porque alguma coisa não está funcionando.


 
O ANIME GAY QUE É GAY, PERO NO MUCHO
 
Se você já ouviu falar alguma coisa a respeito de Yuri no Gelo é que o anime é sobre dois rapazes que descobrem a alegria de dar a Elza nazinimiga. Bem, não é. Seria melhor se fosse, mas não é.

Vamos colocar uma coisa aqui: se você é hétero e está escrevendo um relacionamento de outra linha sexual, ainda mais um do sexo oposto, MUITO CUIDADO com o que você faz. As chances de dar merda são enormes. YoI é escrito e dirigido por duas mulheres.

Se uma coisa funciona nesse anime, é o Victor. Ele é tão fora da curva que os rótulos sequer se aplicam nele. Se alguma coisa ele não é gay e sim pansexual: ele ama a arte e a beleza, esteja onde ela estiver. É tipo o capitão Jack Harkness dos animes. Esse foi um grande acerto das autoras do anime, e um muito delicado de se conseguir. Infelizmente meio que é até ai onde elas acertaram.

Vê, eu entendo que japoneses são uma cultura bastante diferente e tratam seus relacionamentos de uma forma diferente, muito mais reservada e intimista do que nós. Isto posto, eu ainda não entendi o Yuri e o relacionamento que ele tem com o Victor.

O relacionamento entre os dois nunca faz muito sentido ou é coerente por mais do que duas cenas consecutivas. Tem meio que um beijo, mas ao mesmo tempo não tem. Eles trocam alianças, mas é só “para dar sorte” (quem diabos troca alianças de ouro para dar sorte?).

E mesmo se acreditássemos que eles estão “comprometidos” em algum momento, as conversas entre Victor e Yuri nos últimos episódios são tão formais, como entre um treinador e seu aluno, não como um noivo falaria um com o outro!

Eu conheço esse sentimento bem demais, Yurio.
Apenas bem demais.
Se alguma coisa, Yuri cai naquele estereótipo chato de anime do adolescente (embora ele não seja adolescente) assexuado que começa a gritar “NOSSO RELACIONAMENTO NÃO TEM DESSAS COISAS” à mera menção de qualquer coisa menos infantil. Certamente você já viu dezenas dessas figuras em animes, que tratam relacionamentos como coisas alienígenas e pecaminosas, e infelizmente Yuri é meio que mais um desses.

O que é muito triste, porque toda a premissa do show é centrada em Yuri encontrando sua maturidade sexual e confiança em si mesmo, além de mostrar seu “amor” por Víctor ao mundo. Só que o comportamento dos personagens destoa enormemente dos temas propostos.

É como se, ao mesmo tempo, quisessem fazer um anime super de boas sobre relacionamentos sem rótulos… só que super família para passar no horário nobre sem incomodar ninguém. Eu entendo isso acontecendo, por exemplo, em um desenho animado infantil como My Little Pony, que tem um casal gay no 100º episódio, embora oficialmente elas sejam “apenas amigas”, caso o pai conservador de alguma criança perguntar. Aliás, ainda vou falar sobre essas ambiguidades de MLP, mas, enfim.

Só que aqui não é um desenho animado da Hasbro passando no Discovery Kids, é um anime que passa em um país que está acostumado com coisas muito menos “família” em suas animações.

Eu honestamente não estava entendendo que porra era essa, até que eu aprendi uma palavra que explica o que aconteceu: queerbait.



ISCA PARA FÃS DE QUEEN DISLÉXICOS?

Não. Queerbaiting é uma expressão usada para nos referimos a uma jogada midiática criada para que se possa lucrar ao promover certa “tensão sexual/romântica” entre dois personagens do mesmo gênero sem a real intenção de fazer com que o relacionamento deles se torne canon.

Tá, mas o que eles ganham fazendo isso? Muito simples, pequeno gafanhoto: o que faz do queerbaiting uma jogada de mestre é o fato de que atrai audiência LGBT sem realmente “incomodar ninguém”.

Tipo, você pode ver uma certa química entre o Dean e o Castiel em Supernatural, se você for propenso a querer ver isso, e até mesmo assistir a série por causa disso. E ao mesmo tempo seu coleguinha bolsonarete não vai deixar de assistir a série “porque tem essas viadage”. De um certo ponto de vista todo mundo sai ganhando, só que não. Yuri on Ice é um dos animes mais populares de 2016 por conta disso, mas poderia ser tão melhor se não se fizesse de desentendido para tentar agradar todo mundo.

 “O quê? Relacionamento gay? Não, não, aqui não tem nada disso não… foi uma aliança de amizade. É, amigos fazem isso o tempo todo, você sabe!”.
 
Talvez isso teria funcionado há dez anos atrás, mas em 2017 eu não tenho mais paciência com esse tipo de estratagema barato. Ainda mais ao custo de uma boa história (Yuri não ser nenhum “chosen one” é uma saudável variante ao gênero de animes esportivos) e de bons personagens. A sensação que passa é que o Victor é um personagem bom demais sendo desperdiçado nesse tipo de história, e nenhuma história, em hipótese alguma, deveria passar essa sensação sobre os seus personagens.

Os outros patinadores igualmente parecem interessantes, mas como a história não sabe muito bem o que quer da vida, também não sabe o que fazer com eles. Nos últimos episódios nós temos um arco de conclusão da história do J.J. King, por exemplo, mas sem o resto do arco. É muito legal a coisa da apresentação dele no mundial, só que eu não faço muita ideia da onde isso veio.

Com efeito, o único personagem que tem mais ou menos um arco bem desenvolvido é o rival de Yuri, o russo adolescente Yuri Plissetski (aka Yurio). Ele tem objetivos claros, barreiras bem definidas, e seu arco de personagem é completo. “Isso é o que eu quero, meus recursos são esses, é assim que eu vou fazer, meus obstáculos são esses”. O Yuri russo tem todas essas coisas.

Além disso, ele interpreta o estereótipo do russo grosso, o que é muito interessante de se ver em um esporte que tem mais relação com o ballet do que ursões de sunga vermelha aplicando piledrivers.

Só que Yuri on Ice não é muito sobre ESSE Yuri. Nós só teríamos a ganhar se fosse. Aliás, a série poderia ser sobre o JJ também. Ele parece ser um personagem muito mais interessante – só que como todos os outros patinadores secundários, jamais saberemos.

DE BOAS INTENÇÕES A PISTA DE PATINAÇÃO NO GELO DO INFERNO ESTÁ CHEIA
 
Yuri on Ice não é um anime ruim, e certamente trata o esporte com uma atmosfera e intimidade que poucos animes de esportes conseguem fazer. 

A escolha do tema, tanto esportivo quanto romântico, é absolutamente perfeita. O fato de Yuri on Ice não forçar um antagonista em um esporte que o seu maior adversário é você mesmo é de uma sensibilidade inspirada.

E justamente por isso é tão frustrante, porque poderia ser tão melhor se soubesse o que quer da vida. Se fosse sobre os personagens não saberem o que querem – ou saberem e não terem coragem de admitir por questões pessoais e sociais – até seria aceitável. Sério, qualquer caminho que o anime tivesse decidido ir estaria ok, mas infelizmente o anime não escolheu nenhum.

Como romance, o anime parece ter medo de sair do armário, e como um anime esportivo, as cenas de patinação parecem repetitivas e desnecessárias depois de um ponto – é realmente necessário socar 6 performances de patinação em um episódio, as quais parecem iguais devido à má animação?



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