E então, o mundo era um lugar cinza e sem som. Sem esperança, gosto ou sabor. Um mundo preenchido apenas por vazio e dor. Um mundo de perda.
E então, diante de um mundo tão opaco e deseperançado, a deusa fez a única coisa que ela poderia fazer: ela caiu de seu céu, e assim começa a jornada da deusa para salvar não a este mundo que ela criou, mas sim a si própria.
A coisa que as pessoas não entendem sobre a arte, no entanto, é que o ponto dela não é o que ela fisicamente representa. Uma estátua muito bem feita é um trabalho manual admirável, mas por si só ela não é arte. Arte é uma coisa a mais, é um passo além. É sobre evocar uma ideia, um sentimento, um conceito através de forma e som. E nesse sentido, Gris é uma obra de arte. Não o adjetivo que é usado a toda hora, mas sim o sentido literal da palavra.
Mas... o que é Gris?
Gris é um jogo bonito. Muito bonito. Essa é a primeira impressão inevitável. A arte excepcional só fica mais e mais bonita conforme você avança. Céus em aquarela; cavernas luminescentes; videiras e flores flores que desabrocham como em um sonho. Sério, esse é o jogo mais bonito que eu já joguei na minha vida.
E por trás de tudo isso, tem uma trilha sonora igualmente linda. Trilhas de piano pacíficas se transformam em cantos tempestuosos. Em uma fase, um poderoso vento vermelho golpeia seu personagem enquanto você atravessa um deserto de outro tom de vermelho. O único aviso que você recebe é quando a música começa a mudar, ficando mais sombria e ameaçadora. À medida que a música aumenta, os vendavais tornam a tela inteira um vermelho escuro. À medida que a música diminui, o vento diminui.
A combinação de gráfico e música é algo de tirar o folego. É um espetáculo sensorial, mas isso não é tudo que Gris é.
A princípio, a única maneira de evitar os efeitos desses vendavais poderosos é encontrar abrigo. O vento não vai te matar, é claro. Lutar, matar, morrer. . . estas coisas não têm lugar em Gris. Há um vilão na história, mas você só pode fugir dele (e usá-lo como elemento nas partes de plataforma. Este não é um jogo de luta, Gris é uma outra coisa.
Gris é muito um jogo, no entanto. Este não é um walking simulator, nenhum filme interativo - embora com a sua apresentação visual, pudesse ser. Seria o caminho fácil. Gris é um jogo de plataforma com muitos quebra-cabeças muito inteligentes e, mais importante que isso, que em nenhum momento subestima a sua inteligencia.
Você descobre o que tem que fazer não através de tutoriais ou dialogos, este jogo não tem uma única linha de dialogo na verdade, mas sim devido a construção do cenário que não parte do pressuposto que você é um idiota. A forma como uma plataforma balança quando você cai sobre ela te dá uma dica do que deve ser feito com ela. O chão que tem um som diferente quando pisado te dá uma dica do que deve ser feito ali.
O mais perto de um tutorial que Gris tem é que quando sua personagem ganha um novo poder, aparece que botão ativa ele. E isso é tudo. Como você vai utiliza-lo para resolver puzzles não precisa explicado, porque é lógico, é harmonioso, é um fluxo, uma conversa entre você e o level design sem intermediários no meio.
A melhor comparação que eu posso fazer com esse jogo é aquele que talvez seja o maior momento da história do level design dos videogames. Gris me levou de volta a 1984. O terrível ano em que os videogames estão mortos no ocidente, uma modinha que deu errado. Então essa empresa japonesa que ninguém nunca ouviu falar, essa tal de Nintendo, te pede uma chance, uma oportunidade de tentar um videojogo novamente. E então temos essa tela.
Lembre-se que as pessoas tem conhecimento de videogames apenas com o Atari, e isso não é dizer muita coisa. Então por qualquer motivo que elas tenham ligado esse console, tem essa tela. O que e faz aqui? Como se joga isso? Bem, seu personagem está a esquerda da tela, então é justo supor que o objetivo é ir para a direita. Você faz isso.
O jogo avança. Seguindo adiante você encontra duas coisas na sua frente: um ponto de interrogação brilhando em dourado e um baixinho com sobrancelhas muito sérias vindo na sua direção. Os instintos que o jogador tem são bastante claros e até hoje eu não conheci uma única pessoa (por menos habituada a videogames que estivesse, e nessa época não havia quem estivesse porque os videogames estavam renascendo) que não entendesse o ponto aqui: o ponto de interrogação é um segredo a ser explorado e o carinha com sobrancelhas do Peter Capaldi é encrenca.
Você bate na interrogação e ganha uma moeda com um som agradável, você não sabe ainda o que as moedas fazem, mas todas dicas visuais dão a entender que isso é bom. E também sabe que encostar no nanico ali é ruim, mesmo que provavelmente você descubra isso do jeito dificil.
Mas tudo bem se você encostar nele, Mario morre e o jogo recomeça alguns passos atrás. Ou seja, o jogador aprende uma lição sem perder nada, porque são apenas alguns centímetros de “progresso” perdido. Agora você aprendeu (provavelmente do jeito difícil) que o jogo também é sobre desviar das coisas.
O segundo ponto de interrogação, no entanto, não tem uma moeda e sim um cogumelo. Mas o que significa o cogumelo? A esse ponto ninguém sabe, você só sabe que encostar nas coisas é ruim - conforme sua experiencia com o inimigo anterior provou. Seu primeiro instinto, logo, é desviar do cogumelo.
Acontece então uma sacada genial: ele se move para a direita, cai, bate no cano e volta na direção do Mario. Como o Mario está baixo dos tijolos e trancado pelo deslocamento da tela, não tem como escapar do cogumelo. Ótimo, porque o jogo não quer que você escape.Seu instinto natural seria: acabei de matar o primo dele (o Goomba), essa coisa não deve ser do bem. Mas aí o cogumelo bate em você, que não tem como escapar, e… o Mario melhora. Ele cresce, pode quebrar tijolos agora e pula mais alto. PODER ILIMITAAAAADOOOOOOOO!!!!
E assim, em apenas uma tela, sem usar uma única palavra, Mario ensina todas suas mecanicas a alguém que nunca jogou videogames antes. Gris é basicamente uma versão moderna disso, com mecanicas levemente mais complexas que o correr e pular do Mario, mas não menos intuitivas, fluídas e organicas por conta disso.
Muito dessa fluídez e coerencia do design vem por conta dos recursos modernos que o jogo usa para tornar sua experiencia mais fluída, como afastar ou aproximar a camera para que você sempre veja tudo que precisa ver, e ver os detalhes da arte quando não precisa. Não apenas o jogo não tem saltos de fé, como você mal percebe o movimento que a camera está fazendo. Como um bom garçom ou um bom juíz de futebol, ela é invisivel.
E acredite, você vai querer que a camera te permita ver o máximo que puder desse jogo porque cada tela é uma obra de arte. Em ambos os sentidos da palavra.
E olha só, arte. Taí essa palavra denovo.
Bem, Gris conta uma história. Não com palavras falados ou ou texto. Não há diálogo. Não há escolhas a fazer além de como você resolve cada quebra-cabeça e estágio. Mas há uma história, uma que é contada através de sentimentos. O que conta a história de Gris não é uma narrativa, e sim a coleção de sentimentos que você vai tendo em cada uma das seis fases do jogo.
Até esse dia, eu nunca tinha entendido como funciona uma exposição de arte moderna. O artista diz que quer fazer uma exposição sobre o tema "inveja", e então apresenta um vaso retorcido, uma tela amarela com riscos vermelhos e uma bicicleta quebrada. Agora que eu entendo como isso funciona. Não é sobre a representação visual de nada, é sobre a sensação que cada mundo evoca. A primeira fase de Gris é sobre a solidão em um mundo sem cor, a segunda é sobre dar um jeito de seguir em frente quando o mundo (literalmente) te empurra pra trás e assim por diante.
E quando você junta todos esses sentimentos que você teve durante o jogo, uma história se forma na sua cabeça. Ou uma interpretação dela, pelo menos, embora eu duvide que duas pessoas terão exatamente a mesma interpretação desse jogo. E se isso não é a mais pura e verdadeira definição do que é arte, então eu não sei mais o que seria.
A comparação mais obvia a ser feita desse jogo é que ele seria tipo uma versão 2D de Journey, mas não é exatamente isso. Não me entendam errado, Journey é possivelmente a maior obra de arte emocional já feita em um videogame, mas isso é tudo que ele é. Ele é todo coração, não tanto substancia quando você quebra para analisar o level design do jogo.
Gris não, Gris é algo mais. E enquanto Gris tem tanto coração e arte (no sentido verdadeiro da palavra) quanto Journey, Gris ainda é um jogo incrivelmente bom enquanto jogo, as mecanicas do jogo são fundamentais para passar a sensação que o jogo quer passar e essa integração fundamental é algo sem preço.
Escolher as imagens para esse texto foi a coisa mais fácil que eu já fiz na vida, literalmente qualquer tela desse jogo é um papel de parede pronto |
Parece um jogo desenhado pela Nintendo com a direção de arte da Thatgamecompany.
Es una puñetera obra de arte