Imagine que você está lendo “Revolução dos Bichos” sem o contexto de saber a história do comunismo. É só uma fabula bonitinha, mas completamente esquecível. Ok. Agora, quando você sabe que Orwell esta falando sobre nossos camaradas vurska-vurska, a percepção do texto muda radicalmente. Quando você sabe, então, que Orwell escreveu um relato preciso sobre a ascensão e queda do comunismo ANTES dela acontecer, o homem se torna uma lenda.
Então uma obra não é só ela, e sim o contexto ao redor dela.
E se isso pode ser usado para realçar positivamente uma obra (como no caso citado), também deve ser levado em consideração o contrário. Algumas obras nascem tendo que ser 125% melhor do que precisaria ser para que o público não vire a cara para elas apenas pelo contexto em que foram criadas.
Esquadrão Suicida, por exemplo, já começa o jogo perdendo de 1×0, porque pouca gente dissocia o filme da quizumba grotesca que são os filmes da DC/Warner. E não ajuda que o filme não se ajude, claro. Mas, como eu disse na época, Max Reinhardt manjava dos paranauê.
Santa mãe de Raava... |
Por esse mesmo contexto, 3% já começa a partida no coração dos nerds perdendo de 2×0 fora de casa na partida de volta. Isso porque, por a série ser brasileira, a nossa rabugentice de quem aturou tanta merda desse país põe as mangas de fora para se vingar, mesmo um pouquinho que seja. “Ah, é BR? Então tem que ser 250% melhor só para eu achar bom” é o sentimento vigente.
E tal qual Esquadrão Suicida, puta merda, como 3% não se ajuda também. Porque, sério, puta que pariu em chamas bebezões gigantes, que coisa pavorosamente tosca é o primeiro episódio da série. Os figurinos tentam criar uma “favela futurista”. Parecem rejeitos da produção de “Os Mutantes” da Record. As atuações dão vergonha. Parece que os atores estão absolutamente constrangidos de estarem ali (com exceção do experiente ator João Miguel, o melhor ator da série). E assim ladeira abaixo.
É ruim, muito ruim.
Vê, muitas séries consagradas têm um começo muito ruim também. Buffy tem uma primeira temporada tão desencontrada, que você quase consegue sentir o Joss Whedon por trás das câmeras gesticulando desesperadamente para os atores “vai, vai!”. Jared Padalecki tem uma cara de “puta merda, que bosta que eu fiz de largar Gilmore Girls” nos primeiros episódios de Supernatural. Mesmo as grandes séries levam um tempo para se encontrar, é parte do processo natural das coisas.
Exceto, claro, quando você não tem a chance de errar, porque o público já chega em você com duas pedras nas mãos. Pouca gente supera a primeira impressão hedionda dos primeiros episódios constrangedores de 3% porque é brasileira, com muito orgulho e muito amor. Se fosse uma série canadense, teria uma segunda chance – afinal todos amam o Canadá.
O que realmente é uma pena, porque, passada essa primeira impressão miserável, a série acaba se encontrando no meio do caminho. Não é genial, nem revolucionaria, mas boa.
Baseada em uma série de curtas, 3% é sobre um futuro pós-apocalíptico onde todo mundo – uma única vez na vida – pode participar de um tipo de “Jogos Vorazes” para ir morar na última cidade “boa” que restou – o Maralto. Apenas 3% passa no teste.
Vai, sem dizer que “os testes” são a coisa mais interessante de se assistir no programa. São provas interessantes e bem boladas, e progressivamente brutais em sua sanguinolência. E é aqui que vem a grande sacada da série, o que a diferencia como “distopia teen” entre tantas outras: é a progressividade da violência dos testes.
A principio você pensa “ok, é bom pegar pesado para separar o joio do trigo”, mas com o decorrer da série os testes vão “pegando tão pesado” que você começa a desconfiar que isso não vai selecionar “cidadãos ideais” porra nenhuma. Que tipo de sociedade utópica eles estão pretendendo manter ali, selecionando as pessoas desse jeito?
Agora, olha só que legal: a série pensou nisso também, e o próprio sistema ser colocado em cheque não é coincidência, mas um tema abertamente explorado. O que a sociedade utópica de Maralto quer realmente, e como o sistema de seleção dos 3% funciona, conversam de uma forma muito inteligente.
Ao contrário do que possa parecer, 3% não tenta forçar ser uma critica social ou pregação de nenhum tipo. Você sabe, experimente dizer a palavra “meritocracia” em um raio de 500m de qualquer faculdade de humanas no Brasil e depois me conte os resultados. Pois é.
Qualquer conclusão política ou social que você tirar da série, serão conclusões que você chegou por conta própria, e não porque a série martelou vergonhosamente na sua cara – como a boa ficção deve fazer.
O roteiro é bom, entrega personagens com vários ângulos e algumas reviravoltas importantes. Só que demora a chegar lá — pouca coisa nos primeiros episódios não é sofrível – e as atuações nem sempre correspondem à complexidade exigida. Em mais de uma oportunidade passam longe. A construção do mundo é bastante interessante, mas possui furos de lógica crassos.
Mas essa maquiagem e figurino... ugh, a dor... |
Então a série merece ser assistida? Sim. É ok, como muitas séries são apenas ok em sua primeira temporada. É dolorosamente ruim em algumas coisas (eu recomendaria a eles pegarem bem mais leve nas “reviravoltas” de personalidade dos personagens), mas tem ideias interessantes em outras. Talvez melhore, talvez não.
De qualquer forma, merece mais oportunidade do que as patadas que vem levando da critica. Mas é. Porque uma série não é só uma série e sim todo o contexto ao redor dela. E nesse caso o contexto é um complexo de vira-lata que pega bem pesado. Ou “eu te disse”, diria Max Reinhardt.