Neon Genesis Evangelion é, discutivelmente, um dos animes mais importantes de todos os tempos. Ele mudou mundialmente a forma que toda industria é percebida, e mudou a própria forma com que os estúdios pensam suas obras. É tão relevante que é até dificil fazer uma comparação a altura, eu consigo pensar no que Final Fantasy 7 foi para os RPGs ou Avengers Endgame foi para o filme de Super-Heróis, Evangelion é grande assim.
A história do anime pode ser literalmente dividido em basicamente duas grandes eras: antes de Neon Genesis Evangelion e depois de Neon Genesis Evangelion. Pra vc ter uma ideia, antes de Neon Genesis Evangelion ser transmitido, não havia uma abundancia de animes originais na televisão, e definitivamente não na programação noturna - os que tinham eram basicamente animes infantis.
Até então, a maior partes das animações originais (ou seja, que não são adaptações de manga ou visual novel) assim como os animes produzidos para nicho, como para os fãs menos casuais e a audiência mais velha (sim, otakus são um nicho no Japão, pro japones médio anime é só mais uma coisa que passa na TV igual a qualquer outra) estava sendo produzido em OVAs (séries de no máximo 4 ou 6 episódios lançadas diretas em vídeo) ou filmes.
As produções para a TV de anime geralmente era séries bem mais compridas com um atrativo mais abrangente ao público. Animes de esporte baseados em mangas já consagrados como "Ashita no Joe", séries de ação com mechas com franquias de nome bem estabelecido como Gundam e, claro, um amontoado de animes shounen com vários mais de cem episódios como Dragon Ball e Saint Seiya. O meu ponto aqui é que até 1995, os animes na TV trabalhavam com uma regra bem simples: baseado em um manga famoso e no minimo 50 episódios. Qualidade individual dos episódios não era tão importante quanto a quantidade deles,
Com efeito, era bastante comum essas histórias sequer terem uma conclusão, era apenas 200 e poucos episódios e depois termina do nada, como foi o caso de "Ranma ½" por exemplo, era bem comum isso. Com raras exceções, anime na TV era isso.
E então teve esse anime, um anime bem estranho para os padrões da televisão japonesa: um anime voltado para um publico mais velho que não apenas não era baseado em nenhum manga famoso, como era um projeto relativamente curto (de apenas 25 episódios) e com uma direção de arte completamente experimental.
Se você já assistiu anime na vida, sabe o quanto os japoneses presam por respeitar generos. Classificar tudo certinho em shounen, shoujo, esporte, slice of life, romcom, essas coisas são muito importantes em como os animes são estruturados.
Evangelion meio que não tem muito um genero. Quer dizer, ele começa como um anime de mecha/harem tipico como vc poderia esperar: um garoto de 14 anos pilota um robo gigante e vive cercado de waifus. Mas então a coisa degringola para uma desconstrução de genero como poucas vezes se havia visto na história dos animes.
Quer dizer, o anime aborda uma ideia interessante: o que acontece com a cabeça de um moleque de 14 anos, que já tem um quadro de depressão, quando você coloca ele pra enfrentar aberrações lovecraftianas em uma base diária?
Muitos anos depois Madoka Magika fez o mesmo com o genero Mahou Shoujo (tendo uma grande inspiração em Buffy também), mas antes disso houve Evangelion desconstruindo o genero de mechas.
Para grande surpresa de todos, Evangelion bombou de tal forma que que as portas se escancararam para não apenas séries originais para a televisão, mas séries com menos episódios. A partir de Evangelion passou a ser norma séries de 26 episódios, as vezes de 12, porém bem mais produzidos do que animes de 200 episódios que vão do nada a lugar nenhum. Alias não apenas séries originais, mas também animações mais experimentais voltadas para uma audiência mais adulta.
Sério.
Acesse o My Anime List, vá para os arquivos da tabela por temporadas e veja os anos da década de 90. Antes de Evangelion você ira ver quase exclusivamente shows infantís e adaptações de mangás
Mas no segundo que aparece Neon Genesis Evangelion do nada, a segunda metade dos anos 90 muda completamente. Imediatamente em seguida de Evangelion vem a série "Escaflowne", um anime original do estúdio Sunrise mais uma vez que tenta misturar elementos de shoujo em uma série mecha de fantasia.
Mais tarde naquele ano vem "Martian Sucessor Nadesico" que é uma paródia dos animes de batalhas espaciais com um divertido, disfuncional e excêntrico elenco de garotas super fofas e alguns twists bem sombrios e imprevisíveis durante a narrativa - além de um final bem extravagante. Um que, como o próprio final de Evangelion, parece quebrado e insatisfatório.
A seguir nós temos "Revolutionary Girl Utena" que é uma quebra de tudo que se esperava de um anime shoujo, em que não apenas o romance não é o foco da animação e sim o world building, como a protagonista é lésbica - algo totalmente sem precedentes para uma animação japonesa até então. Utena, diga-se de passagem, foi liderado por Kunihiko Ikuhara, que era bom amigo do criador de Evangelion Hideaki Anno na época - os dois trabalharam juntos em alguns episódios de "Sailor Moon" no qual Ikuhara foi o diretor chefe durante a terceira e quarta temporadas.
"Revolutionary Girl Utena" tem muitas das mesmas intenções que Evangelion, os temas densos e o foco no simbolismo para contar a história, além das tentativas de subversão em toda parte. Os criadores pretendiam fazer tudo que pudessem para criar o que eles gostariam de poder ter criado com Sailor Moon e não conseguiram. Pra você ter uma ideia, Utena termina com um filme que conclui sua história, "Revolutionary Girl Utena: Apocalypse of Adolescence", que é conhecido pelos fãs "The End of Utena", uma referencia ao filme que conclui a série de TV "The End of Evangelion"
E daí pra frente não parou mais. Quando a Sunrise disse ao diretor Shinichiro Watanabe que ele poderia basicamente fazer o que quisesse (desde que tivesse naves espaciais das quais eles poderiam vender brinquedos) pra ver se eles teriam "o seu Evangelion", ele criou uma das mais ecléticas, originais e memoráveis series animadas de todos os tempos chamada "Cowboy Bebop".
Enfim, o meu ponto foi que a partir de 95 e Evangelion, os estúdios perceberam não apenas que havia publico para isso como havia muito dinheiro a ser feito dando liberdade a artistas e essa é uma regra que não parou mais. segue até hoje.
"Serial Experiments lain", uma adorada série cult que compensa a sua falta de orçamento para animação com uma arte incrível, e um texto que explora uma visão distópica da internet em em 1998 (quando isso nem era uma coisa ainda). Em 1999 nós tivemos "Legend of Black Heaven", um anime com um valor de produção merda, mas uma história realmente interessante sobre um cansado e velho rock-star que se tornou um engravatado e que está preso em um limbo entre tentar reviver os seus dias de gloria e cuidar de sua mulher e seu filho.
E o melhor é que ainda hoje isso é uma coisa! É claro que existem animes que são apenas adaptações de manga que nunca terminam apenas para servir de propaganda, mas graças ao monstruoso sucesso de Evangelion temos também séries altamente autorais e profundas com níveis variáveis de atrativos para adultos. Séries como Kill La Kill que começa parecendo que os caras só encheram a cara de drogas e tão tacando qualquer merda aleatória na tela... até você ver que tudo isso se costura numa história. Ou então Devilman Crybaby, que até hoje é pra mim a expressão máxima do que acontece quando um artista tenta se expressar através de um anime.
Animes mais originais são algo que nós temos agora e a maioria deles não está tentando copiar elementos de Evangelion. A equipe que produziu Evangelion já segui em frente pra trabalhar em outros projetos, montes de estúdios abriu e fechou, equipes trocaram, gente começou e gente se aposentou nessa industria. E ano após ano animes seriados vem se tornando um negócio maior e maior a medida que mais e mais shows são lançados todas as temporadas para plataformas de streaming mundialmente. Gente grande como a Netflix, a Sony (que é dona do Crunchyroll) e agora até a Disney estão metendo grana violenta em animes.
Isso tudo é o legado de Evangelion nos animes.
E mesmo as animações que são adaptações de manga deixaram de ser "taca qualquer merda ae pra ter 200 episódios" e passaram a ser vendidos como produtos de temporadas. Hoje vc não tem "faz 200 episódios desse manga e tanto faz", temos uma temporada feita com carinho de Kaguya-sama, de Mob Psycho 100, de Konosuba ou, abençoados sejam todos os deuses, Jojo's Bizarre Adventure. Dar um tratamento de "série original" a adaptações passou a ser uma coisa após Eva também.
Hoje nós temos animes igualmente grandes que são conhecidos mesmo por gente que não acompanha regularmente animes como "Death note", "Attack on Titan" ou "Sword Art Online". Todos esses são animes uma influencia no cenário de animes mesmo anos após eles terem sido. Mas nada pode ser comparado à magnitude da diferença entre o que estava na TV antes e depois de Neon Genesis Evangelion.
Agora se você reparar, eu disse que Evangelion é um dos animes mais importantes de todos os tempos, não necessariamente o melhor. Por mais que eu ame o conceito, os personagens e as cenas, não tem como não abordar o elefante branco na sala: o anime é uma puta de uma bagunça, misturando na mesma panela um diretor que estava numa crise profunda de depressão (como dá pra notar) com problemas sérios de relacionamento com o estúdio, envolvendo até mesmo desfalques financeiros que a Gainax teve que se explicar com a Receita Federal japonesa algum tempo depois.
Agora imagine, apenas imagine, se Evangelion fosse feito adequadamente. Com calma, com o orçamento e a liberdade criativa que o diretor precisava. Alias o próprio diretor não é mais um novato deprimido, agora é um profissional com mais de 40 anos de carreira que entende muito mais que a sua versão mais jovem não apenas sobre o seu oficio, mas sobre a vida, o universo e tudo mais.
Imagina uma versão de Evangelion que tira a gordura das coisas constrangedoramente anos 90 (a Asuka foi praticamente refeita do zero e agora é um personagem legal, graças a Lilith) e foca em desenvolver o que era realmente o ponto da história. Imagine deixar a bagunça que foi o terço final da série e recontar essa história com a maturidade e um certo otimismo de quem sobreviveu a varias crises de depressão, para saber que enquanto as coisas podem ser terriveis e opressivas, eventualmente você sobrevive a isso e o mundo não é tão ruim assim.
A série de filmes Rebuild of Evangelion ainda é Evangelion em sua raíz: espere depressão, robos gigantes que não são robos enfrentando abominações lovecraftianas, fanservice e muitos termos religiosos jogados em cima de uma história de ficção cientifica a beira do incompreensível. Com efeito, provavelmente você não vai entender a maior parte das coisas que é dito, apenas pegar uma vaga noção do que elas querem dizer - e está tudo bem, Evangelion é suposto ser assim mesmo.
E é aqui que está a coisa realmente importante: em todos esses anos, eu finalmente entendi sobre o que Evangelion é. Veja, Evangelion não é sobre robos gigantes, não é aliens, não é sobre bullshit pseudo-religioso, não é sobre nada disso. É apenas e simplesmente sobre pessoas quebradas tentando fazer o melhor que elas podem em um mundo que elas não entendem completamente. Como eu e você estamos fazendo agora, e faremos até o fim de nossos dias. Fazer o melhor que pode ser feito em um mundo que constantemente está te jogando bolas curvas. É sobre isso que Evangelion é, e é sobre isso que Evangelion sempre foi no fim das contas.
Mas tem algo novo nessa equação: agora também é uma história sobre otimismo, sobre empatia e esperança. É a história contada por alguém que apanhou severamente para a depressão por anos e anos e anos, mas que de alguma forma sobreviveu e que agora olha para trás com um sorriso cansado, marcado pelos golpes da vida, mas não menos um sorriso por conta disso.
E assim como Hideaki Anno, eu também não sou hoje a pessoa que eu era 25 anos atrás - assim como você não é - quando eu assisti Eva pela primeira vez. Felizmente não estou no mesmo estado mental que eu estava naquela época. Eu segui adiante com a minha vida, resolvi alguns problemas antigos, novos surgiram, enfim, a vida aconteceu e eu cresci. Algumas cicatrizes ficaram pelo caminho, mas de alguma forma eu cheguei até aqui. Melhor, mais sábio, mais experiente. Eu sou uma versão melhor do eu mesmo de 25 anos atrás, em dias que eu achava que não havia esperança alguma ou futuro nenhum.
E por isso mesmo é estranhamente reconfortante ter um closure adequado para Evangelion. É como reencontrar um amigo de infancia e após todos esses anos sem se falar, descobrir que no fim ele ficou bem e teve uma boa vida. É sobre isso.
"Closure" é uma das palavras mais profundamente satisfatórias da língua inglesa. Encerramento, conclusão, desfecho, porém com um sentido de completude. De que tudo fez sentido ao fim e ao cabo. Um filme, um poema, uma música, uma empreitada, um romance, uma vida, tudo tem uma finalização, nem tudo tem closure. Muitos dizem que a palavra saudades, por exemplo, é única em português, que não tem tradução. Claro que tem, mas o sentido fica espalhado em construçãoes sintáticas ao seu redor. Closure pertence a essa classe de vocábulos, em que as línguas às vezes condensam significados de um jeito que outras línguas os dispersam. Para além de desfecho, seja ele bom ou ruim, closure implica o contentamento em perceber que uma jornada teve sentido intrínseco, que justifica ter sido percorrida.
Essa é a sensação que Hideaki Anno quis passar com esse último filme, de que esse capitulo da vida dele terminou. E é o que ele consegue, Evangelion agora terminou, e com isso eu sinto que se fecha um capitulo que não estava totalmente resolvido da minha vida também. É uma sensação agridoce se despedir de algo que foi tão importante na sua vida durante tantos anos, mas ao mesmo tempo é satisfatório saber que agora a história foi contada como ela deveria ter sido.
Então esse capitulo se encerrou, e isso é satisfatório. O que virá a seguir? Eu não faço ideia, mas tenho certeza que será um mais incrível ainda e eu mal posso esperar para fazer essa viagem. Sem Evangelion dessa vez, mas tudo bem, ele já fez o que veio fazer nesse mundo, sua missão está cumprida.
Ao receber One Last Kiss (como tão bem encerra a música da monstra Utada Hikaru), podemos finalmente dizer com alivio, porém tristeza ao mesmo tempo, Sayonara, subete no Evangelion!
GOODBYE, ALL OF EVANGELION!