O maior número de que conheço o nome é o unvigintilhão, que é o 1 seguido de 66 zeros (se você conhece um maior, deixe-me saber nos comentários, vou precisar dele, e logo você entenderá porque). Saber o nome desse número é importante para expressar o número de vezes que eu já vi um anime com o seguinte plot: um loser japonês é convocado para um mundo de fantasia (às vezes magicamente, às vezes através de um jogo), e lá ele abre mão de toda sua loserice para ser o pica das galaxias fodelão, e ter uma horda de menininhas afim dele, cujas idades somadas não são suficientes nem para tirar a carteira de motorista.
Quer dizer, eu entendo porque esse gênero existe. Quando sua maior chance de ser importante é contar com um apocalipse zumbi, e sua única oportunidade de tocar em um membro do sexo oposto, sem ela chamar a polícia, é usando a canetinha em algum jogo do 3DS, é muito tentador consumir esse tipo de produto, onde o jovem rapaz pode se imaginar tendo uma vida menos patética do que a dele próprio.
Mas existem tantos, tantos desses animes, que eu fiquei muito surpreso quando vi Re: Zero direto nas listas de melhores animes de 2016. Tá bom gente, é importante pra vocês bater uma bronha e sonhar que você é algo mais que o super loser-kun, mas tanto assim?
Foi só quando eu assisti o anime que eu entendi o que ele tem de tão especial.
SUPER LOSER-KUN E O DIA DA MARMOTA
Nosso herói aqui, Natsuki Subaru, é um hikikomori (o ponto mais baixo da cadeia alimentar social japonesa) que é transposto para um mundo de fantasia. Sendo um rapazinho esperto que só, imediatamente tem a mesma reação que eu ou você teríamos em uma situação dessas: “eu já assisti uma tonelada de animes sobre essa coisa, sei como saporra funciona”.
Subaru apenas espera que uma garotinha, cujos peitos compõe 2/3 da sua massa corporal, esbarre nele e ele a salve usando seus poderes ocultos de protagonista. A primeira parte acontece (embora a meia-elfa Emilia, que é a sua “garotinha especial”, não seja tão bem dotada assim), mas estranhamente a segunda não. Subaru descobre que não tem nenhum super-poder, ki, cosmo, mana, chakra, conhecimento estratégico avançado, item lendário ou porra nenhuma. Ou seja, ele não é o “chosen one da profecia”, ele é apenas um personagem de nível 1 em um cenário de fantasia igual a todo mundo ali. Ué, estranho…
Mas tudo bem. Subaru vai descobrir que ele tem uma grande aptidão mágica, vai treinar na sala mágica, e se tornar um espadachim foda do dia pra noite ou algo assim, certo? Então… não exatamente. Embora Subaru tenha, de fato, uma aptidão mágica acima da média, essas coisas levam ANOS para se dominar… como qualquer coisa na vida, quando você quer se meter com os melhores do mundo em uma área.
… espera, então quer dizer que o protagonista que descobriu magia a dois dias atrás não tem chance de competir contra os caras que praticam isso A VIDA INTEIRA? Estou chocado.
No início, isso é usado como um tipo de meta-humor para debochar dos mundos de fantasia que falham em responder a pergunta “se é tão simples, porque qualquer um não faz isso?“. Inicialmente, porque depois de um tempo a fraqueza de Subaru deixa de ser engraçada e rapidamente se torna problemática.
Ao contrário do que poderíamos esperar de um anime, em vez de superar os obstáculos contra todas as probabilidades usando o poder do protagonismo, ao entrar em contato com um inimigo sério, Subaru (que nunca sequer brigou na vida) é brutalmente assassinado. Porque, sério, o que você esperava que acontecesse aqui, Subaru? De verdade, o quê?
Foi nesta introdução inicial que os primeiros sinais da grandeza de Re: Zero começaram a surgir para mim. Mas é claro que Subaru não morreu para sempre, tem, sim, algo especial sobre ele, afinal. Muito parecido com qualquer outro protagonista de animes sobre “transportado para outro mundo”, Subaru possui uma habilidade especial: nesse caso é o “retorno da morte”.
Ok, Subaru recomeça o dia no exato lugar que ele estava e… bem, é só isso realmente. Ele continua sendo apenas ele mesmo.
Ao contrário de outras séries, retornar da morte não dá absolutamente nenhum super poder ou conhecimento para Subaru. Ele só retorna novamente e novamente para um “checkpoint” anterior, para tentar, de alguma forma, salvar o dia usando o poder do protagonismo, mas Subaru continua sendo apenas um cara comum. Ele não sabe lutar, não sabe fazer magia, não é o mestre das táticas militares nem nada. Continua sendo só um cara comum tentando fazer as coisas darem certo.
Na parte inicial do show, essa mecânica de retornar e tentar de novo as coisas é o que mantém o anime interessante (e posso dizer que sou fã de Feitiço do Tempo), enquanto Subaru tenta descobrir o que ele poderia fazer diferente para se manter vivo. No entanto, é o efeito que essas mortes freqüentes têm no Subaru, a longo prazo, que realmente utiliza esse conceito em seu máximo potencial. Cada vez que o Subaru morre, qualquer progresso que ele fez com os outros personagens também é reiniciado no “checkpoint” anterior.
Isso significa que, no ponto de vista dele, ele, Emília e os outros se conheceram fazem semanas, até meses. Do ponto de vista das outras pessoas, elas conhecem Subaru há alguns dias, no máximo.
Este retorno das interações dos personagens ao zero, juntamente com o trauma da morte (morrer não é agradável ou algo que se faça levianamente), começa a afetar Subaru bastante. Não é fácil voltar depois de morrer mortes horríveis, repetidas e não ter conquistado nada com isso. Pior do que isso, como ele sabe muito mais sobre os personagens do que deveria saber (do ponto de vista deles, eles só o conhecem há alguns dias, ou mesmo horas), Subaru parece estar sempre agindo com um propósito obscuro, mesmo quando ele os avisa do perigo. Para piorar, parte do pacote da sua maldição é que ele não pode contar a ninguém sobre o retorno através da morte, então, cada vez que ele morre, ele realmente tem que começar do zero.
Imagine o quanto isso faz bem para a sanidade de alguém, eu suponho.
Em muitas situações, Subaru tenta desempenhar o papel do herói confiante, apenas para fracassar, devido à falta de habilidade para o papel desejado. Em vez de ter uma grande epifania nestes momentos de que vai resolver tudo, Subaru, frequentemente, em vez disso, insiste nos seus erros, na sua tentativa de representar seu papel de protagonista de fantasia.
Eu sei, pode parecer pura burrice da parte de Subaru continuar insistindo em se comportar como um protagonista de anime, quando ele claramente não é, mas se você pensar bem, não é tão simples assim.
Como um humano que foi abandonado em um mundo de fantasia, e forçado a sofrer eventos brutais e emocionalmente traumatizantes, Subaru manteve sua sanidade ancorando-se a este modelo de herói ideal. Subaru ancorou-se a uma crença central: “Somente eu posso salvar Emilia”. Para registro, ele está tecnicamente correto, na medida em que, sem suas repetidas tentativas, Emilia certamente morreria. Dito isto, Subaru está completamente obcecado com essa noção, porque é a única justificativa que ele consegue encontrar para sua existência naquele mundo. A única outra real opção é aceitar que ele é o mesmo loser patético que era na Terra. Você pode realmente culpa-lo por não querer encarar isso?
Meu ponto é que a série usa o protagonista como metalinguagem para mostrar que a vida em um mundo de fantasia seria menos do que ideal sem a “aura do protagonismo”, tão presente nos animes. Isso é o que torna toda essa série e seus eventos tão atraentes para mim: a desconstrução incrivelmente efetiva do protagonista do gênero “perdido em um mundo de fantasia” através da demolição sistemática do que Subaru acredita.
Isso é particularmente evidente nos exemplos que eu dei, mas é realmente um tema consistente ao longo da história. Subaru não tem as habilidades de um protagonista de anime, ele não é capaz de ter sucesso em situações que um personagem supostamente similar deveria. Ele não ganha habilidades, ele não é muito bom em se expressar, e ele enfrenta um devastador trauma de mortes repetidas em um mundo que não tem piedade para com os fracos.
Subaru não é um personagem muito simpático, às vezes, para a maioria das pessoas, e ele realmente não deveria ser. Você não é obrigado a odiá-lo, mas as ações de Subaru são as ações de um homem que não foi talhado para o mundo em que ele está. E a melhor coisa é que, no fundo, realmente no fundo, ele sabe – nos brindando com um episódio genial, onde Subaru faz um análise profunda e crua da sua própria pessoa – é quase um episódio inteiro só com ele falando sobre si mesmo, e é a coisa mais honesta e verdadeira que eu lembro de ter visto em um anime em muito, muito tempo.
UM MUNDO DE FANTASIA COMPLEXO (ou eu jogaria RPG com Tappei Nagatsuki – o autor da Light Novel no qual o anime se baseia)
Como já deve ter ficado claro a esse ponto, o mundo de Re: Zero não gira em torno do protagonista. Com efeito, ele não poderia se importar menos com o protagonista e tem várias engrenagens girando, várias forças maiores, e às vezes muito poderosas, em movimento. Como um sólido cenário de RPG, possui segredos e monstros Lovecraftianos de nível 20, que estão muito além das capacidades das pessoas comuns, assim como tem suas figuras proeminentes com suas próprias agendas.
Com efeito, o cenário de Re: Zero me lembra a sensação de estar jogando no cenário de Forgotten Realms: existem já todas aquelas figuras proeminentes e consagradas no cenário (Elminster, Drizzt, etc), e cabe ao jogador conseguir lugar na mesa dos adultos para poder interagir com as grandes figuras.
Do mesmo modo, Subaru precisa conquistar, por seu próprio mérito, um espaço em uma sociedade muito orgânica e funcional, com sua própria realidade consolidada.
Existem pelo menos 4 grandes eventos em andamento no reino de Lugunica, cada um deles movimentando diversas facções e classes sociais. E todos eles conversam entre si, constituindo um cenário bastante crível de fantasia. Com efeito, a temporada termina com Subaru (mais ou menos) resolvendo um desses eventos – o que dá uma sensação satisfatória de conclusão da temporada – mas existem muito mais coisas a serem feitas nesse cenário antes da campanha realmente terminar.
O sistema de magias e as regras do mundo, enquanto não explicadas claramente, parecem consistentes, e nada parece “tirado da bunda só porque ficaria legal nessa cena”, que é uma coisa que me irrita muito em animes.
VAMOS FALAR SOBRE WAIFUS AGORA
Eu já falei bastante sobre o protagonista, mas é importante falar sobre os outros personagens também. Porque a impressão inicial que eles passam é ruim, muito ruim. Melhor dizendo, elas passam – porque Re: Zero funciona meio que como um anime de harém, e inevitavelmente sua primeira reação a isso é pensar “aff, já vi onde isso vai dar”.
Todos os clichés de anime de harém estão lá: a menina tomboy sem peito (sim, isso é uma coisa recorrente em animes), a loli, o menino que parece menina para fazer piadas de “it’s a trap!”, a menina tímida que fala pouco, a outra que gosta do protagonista, mas demonstra isso de forma violenta, a mocinha principal sem noção de relacionamentos e por aí vai. Para adicionar ofensa a injúria, elas se vestem de forma a satisfazer os otakus pagando pelos DVDs do anime, e assim temos uma personagem vestida de empregada o anime inteiro, apenas por motivos meramente fapisticos.
Vou te dizer que é um pouco difícil superar a impressão inicial ruim que o visual das personagens passa (meio que como Final Fantasy X, cuja imersão na história, para muita gente, é arruinada pelo character design imbecil dos personagens), mas se você conseguir fazer isso, verá que as personagens também são mais complexas do que se costuma dar o crédito em animes.
Me permita pegar um exemplo: a “mocinha da história”, Emilia, é a clássica menina absurdamente bonita que é solitária e não tem amigos … porque tem que ter espaço para o protagonista poder chegar nela e satisfazer as fantasias do espectador. Quer dizer, em que caralhos de mundo uma menina tão bonita assim seria isolada e solitária? Como pode ser ESSE o drama da personagem, que apenas o protagonista pode preencher? Não faz o menor sentido.
MAS em Re: Zero faz. Existe um motivo muito razoável pelo qual Emilia é, de fato, solitária, e nenhum de TODOS OS OUTROS CARAS DO MUNDO se esforça tanto para investir nela como Subaru faz. É um motivo que eu consigo acreditar, não apenas “ela estava reservada para o protagonista por razões puramente roteirísticas”.
O mesmo vale para a empregada tímida subserviente. Ela não é só uma menininha tímida submissa porque aqueles travesseiros de waifu não vão se comprar sozinhos, mas, sim, existe um motivo bastante crível e razoável dentro do cenário, e na história da personagem, para ela ser como ela é. E, ainda assim, isso não é TUDO que ela é. Rem tem sua própria agenda e interesses, ao ponto de que o seu visual de puro material de fanservice chega a ser disruptivo.
Ou a loli do anime, que apesar do seu visual idiota pra agradar otaku pedófilo, na verdade é um espirito tão antigo quanto a própria raça humana, e sua capacidade de estar pouco ou nada se fodendo para tudo que não esteja especificamente citado em seu contrato mágico é brilhante.
Pode parecer estranho, mas o visual das personagens faz um enorme desserviço a elas, as reduzindo a estereótipos masturbativos para os otakus. Só que, se você conseguir deixar isso de lado, vai ver que são personagens muito interessantes em seus próprios modos.
Quando você terminar de assistir Re: Zero, provavelmente estará se perguntando se a viagem valeu a pena. Eu diria que a desconstrução de um show típico de fantasia é evidente, à medida que cada episódio avança. Temos uma quantidade bastante adequada de caracterização no elenco principal. Temos um cenário de fantasia realmente interessante, com tramas políticas, monstros darksoulinianos, e seitas religiosas insanas no sentido mais literal da palavra. Todo episódio oferece algo para os fãs se importarem, mesmo que seja passar raiva com o protagonista – o que é bom, pois se a obra não te faz sentir nada, aí sim que é um problema.
Se isso não for suficiente, então não sei mais o que poderia ser pra você.